quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Os velhos

Já sabíamos que, de nós todos, os velhos são quase sempre a parte mais fraca da sociedade. Por problemas de saúde de vária ordem (incluindo, cada vez mais, as doenças neurológicas), perda de autonomia e autoestima, pobreza e solidão. A situação torna-se ainda mais grave quando se trata de velhos institucionalizados, como estes tempos de pandemia que vivemos têm mostrado.

Quando há já alguns vinte ou trinta anos viajávamos pelo interior de Portugal, começou a ser frequente encontrar, logo à entrada ou nalgum cruzamento dentro da localidade, uma placa a sinalizar a existência de um lar ali perto. Para quem tivesse vivido sempre em cidades grandes até poderia pensar que se tratava de um sinal de progresso, mas para os que nascemos na aldeia, crescemos entre a casa dos nossos pais e a dos nossos avós, e nos habituámos a vê-los envelhecer e morrer junto da família, a existência de tantas destas instituições parecia-nos uma realidade pouco natural. Hoje todos reconhecemos que são um mal necessário resultante das transformações sociodemográficas e das alterações na estrutura e dinâmica familiar, e não há forma de regressar ao passado, mas deveríamos entendê-los como último recurso e não, como acontece demasiadas vezes, como a primeira alternativa para responder às necessidades de assistência dos mais velhos ou às dificuldades da família em cuidar deles.

Tenho andado à volta de um livro lançado há tempos em Castelo Branco. Trata-se da tese de mestrado de uma enfermeira cujo trabalho de campo decorreu nos dois lares da Santa Casa de Misericórdia da cidade. Diz ela que um número muito significativo de utentes refere estar satisfeito com o tratamento que recebe (a caracterização inicial das instituições dá a entender que existem efetivamente boas condições, em termos de espaço e de equipamentos, mas sobretudo nos cuidados dispensados); adianta também que há muitas pessoas que dizem ter sido elas mesmas a tomar a decisão de ir para o lar. Contudo, refere alguns estudos que dizem que esta declaração nem sempre corresponde à realidade: muitas pessoas dizem isso apenas para desculpabilizarem os familiares (quase sempre os filhos); outras é por vergonha, porque no seu meio de origem, ir para o lar ainda é um estigma; outras querem dar a entender que, mesmo nesta fase da vida, ainda tiveram poder para decidir, embora isso não corresponda à verdade, na maior parte das situações. Mas há também quem se lamente e diga que tratou dos pais ou dos sogros até à hora da morte, e a eles obrigaram-nos a abandonar a casa e o que tinham conseguido numa vida inteira de trabalho, e meteram-nos ali, longe de tudo. E lembrei-me deste poema da Hélia Correia:

Velhos

Diz-se que há-de vir
uma era justa e boa
em que o valor da pessoa
se mantém quando envelhece.
Está no trabalho que fez.
Para conseguir uma coisa como esta
dava o sangue que me resta.
E era como se tivesse
nascido mais uma vez.

Deram-nos este banco de avenida
onde a sombra nos dói e a tarde gela
e daqui vemos nós passar a vida
Sem que a vida nos sinta perto dela.

Assim nos atiraram para fora
das coisas que ajudámos a fazer.
Ai, como o sol aquece pouco agora.
Ai, muito custa à noite adormecer.

Fomos pedreiros, varredores, ardinas
fizemos casas, cultivámos terras,
criámos gado, entrámos pelas minas,
demos os filhos para as vossas guerras.

Demos as filhas para vos servir,
cortámos lenha para a vossa fogueira.
E o tempo a ir-se, e a gente a pressentir
que vos demos sem querer a vida inteira.

E ainda é sangue o que nas veias corre.
Ainda é raiva o que nos dobra a mão.
Ainda ecoa um sonho que não morre
no nosso velho e atento coração.

Neste dia 1 de outubro, Dia Internacional do Idoso, este poema é como que um murro no estômago. Oxalá tocasse também a consciência de quem tem poder para tornar mais digna e humanizada esta fase da vida a que todos esperamos chegar.

