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sábado, 26 de novembro de 2016

Canja de cobra

O sacristão Manuel subiu as escadas da torre e encostou-se à varanda voltada para o cimo da vila, a saborear o ar fresco da manhã. De seguida pegou nos badalos e começou a badalar as ave-marias. O sol ainda se escondia por detrás da Oles, mas aos poucos inundou toda a vila e campos em redor. Camponeses, jornaleiros e proprietários iam a caminho das hortas para iniciarem mais uma jornada de labor.
O portão do quintal da casa do César abriu-se e o ganhão Dionísio à frente do carro de bois seguiu pela rua das Laranjeiras, em direção à Fonte Velha, a caminho da Tapada do João Gago. Todos os ganhões; “e eram muitos” seguiam cada um sua vida. Alguns dirigiam-se aos pinhais carregar lenha para os fornos comunitários…
Jornaleiros trabalhavam de sol a sol.
Antes de partirem para os trabalhos campestres muitas pessoas assistiam à missa da manhã.
Quando os homens trabalhavam perto da vila as mulheres levavam-lhes o café “por volta das dez da manhã fazia-se uma pausa”. À uma hora, ao toque das trindades, jornaleiros paravam os trabalhos, jantavam e dormiam a cesta. À tarde, nova paragem para se merendar: Um naco de pão com umas azeitonas, uma fatia de queijo…
Naquela época um novo prior tinha chegado há poucos meses à vila, depressa granjeou a simpatia do povo, sempre bem-disposto, comunicativo, mestre-escola…
Ao novel hospital chegavam doentes de toda a freguesia e das freguesias vizinhas para encontrarem a cura dos seus males. Em frente situava-se o tronco do senhor Bonifácio, quando não havia alimária para ferrar ele e o seu ajudante Joaquim da “burra” faziam ferraduras e canelos. Joaquim da “burra” de vez em quando gritava, rebolava no chão cheio de dores.
Meu pai dizia que lhe saiam as tripas “mais tarde soube que era quebrado”.
Ciganos acampavam detrás da capela de São Sebastião e o mestre Ventura juntamente com seus filhos fazia carros de bois na oficina que ficava por baixo da sua casa. Certa vez; eu ia a passar, encaro com uma cigana a esfolar uma cobra, uma panela de ferro aquecia água na fogueira, cortou-a em vários pedaços e meteu-a na panela. Assustado, segui caminho com a cesta na mão onde ia o jantar do meu pai. Quando cheguei à Oles, contei-lhe e respondeu-me:
- As cobras fazem uma canja tão boa ou melhor que a canja de galinha
Não fiquei convencido…
Era o tempo das malhas, ganhões transportavam faixas de centeio, trigo, para as eiras.
A eira da dona Luz estava cheia de rolheiros.
Malhadores desatavam os nagalhos, estendiam as faixas, ouviam-se os manguais com cadência ritmada debulharem as espigas, a palha ia sendo retirada ficando a semente misturada com as praganas, à tardinha aproveitando a nortada, procediam à sua limpeza enchiam um meio alqueire que levantavam no ar e iam lançando a semente para a eira, o vento empurrava as praganas e as rabeiras. A semente caia em cima de umas giestas, aos poucos o monte crescia, os catxiços eram retirados e juntavam-se a um canto. A palha de centeio aproveitava-se para as enxergas, a trigueira não prestava, desfazia-se, dava-se aos animais.
O ar fresco dava lugar ao calor que se tinha feito sentir durante o dia, os notáveis, remediados e os ricos da vila reuniam-se em São Sebastião, sentavam-se nos cais que cercam a capela, cavaqueavam sobre os mais diversos temas.
Uma das pessoas habituais nas tertúlias estivais daquela época era o padre José David.
Conversa puxa conversa “são como as cerejas”; a certa altura diz:
- Meus amigos; quando cheguei a São Vicente a primeira pessoa que confessei foi uma mulher; disse-me que era bruxa, fiquei sem saber o que lhe havia de dizer, não contava com tal segredo. Absolvi-a e, como penitência mandei-a rezar cinco pai-nossos e cinco ave-marias.
Eis senão quando na estrada passa uma mulher com um cesto à cabeça cheio de hortaliças:
- Boa tarde; saiba vossa reverência que tenho a consolação de ser a primeira pessoa que vossa reverência confessou na nossa terra.
O padre ficou sem pinta de sangue, todos os presentes ficaram a saber quem era a bruxa.
Anoitecia, sacristão tocava as ave-marias. À vila chegavam os camponeses, jornaleiros… na Fonte Velha sentavam-se nos cais com a enxada ao lado, as mulheres esperavam a sua vez para encher cântaros, regadores… algumas passavam com o tabuleiro à cabeça deixando um rasto cheiroso e agradável a pão acabadinho de cozer.
Outros, entravam na taberna do João coxo e emborcavam um cajeirão.
Fiquem bem.