M. L. Ferreira 

Nota: A imagem foi retirada do Google

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Vicentinos ilustres

 Maria de Lourdes Mateus Hortas


VIDA E OBRA

- Nasceu em São Vicente da Beira, na Rua do Convento, em 1940.

- É filha de Manuel Joaquim Hortas, boticário, natural de Mouçós, Vila Real, e Maria Amélia Mateus, natural da Covilhã. O pai detinha a Farmácia e o posto de Correios de São Vicente.

- Com 10 anos, acompanhando a minha família, vim para o Recife, onde vivo até hoje.

- Escritora, estou representada em antologias nacionais e estrangeiras.

- Participei, entre os coordenadores, do Movimento das Edições Pirata, Recife (1980 a 1986).

- Fiz parte do conselho editorial do jornal literário Cultura & Tempo (1981/1983), e da revista Pirata Edições (1983 /1984).

- Fui diretora da revista Encontro, do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, na época em que desempenhei o cargo de Diretora Cultural da referida instituição.

- Tenho 10 livros de poesia publicados, entre os quais Fio de Lã, Outro Corpo, Dança das Heras, Fonte de Pássaros e Rumor de Vento. Como ficcionista publiquei: Adeus Aldeia (1990); Diário das Chuvas (1995); Caixa de Retratos (2003).

- Organizei as antologias Palavra de Mulher (1979) e Poetas Portugueses Contemporâneos (1985).

- Fui coordenadora das Galerias de Arte BeloBelo, em Recife e em Braga (Portugal).

- Há cerca de 11 anos enveredei pelas artes plásticas. Fui aluna do pintor José de Moura, de Olinda, PE.

- Atualmente vivo nos arredores do Recife, mais precisamente, em Aldeia.

(Perfil na primeira pessoa, do seu blogue “poesia de maria de lourdes hortas”)

Casa onde viveu Maria de Lourdes Hortas 

(esquina da rua do Convento com a rua das Laranjeiras)

 

EM FRENTE À CASA DA INFÂNCIA

Em frente à casa da infância havia um ferreiro.
Além das ferraduras para cavalos, suas mãos grandes e pesadas
fundiam o sol em sua forja. E sucedia que, ao acordar, eu me precipitava
para a janela a tempo de ver
as faíscas da luz escapulindo pelo escuro vão da porta do ferreiro
diluindo-se na neblina da rua.
Da mesma janela via surgir, no postigo do primeiro andar, a velha:
de vestes tão negras como o tempo que atravessara
e de cabelos tão alvos como a farinha que, todos os dias, àquela mesma hora peneirava.
Da casa voejava uma poalha de prata.
Se fosse Inverno, a neve parecia escapar-lhe da peneira
polvilhando a aldeia de silene magia.


(Maria de Lurdes Hortas, "Cantochão de Todavia", edição do GEGA, 2005, São Vicente da Beira)

José Teodoro Prata

sábado, 19 de setembro de 2020

Os Sanvicentinos na Grande Guerra

 Fernando Diogo

Fernando Diogo nasceu em São Vicente da Beira, no dia 21 de abril de 1895. Era filho de Manuel Diogo e Maria Moreira, moradores na rua da Costa.

De acordo com a sua caderneta militar, sabia ler, escrever e contar corretamente e tinha a profissão de sapateiro, quando assentou praça, no dia 19 de junho de 1915. Foi incorporado no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21, em 15 de maio de 1916, e concluiu a recruta a 29 de agosto.

Fazendo parte do Corpo Expedicionário Português, embarcou para França integrado na 4.ª Companhia do Regimento de Infantaria 21, no dia 22 de janeiro de 1917, como soldado n.º 542 e placa de identidade n.º 9879.

De acordo com o seu boletim individual do CEP e caderneta militar, foi colocado na Escola de Sinaleiros, em novembro de 1917, com as funções de radiotelegrafista.

Em março de 1918, foi-lhe concedida uma licença de campanha de 45 dias, que gozou em Portugal, tendo voltado a França em 4 de maio. Em 10 de junho desse ano, foi promovido a 1.º Cabo Miliciano, passando a fazer parte da 5.ª Companhia com o n.º 672.