J.M.S 

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Pedintes

Naquele tempo a vida diária na vila era muito vagarosa, medieval. As três classes da sociedade medieva ainda imperavam. O clero estava acima na pirâmide social, o senhor vigário era uma pessoa respeitada ou temida, à hora da catequese mesmo os mais arredios tinham que deixar as brincadeiras, as rotinas diárias e entrar na igreja para aprender a doutrina.
As catequistas pacientemente ensinavam o pai-nosso, acto de contrição, confissão, credo, salve-rainha… Senhoras Matilde, Resgate, irmãs passaraças, Estela e Maria, menina Maria de Jesus;  as irmãs professoras, Susana e Teresinha…  Mestras do catecismo boas e pacientes. Se por ventura algum catraio não entrasse na igreja à hora marcada, o padre Tomaz ralhava, ameaçava que diria ao pai.
Naquela época ainda se viam homens, mulheres, crianças descalças; as mulheres do Casal da Serra trocavam o calçado atrás da capela de São Sebastião. As que viviam na charneca trocavam as chinelas debaixo da sobreira que ainda hoje existe no Casal, à entrada da quelha que dá acesso à ribeira; quando regressavam às suas casas, os sapatinhos eram guardados e voltavam a calçar umas alpergatas ou faziam o percurso descalças.
Os senhores eram os donos de quase tudo, as melhores terras pertenciam-lhes, as melhores casas eram deles e situavam-se nos locais mais nobres da vila. A praça atesta aquilo que estou explanando: o clero com duas igrejas, a nobreza com seus solares e o mais nobre de todos, ao menos isso, a domus municipalis, símbolo do povo.
Para os senhores trabalhava o povo de sol a sol, a troco de uma escudela… No tempo da azeitona, aos colhedores por cada oito ou nove litros de azeite cabia-lhes um; os rendeiros, para além de pagarem uma determinada quantia em dinheiro, tinham que levar ao senhor uma cesta com os melhores frutos; as uvas, a azeitona eram para os senhores, o desgraçado estrumava, cavava e só arrecadava o que a terra produzia com muito trabalho e suor:- batatas, cebolas, couves, figos, maçãs…
Se isto não eram tempos medievos!
Aos “nobres” não lhes interessava nada que alguém quisesse progredir, um exemplo flagrante foi a construção da serração, a fábrica, que empregava no primeiro quartel do século umas duas dezenas de pessoas. Quanto tempo durou?
Há um dito que diz: "Os espanhóis foram conquistando… quando encontraram pedras deixaram aos portugueses." Quem passar por Salamanca, Ciudad Rodrigo e por aí fora, em redor da estrada a paisagem, apesar de seca, não é pedregosa. Assim que entramos em Vilar Formoso, começam as serranias graníticas, pedregosas, giestais, matorrais…
Na vila acontecia a mesma coisa: Casa Conde, Casa Cunha, Casa Visconde de Tinalhas e por aí fora. O pobre tinha as serras, courelas pobres difíceis de arrotear, caminhos mal andamosos, estreitos e tortuosos, onde só passava o homem e o burro.
Parece que tudo isto se passou há uma porradoria de lustros, mas não.
As coisas só começaram a mudar com a partida dos homens para as Franças… as guerras de África, as saídas para Lisboa… Todos tinham um objectivo comum, a melhoria das condições de vida, melhores ordenados, menos horas de labor diário. Os que ficavam, os senhores não tinham outro remédio senão acompanhar a evolução dos tempos.
A prosa já vai longa e ainda não escrevi nada sobre a ideia que me fez escrevinhar todas estas palavras.
           