Regressou a Portugal, no início de 1919, e passou ao Batalhão n.º 1 da Guarda Fiscal, em 26 de setembro, como soldado de Infantaria. Passou ao Regimento de Infantaria 21, em 27 de fevereiro de 1920. Em 11 de julho de 1920, foi licenciado, vindo domiciliar-se em São Vicente da Beira. Passou à reserva ativa, em 11 de abril de 1928, e à reserva territorial, a 31 de dezembro de 1936.

Condecoração: Medalha Militar de cobre comemorativa da participação portuguesa na Grande Guerra, com a legenda: França 1917-1918.  



Família:

Fernando Diogo casou com Laura de Jesus, também natural de São Vicente da Beira, na 3.ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, a 7 de dezembro de 1919. Tiveram 2 filhos:

1.    Manuel Diogo que casou com Clara Nunes Mourato, e tiveram uma filha;

2.    Maria Manuela Ferreira Diogo dos Santos que casou com Domingos Esteves dos Santos e tiveram 3 filhos.

O casal viveu a maior parte do tempo em Castelo Branco, onde Fernando Diogo trabalhou durante muitos anos como motorista da Junta Autónoma de Estradas. Foi sempre muito considerado por todos os colegas.

Manteve uma grande ligação à terra, onde vinha regularmente, e chegou a ser mesário da Santa Casa da Misericórdia durante vários mandatos, com os cargos de vogal e secretário.

Fernando dos Santos, um dos netos, lembra-se de ouvir o avô falar sobre o tempo em que esteve em França e contar que as situações piores por que passou na guerra tinham sido os bombardeamentos com gases que lhes causavam graves problemas respiratórios. Lembra-se também que, já no fim da vida, apresentava sinais da doença de Alzheimer, mas passava os dias a repetir os gestos de enviar mensagens por código Morse, certamente memórias que lhe ficaram do tempo da guerra.

Fernando Diogo faleceu no dia 29 de Julho de 1974. Tinha 79 anos de idade. Encontra-se sepultado no talhão dos combatentes do cemitério de Castelo Branco.

(Pesquisa feita com a colaboração do neto Fernando dos Santos)

Maria Libânia Ferreira
Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"
 

domingo, 13 de setembro de 2020

Vicentinos ilustres

Padre Leonardo Nunes

VIDA E OBRA

- Nasceu em São Vicente da Beira, em 1509 ou 1518.

- Era filho de Simão Álvares e Isabel Fernandes.

- Aderiu à Companhia de Jesus, em 1548.

- Partiu para o Brasil na primeira missão jesuíta chefiada por Manuel da Nóbrega, em 1549, na armada do Governador-Geral, Tomé de Sousa.

-   Fixou-se na capitania de São Vicente, onde foi o primeiro missionário e edificou a igreja e o colégio.

- Foi incansável na doutrinação dos índios e dos colonos portugueses. Aprendeu as línguas dos nativos e defendeu-os da escravidão dos portugueses.

- O Padre José Anchieta escreveu: “...a vida do Padre Leonardo Nunes era muito exemplar e convertia mais com obras que com palavras.

- Os índios chamaram-lhe Abarebebê (o padre que voa), por se deslocar muito depressa de uns locais para os outros.

- Faleceu num naufrágio ao largo de Santos, em 1554, em viagem com destino a Portugal e Roma.

Ruínas da capela da Conceição de Nossa Senhora, a primeira igreja construída no Brasil, pelo padre Leonardo Nunes, em Peruíbe.

 

São Vicente, Março de 1554

«Num lugar de índios convertidos, que formou o Padre Nóbrega, dez léguas pela terra dentro (Piratininga, embrião da futura vila e cidade de São Paulo), temos uma igreja e uma casa mui pequena e pobre, feita de barro e paus, e coberta de palha, que é, ao mesmo tempo, escola, enfermaria, dormitório, refeitório, cozinha e despensa, construída pelos próprios índios para uso dos nossos; está nela o Padre Nóbrega e mais sete irmãos.»

(Carta do Padre Leonardo Nunes, em “Abarebê” Tão rápido como um Beija-Flor, de José Miguel Teodoro, Edição da Câmara Municipal de Castelo Branco, 2004)

José Teodoro Prata

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

O vinho

 

Depois da água, o vinho será a bebida mais antiga da história da humanidade, tendo adquirido, ao longo dos tempos, uma enorme importância sociocultural e económica que atravessou as civilizações mais remotas e chegou aos nossos dias. 

A sua origem é difícil de identificar, acreditando alguns que terá sido Noé quem plantou a primeira vinha, considerando outros que a bebida é uma dádiva dos deuses, supondo-se mais recentemente que o vinho apareceu por acaso, pela fermentação acidental de algumas uvas esquecidas dentro de um pote. 

Também não é possível conhecer exatamente o período em que terá sido plantada a primeira vinha, mas existem vestígios da sua existência desde há alguns milénios antes de Cristo, quando os povos se tornaram sedentários. Os Gregos terão sido os responsáveis pela sua expansão pelos territórios à volta do Mediterrâneo, mas seriam os Romanos a trazê-la e a impô-la nas terras que conquistavam, como marca da sua civilização e símbolo do seu poder. Foi o que aconteceu também na região que é hoje o território nacional. A vinha das Vinhas do Poço, nos arredores de São Vicente, remontará a esse tempo, mas existiram outras da mesma dimensão e importância onde se produzia vinho de boa qualidade (já lá vão uns anos largos, mas há quem se lembre ainda do da Dona Ludovina, feito pelo Ti António Russo, que pelos vistos era dos melhores de São Vicente).

 

Para além dos grandes produtores, era comum que quem tivesse um bocado de terra, própria ou arrendada, plantasse alguma vinha para fazer vinho para gastos da casa. Eram normalmente plantadas em terrenos mais pobres, onde não se podia cultivar milho ou batata, e era também frequente plantá-las nos quintais, dentro das povoações, a formar latadas. Não há muito tempo, por esta altura, era grande a azáfama em quase todas as famílias de São Vicente que se juntavam para a vindima. Depois de colhidas, as uvas eram acarretadas em dornas ou cestos por carros de bois, por burros, ou às costas e à cabeça de homens e mulheres. A seguir eram esmagadas no cerindão ou pisadas dentro dum tanque de cantaria onde ficavam a ferver durante alguns dias. O cheiro a mosto inundava as casas e as ruas, até à altura em que era transferido para os pipos. Depois era esperar até ao São Martinho, com alguma ansiedade, porque o prestígio dos homens também dependia da qualidade do vinho que fazia. Se era bom, convidavam-se então os parentes e amigos para o provarem, muitas vezes acompanhado por pão com azeitonas, queijo ou uma talhada de chouriça esquecida no fundo da talha. «O Ti Antonho este ano é que lá tem uma pinga boa!» ouvi algumas vezes ao meu pai.

 

O vinho teve um papel importante na prevenção e tratamento de várias doenças, sendo usado, desde os tempos mais antigos, como calmante, anticético, anti-inflamatório e analgésico. Não serão ainda de desprezar as alusões às suas propriedades energéticas e afrodisíacas. Devia ser por elas que me lembro de ver o meu avô a lamber-se todo com uma gemada feita com ovo, açúcar e vinho que a minha avó lhe dava todas as manhãs. Na altura pensava que era apenas por ser homem que ele tinha direito àqueles mimos; reconheço agora que bem precisava deles para criar o rebanho de filhos que Deus lhe deu e aguentar tanto trabalho em dias que começavam ainda o sol vinha longe e se estendiam para lá do anoitecer. 

 

Para além das propriedades medicinais, o vinho adquiriu também grande importância simbólica em várias religiões (os faraós ofereciam vinho aos deuses e os sacerdotes usavam-no em rituais religiosos). Na igreja católica a simbologia do vinho também está presente em vários momentos (o milagre das bodas de Caná, durante as quais Jesus transformou a água em vinho, e a utilização do vinho que se transforma no Sangue da Cristo durante a Consagração, são dois dos exemplos mais conhecidos). Tem tido também, ao longo dos tempos, um papel importante nas mais diversas manifestações da cultura popular, principalmente em momentos de festa e confraternização, como, por exemplo, os rituais de namoro e casamento.      