Naquela época, estávamos ainda nos anos cinquenta do passado século, de vez em quando os tambores rufavam pelas ruas basálticas da vila, comediantes anunciavam a sua chegada. Na praça montavam o trapézio, à noite comediavam e o povo encantava-se com as momices que se iam desenrolando.
Os porcos eram criados paredes meias com as pessoas, as furdas situavam-se nas lojas rés-do- chão das habitações. Não eram só os porcos que lá viviam; burros, galinhas, vacas… As ruas eram “enfeitadas” com bostas, galinhas esgravatavam à procura do milho rei. Os ganhões transportavam nos seus carros toda a espécie de géneros, os rodados iam desgastando os granitos que se encontravam nos caminhos, deixando sulcos por onde escorriam as águas na estação invernal. A miséria campeava, era rainha em muitos lares, de vez em quando apareciam pessoas que andavam de porta em porta a pedir, eram os pedintes.
Um deles era o Mudo da Torre, pessoa simples, andrajosamente vestido, bonacheirão, risonho, não fazia mal a uma mosca. Quando o víamos, não o largávamos e clamávamos: "Mudo da Torre… Mudo da Torre." Voltava-se para nós com um brilhozinho nos olhos e um sorriso nos lábios, tirava a gorra levantava-a no ar e dizia "É! É! É! É…" e nós voltávamos ao princípio "Mudo da Torre…"
Havia um que era o oposto do Mudo da Torre, chamava-se Diamantino. Timantino um homem alto, bem-posto, fato coçado, andar meio torcido, na cabeça usava uma boina. Parece que era natural da Lardosa. Até certa altura tinha tido uma vida estável, uma desavença e foi parar à cadeia onde passou alguns anos. Quando saiu, transtornado com a vida, passou-se. Andava de terra em terra a pedir, Mudo da Torre aceitava tudo que lhe davam, Timantino só pedia nas casas ricas. Nós, os catraios, um pouco afastados, atanazavamo-lo gritando: "Ó Timantino… Ó Timantino, Tino, Tino…". Com cara de mau, corria atrás de nós com uma faca na mão…
Havia um pedinte discreto, natural de Niza. Uma vez por ano visitava a casa do senhor José Lourenço que lhe dava uma esmola.  José Lourenço era o senhor todo-poderoso da Casa Conde, punha e dispunha, ia às feiras ver os gados, comprava, vendia… Este pedinte, quando saía, dizia-lhe: "Senhor José, se algum dia passar por Nisa, terei muito gosto em o receber na minha casa."
O feitor sorria amareladamente. Certo dia, resolveu ir a Nisa a uma feira e lembrou-se de o procurar. Dirigindo-se a um transeunte, perguntou onde morava o tal pedinte, este só faltou pôr-se em sentido. "Vá por esta rua abaixo, a sua casa fica ao fundo da rua."
Seguiu as instruções do transeunte e quando chegou ao local indicado disse para o criado que tinha ido com ele: "Não pode ser esta a casa, isto é um palácio."~
Em todo o caso, bateu à porta e imediatamente aparece um criado. "Diga ao seu patrão que está aqui o José Lourenço de São Vicente da Beira…" Subiu as escadas do casarão e aparece à sua frente o pedinte. O pobre era mais rico que ele. "Olhe senhor José, foi a pedir que consegui o que tenho."
A partir dessa altura nunca mais voltou à vila.
Naquela época ainda havia usos, costumes e preconceitos muito arreigados entre as populações, as sociedades viviam em espaços rurais muito fechados, o espírito comunitário imperava, assim como a miséria grassava e campeava. Havia uma coisa nos nossos dias cada vez mais rara: alegria. As pessoas mesmo com a barriga vazia mourejando de sol a sol, cantavam, ajudavam-se e à noite, ao toque das ave-marias, viam-se ranchos que regressavam às suas casas rezando ou galhofando.
Hoje não falta nada, mas falta o principal que se chama alegria e amor solidário.
Fiquem-se com mais esta: A ambição cerra o coração; mas o amigo conhece-se na adversidade; em contrapartida, o amigo fingido conhece-se no arruído.