Entre nós, e noutras localidades da Beira Baixa, foi uso, até há relativamente pouco tempo, “pagar o vinho”: quando um rapaz de fora queria namorar uma rapariga da terra tinha que oferecer vinho em abundância a todos os rapazes para poder ser aceite como membro da comunidade. A exigência do “pagamento” acontecia normalmente a partir do dia em que o rapaz entrava dentro de casa dos pais da rapariga, o que significava que o namoro já era “sério”. Se o rapaz era pobre, as exigências não eram tão grandes, mas se era pessoa de posses, oferecia também pão com queijo e chouriço e contratava um tocador para se armar um bailarico.  

Entre nós ficaram famosos os versos atribuídos ao senhor José Lourenço para os rapazes da Vila quando quiseram ir pedir o vinho ao namorado de uma das filhas do senhor Manuel da Silva (há outras publicações no blogue sobre este acontecimento):

 

Meu capitão, dai-nos licença,

para que a rapaziada exponha

em carta, por ter vergonha,

de vir à sua presença?

 

São costumes pertinazes,

quando um estranho aqui vem

a pedir a filha à mãe,

ter de dar vinho aos rapazes.

 

Por isso, meu capitão,

vede lá como há de ser.

se esse uso tem de morrer,

que não seja em vossas mãos!

 

E os versos continuavam…

 

Em Penha Garcia era hábito os noivos oferecerem tremoços às raparigas e vinho aos rapazes nos proclames do meio (os proclames repetiam-se na missa por três domingos consecutivos). Na véspera do dia do casamento ofereciam doces e vinho a todas as pessoas que fossem dar-lhes os parabéns na casa que iam habitar.

No Ladoeiro era costume, na noite de núpcias, os rapazes amigos do noivo irem para a porta do novo casal dar-lhes os parabéns com quadras alusivas ao momento:

 

Como deves ser feliz

Neste momento, meu amiguinho,

Vem também animar-nos

Com um copo de vinho.

 

Um copo de vinho

A ninguém, pois, se nega,

Que nos sirva de proveito

E também p’ra sossega.

 

E a cantiga continuava com outras quadras até o noivo se levantar e vir à porta oferecer vinho e aguardente a todos. Esta tradição de saudar os noivos com cantigas na noite de núpcias era comum a muitas aldeias da Beira Baixa. Acontecia também em Monte Fidalgo, Perais, onde um amigo ou familiar do noivo ficava à porta do casal com um cântaro de vinho para dar de beber a toda a gente que por lá passava.

Na Partida, depois do jantar da boda no qual participavam todos os convidados do almoço, o baile continuava, mas os noivos saíam discretamente para casa. Passado algum tempo, os rapazes iam bater-lhes à porta e obrigavam o noivo a levantar-se e a dar-lhes de beber. Como já se sabia que isto ia acontecer, o vinho e alguns doces já estavam preparados de forma a despachar os intrusos o mais depressa possível.

 

Na festa do São João, no Rosmaninhal, o vinho e os tremoços, oferecidos pelo alferes (mordomo) eram distribuídos em abundância a todos os participantes, da terra ou de fora, ao longo dos dias que a festa durava. Um dos mais curiosos acontecia durante as cavalhadas (cortejo de cavaleiros que percorria as ruas principais): durante o percurso distribuíam-se tremoços, broas de mel e vinho que era transportado numa grande caldeira onde se mergulhava um copo com asa, e por onde bebia toda a gente.

 

A maior parte destas tradições, e tantas outras que ao longo do tempo animaram a cultura popular, têm vindo a perder-se com os anos. Felizmente que tem havido quem se dê ao trabalho de recolher e registar algumas dessas práticas para que não se percam também da memória. Foi o caso de Jaime Lopes Dias com o livro Tradições e Costumes da Beira Baixa, e também Luís Leitão com a monografia Partida onde fui buscar alguma da informação que aqui deixei.