J.M.S

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Fui aos Chocalhos


Fui aos chocalhos; aproveitei o primeiro dia, andamos mais à vontade, menos pessoas; gostei.
A câmara do Fundão e a junta de freguesia de Alpedrinha em boa hora criaram este evento. Já lá vão quinze anos, único na região, quiçá em Portugal. Atrai milhares de pessoas de toda a nossa Beira e país.
No belo solar do Picadeiro “Sarafanas” estava uma representação dos amigos espanhóis, não sei se foi este ano a primeira vez, já se internacionalizou. Ruas medievais apinhadas de gente; janelas, portas, lojas escancaradas onde se expõem os mais diversos produtos:- gastronómicos, artesanais, artísticos… Diversão a rodos, bombos, pandeiros, gaitas de fole, conjuntos, pífaros… a animação, é grande.
Dá gosto passear pelas ruas da bonita Alpedrinha, as casas bem conservadas mantêm a traça original. Solares, capelas, a bela igreja paroquial, a monumental fonte, o palácio do picadeiro, a capela do leão que nos recorda o célebre cardeal. Parece que era aparentado com o nosso D. Álvaro da Costa. Ilustres, os Costas.
Fui aos chocalhos; há alguns anos que lá não ia, deixei o carro num parque improvisado junto ao cruzamento das Atalaias, os autocarros transportam-nos para o local, tudo muito bem organizado.
A nossa vila também foi testemunha do fenómeno transumante; era garoto, na estrada nova passavam enormes rebanhos de ovelhas a caminho do Alentejo. No outono desciam a Estrela, na primavera regressavam na direcção dos montes Hermínios. Era um espetáculo bucólico, pessoalmente adorava ver. O chocalhar misturado com os assobios e as ordens dos pastores, formavam uma campestre orquestra. Eram às centenas as ovelhas, uma nuvem de pó à medida que passavam, pastores com seus safões, manta e alforge caminhavam. “Caminho faz-se caminhando, não é verdade”!
A vila possuía também grandes rebanhos, na casa conde havia um canzarrão enorme chamava-se leão; só lhe faltava a juba, o pescoço estava enfeitado com uma grande coleira de picos de ferro por causa dos lobos. Dizem que quando atacam atiram-se logo ao pescoço do animal. O Leão estava protegido, um animal corpulento como ele não precisaria. De vez em quando ia à praça passear, nós os catraios, fazíamos festas ao Leão. Cabradas, ovelhadas; à noite, quando regressavam das pastagens, o chocalhar e campainhar alegravam nossos largos e ruas.
Não chegou a meio século para a sociedade se transformar radicalmente. O chafariz já não mata a sede aos animais, é uma peça decorativa, as bicas da fonte velha já não enchem cântaros, regadores, baldes…
O mundo pula e avança …
Resta a recordação.