Sobre o vinho resta-nos a consolação de, graças à introdução de novas castas, melhores processos de cultivo e produção e ao trabalho dos enólogos termos disponíveis uma variedade grande de vinhos, e cada vez de maior qualidade. Assim haja oportunidades de irmos confraternizando! 

 

Maria Libânia Ferreira

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Os Sanvicentinos na Grande Guerra

 Domingos Rodrigues Inês

Domingos Rodrigues Inês nasceu na Partida, a dia 13 de novembro de 1893. Era filho de Manuel Rodrigues Inês, cultivador, e de Maria Joaquina.

Assentou praça em Castelo Branco, no dia 9 de julho de 1913, como recrutado, e foi incorporado no Regimento de Artilharia de Montanha. Na altura era analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro.

Foi mobilizado para a província de Angola, para onde seguiu em 11 de setembro de 1914, integrado na 1.ª Expedição enviada para o sul daquela província ultramarina. Tinha a categoria de soldado condutor. De acordo com a sua folha de matrícula militar, participou na ação do dia 18 de dezembro de 1914 contra os alemães, fazendo parte das forças que ocuparam o vau de Calueque. Regressou a Lisboa a 5 de novembro de 1915 e foi licenciado no dia 15 de maio de 1916.

Em fevereiro de 1917 foi novamente mobilizado para servir na província de Moçambique, para onde embarcou no dia 2 de julho de 1917. Fez parte das tropas de reforço à 3.ª Expedição que na altura já se encontrava muito enfraquecida pelos ataques dos alemães e pelas doenças que incapacitaram ou vitimaram muitos militares. Não há registos do local onde terá estado, nem das ações em que participou. Regressou à Metrópole a 24 de outubro de 1918.

Licenciado em 4 de julho de 1919, passou ao 2.º escalão do Exército e ao 7.º Grupo de B. Reserva, em 31 de dezembro de 1923.

Condecorações:

·      Medalha militar comemorativa das operações realizadas no sul da província de Angola, com a legenda: 1914-1915;

·      Medalha comemorativa das campanhas na província de Moçambique, com a legenda: 1914-1918;

·      Medalha da Vitória.

·      Por o seu Regimento ter sido condecorado com a Cruz de Guerra de 1.ª Classe, ficou ao abrigo do Art.º 43 do Regulamento das Ordens Militares Portuguesas de 1919, podendo fazer uso do distintivo que lhe foi atribuído.

Punições:

a)    10 faxinas por estar ausente sem licença desde as 8.30h do dia 14 de abril de 1914 até à 12.30 h do dia 15. «Não foi punido mais severamente por se considerar que ainda não tinha muita compreensão das regras militares» (folha de matrícula);

b)   4 dias de detenção, por ter o cabelo comprido, quando se apresentou para a distribuição do pré, no dia 4 de maio de 1914;

c)    1 guarda, por se ter rendido no posto do sentinela sem a presença do cabo da guarda, no dia 2 de julho de 1914.

Família:

Domingos Rodrigues casou com Maria da Graça, no Posto do Registo Civil de Almaceda, a 31 de outubro de 1920, e passou a residir nas Rochas de Cima. Foi aí que lhes nasceram os 7 filhos que tiveram: Preciosa Maria, José Inês, Joaquim Domingos Inês, Maria do Carmo, Maria do Santos, Manuel Inês e Maria Inês.

«O meu pai era uma boa pessoa. Tratou sempre bem a minha mãe e aos filhos nunca nos bateu. Guardava respeito a toda a gente e toda a gente cá na terra gostava dele.

Foi moleiro toda a vida, com uma azenha e dois moinhos ali na ribeira, por baixo do Ingarnal. Ele estava quase sempre a moer e eram as filhas mais velhas que andavam com o burro, por aquelas terras à roda, a trazer o cereal e a levar a farinha já moída. Teve uma vida difícil e de muito trabalho porque, naquele tempo, aquilo dava pouco e as bocas eram muitas. Era no tempo em que uma sardinha tinha que dar para três…

Também nunca recebeu nada por ter andado na guerra, porque não se soube mexer, nem teve quem lhe desse a mão: não tinha o braço torto….

Tanto o meu pai como a minha mãe morreram quando eu estava na França. Custou-me muito, mas é assim a vida…» (testemunho do filho Manuel Inês)

Domingos Rodrigues Inês faleceu no dia 30 de agosto de 1975. Tinha 81 anos de idade.

(Pesquisa feita com a colaboração do filho Manuel Inês)

Maria Libânia Ferreira
Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Epidemias do passado (e do presente)

As epidemias, causadas principalmente por bactérias e vírus, atingiram a humanidade desde a antiguidade, e foram responsáveis por mais mortes que todas as guerras e cataclismos juntos.

Alguns números:

A peste bubónica, também conhecida por peste negra por ter sido a mais mortífera que atingiu a Europa e a Ásia, teve o primeiro grande surto no século XIV. Teve depois outras vagas, a pior no século XVII, quando atingiu dramaticamente as cidades de Londres, Amesterdão e outras capitais. Sem capacidade de acorrer a todos, muitos doentes eram abandonados nas ruas e deixados durante vários dias até morrerem. Estima-se que tenha feito para cima de 50 milhões de mortos.

A cólera, que teve a primeira epidemia global em 1817, causou centenas de milhares de mortes em todo o mundo. Na Europa existem atualmente apenas alguns surtos pontuais, mas continua a matar muita gente, sobretudo crianças, nos países mais pobres de África, Ásia e até da América Latina.

A tuberculose foi uma das doenças mais mortíferas em todo o mundo. Estima-se que tenha matado mais de 100 milhões de pessoas. O combate através da vacinação quase a eliminou de grande parte dos países desenvolvidos, mas continua presente em muitas regiões do globo, principalmente em África e alguns países asiáticos.

A varíola, conhecida entre nós por bexigas, atingiu a humanidade durante mais de três mil anos. Só entre 1896 e 1980, altura em que foi erradicada do planeta por efeito da vacinação, terão morrido em todo o mundo mais de 300 milhões de pessoas.

Os registos de óbito raramente referem o motivo da morte, mas entre dezembro de 1874 e dezembro de 1875 morreram em São Vicente 85 pessoas com bexigas, quase todas crianças até aos 10 anos, mas também alguns adultos jovens.

A pneumónica, também chamada gripe espanhola, que afetou o mundo entre os anos de 1918 e 1919, foi uma da mais mortíferas de todos os tempos. Infetou cerca de um quarto da população mundial e deixou um rasto entre os 50 e os 100 milhões de mortes. Só em Portugal morreram para cima de 60 mil pessoas e o distrito da Castelo Branco foi um dos mais atingidos (12 659 pessoas, tantas como no Porto). Em São Vicente também terá matado muita gente. Ainda hoje se ouvem contar histórias desses tempos, em que os mortos eram tantos que não davam vazão a enterrá-los.

O tifo, que afetou o exército de Napoleão aquando da invasão da Rússia e também os militares durante a Grande Guerra, matou para cima de três milhões de pessoas entre 1918 e 1922.

A febre-amarela é uma doença viral transmitida pela picada de um mosquito. A vacinação erradicou-a da maior parte dos países, mas continua a matar nas zonas mais pobres do mundo. Só entre 1960 e 1962 fez cerca de trinta mil mortes na Etiópia.

O sarampo, que muitos de nós ainda apanhámos na infância obrigando-nos a ficar fechados no quarto quase às escuras, fez para cima de seis milhões de mortes em todo o mundo, até 1963. A par da varicela e da varíola, levadas pelos colonos da América, foi responsável pela morte de muitos povos indígenas daquele continente. Com a vacinação foi quase erradicado na maior parte dos países, mas continua a ameaçar e a matar ainda atualmente.

A malária, a pior doença parasitária da atualidade, encontra-se disseminada ainda por muitos países de clima quente e húmido, condições ideais, a par da pobreza, para o desenvolvimento das larvas do mosquito que a provoca. Só em África mata mais de três milhões de pessoas todos os anos.

O HIV, a doença que mais fez tremer o mundo quando surgiu nos anos 80 do século XX, já fez cerca de 22 milhões de mortes. O tratamento que está disponível no mercado é tão caro que o vírus continua a infetar e matar muita gente, principalmente nos países mais pobres de África, Ásia e América.

E algumas curiosidades:

Ligados às epidemias surgiram termos, crenças, práticas e conceitos que ainda hoje se mantém. Aqui ficam alguns:

Quarentena: É o período em que um indivíduo ou uma mercadoria têm que ficar isolados para evitar a propagação de uma doença. Dura normalmente o tempo de incubação do vírus ou da bactéria, que não é, normalmente, de quarenta dias. O termo surgiu por associação aos quarenta dias e quarenta noites em que Jesus se isolou no deserto da Judeia e, resistindo às tentações do demónio, saiu purificado.

Distância Social: É o espaço que é recomendado manter entre as pessoas ou os grupos para evitar o contágio de uma doença. No caso da atual pandemia a distância é de dois metros, mas a recomendação dessa medida já vem de longe. Diz-se que antigamente os médicos usavam um bastão com esse comprimento e colocavam-no entre eles e o paciente, durante a consulta, para evitarem o contacto físico.

Lazaretos: Eram os edifícios construídos para isolar e desinfetar os doentes ou mercadorias vindas de locais contaminados e evitar o contágio no seio da população. Na foz do rio Tejo existiu um lazareto, na zona de Porto Brandão, onde eram colocados em quarentena os barcos e viajantes vindos de longe, já no início das viagens marítimas.

Provavelmente relacionado com esse local, existe no concelho de Almada uma localidade chamada Lazarim. Em Coimbra e Lisboa existiram também os hospitais de São Lázaro, destinados ao acolhimento e cuidado dos leprosos.

O nome tem a ver com Lázaro, um homem que terá morrido de lepra e Jesus ressuscitou.

Os santos protetores: As doenças, principalmente as contagiosas, eram consideradas castigos de Deus pelos pecados dos homens. Para apaziguar a ira divina as populações arranjavam intermediários (os santos) a quem recorriam para pedir proteção. Existem na Igreja 875 santos protetores, para 223 doenças diferentes. Cinquenta e três são “especializados” na proteção contra a peste; São Sebastião e São Roque são os mais conhecidos e venerados. São Sebastião porque, tendo sido martirizado com lanças que lhe deixaram o corpo coberto de feridas abertas, conseguiu sobreviver. Acreditava-se que quem se “apegasse” com ele também se salvaria. São Roque terá ajudado a tratar muitos contaminados pela peste. Ele próprio terá contraído a doença, como prova a chaga que mostra numa das pernas.

Acreditava-se também que a peste “recolhia” aos santos, aliviando as pessoas, porque, quando saíam nas procissões, as imagens enegreciam. De facto ficariam mais escuras, mas era por efeito das fogueiras e defumações com enxofre que se faziam por todo o lado para purificar os objetos, as casas, as ruas e mesmo as pessoas. Há tempos, numa reportagem da televisão passada no Alentejo, alguém lembrava que no tempo da pneumónica soltavam as vacas pela aldeia porque se acreditava que a doença “recolhia” a elas. Estariam agora a pensar fazer o mesmo.

Sobre a construção de capelas dedicadas a muitos destes santos protetores nas entradas das localidades, o José Teodoro acrescentou uma nota na publicação do dia 24 de março (São Roque e Lisboa) que ajuda a compreender essa prática. Em São Vicente houve várias capelas que, há uns cem ou duzentos anos, estariam mesmo no limite da Vila; algumas deixámo-las cair, talvez porque se pensasse que não íamos voltar a necessitar da proteção dos seus santos. Enganámo-nos…

M. L. Ferreira

Nota: O título deste artigo é também o de uma emissão do programa Encontros com o Património, da TSF, de onde retirei muita da informação que aqui deixei.