J.M.S

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Quadros da nossa história

Era uma vez…
Todas as histórias começam assim.
Há muitos, muitos séculos; clima ameno, água pura que brotava das encostas verdejantes; a serra começou a servir de refúgio a muita gente que fugia dos invasores…
Tendo em conta a necessidade de se defenderem constroem num local inexpugnável da serra um castelo.
Durante muitas gerações viveram no alto da montanha apascentando seus rebanhos, vivendo da caça e da pastorícia.
Os vales já não ofereciam perigo, depois de duras guerras entre cristãos e sarracenos; no sítio da Oles travou-se uma grande batalha entre cristãos e mouros; diz a lenda.
Ei-los descendo as encostas serranas e agrestes caminhando para os vales e planícies mais férteis e amenas. Pouco a pouco abandonam o castro “Castelo Velho” A fronteira cristã já se encontrava mais ao sul.
Do velho castelo nada resta; amontoados de pedras, as populações que habitavam aquelas paragens partiram:-uns para o lado nascente, outros para o poente.
Os primeiros certamente por estarem mais expostos a invasões construíram um castelo novo. Os que partiram para a encosta poente nunca construíram outro, ficariam conhecidos por Trans Serre (Trás da Serra).
Uns e outros fazem suas vidas, acessos difíceis, os contactos foram rareando, cresceram duas novas comunidades.
Os moradores de Trás da Serra ao fixarem-se no campo construíram suas cabanas nas vinhas. Naquele lugar encontram-se numerosos vestígios da ocupação humana” pedaços de telhas, talhas, mós…
Talvez não fosse o melhor sítio para se viver “escassez de água, muitas formigas, ou outro motivo”!, abandonaram-no, resolvem habitar um pouco mais acima nas faldas da serra Guardiã onde fundam um novo povoado, muita água, nateiros que bordejam a ribeira.
Foi crescendo o povoado.
A independência nacional estava consolidada, certo dia o povo reuniu no largo principal, depois de muito conversarem decidiram que alguns tinham que ir à capital do reino oferecer a terra ao rei. Ouçamos:

Primeiro homem bom: Vizinhos e familiares, estamos reunidos para debatermos um assunto muito importante para o nosso povo, a independência do reino foi alcançada, alguns de nós têm que ir a Lisboa oferecer a nossa terra a el-rei nosso senhor
Segundo homem bom: Devemos entregar a nossa terra à protecção do nosso rei e senhor D. Afonso Henriques.
Terceiro homem bom: Estou convosco, mas não contem comigo para ir a Lisboa.
Primeiro homem bom: Porque?
Segundo homem bom: Tenho a vinha para colher e as terras para lavrar.
Primeiro homem bom: Alguns terão que ir
Terceiro homem bom: A minha égua anda manca, não me vou meter ao caminho com ela assim.
Primeiro homem bom: Alguém tem que ir.
Todos em uníssono: Podes ir tu, tu, tu…
Primeiro homem bom: Assim aos berros ninguém se entende, vamos às sortes. Eu não me importo de ir, haja quem me acompanhe.
Quarto homem bom: Podes contar comigo, responde o quarto homem bom.
Segundo homem bom: Eu vou.
Primeiro homem bom: Vamos os quatro, de hoje a oito dias, abalamos de madrugada.
Quarto homem bom: Povo de Trás da Serra, no dia quinze de Setembro nós os quatro vamos a Lisboa oferecer a nossa terra a el-rei nosso senhor D. Afonso Henriques.

Narrador: Os dias foram passando, iguais como todos os dias, tirar as cabras do bardo, as ovelhas do redil. Finalmente o grande dia chegou.
Mulher do primeiro homem bom: Meu querido homem, que a jornada te corra bem, que Deus Nosso Senhor te acompanhe, agasalha-te bem à noite, tem cuidado com os salteadores, com os lobos e não te percas. Voltai depressa!
Mulher de outro homem bom: Adeus meu rico homem, faz boa viagem, que Nosso Senhor te cubra com sua sombra.
Um filho: Pai, sua bênção.
Primeiro homem bom: Adeus amigos, adeus a todos…já lá vem a aurora; vamos.

Narrador: Pernoitando aqui, descansando ali, a jornada correu sem grandes sobressaltos, chegaram a Lisboa no dia vinte e cinco de Setembro do ano da graça de 1173. Muita gente a sair de uma igreja, duas alas se vão formando.

Primeiro homem bom: O que é isto que nossos olhos estão vendo, nunca vimos tanta gente.
Terceiro homem bom: Perguntemos àquele ancião. Olhe lá, vossemecê diga-nos o que vem a ser isto.
Ancião: Vossemecês não são de cá, pois não?
Os quatro homens bons: Não senhor.
Ancião: São os restos mortais do mártir São Vicente que estão a ser levados da igreja de Santa Justa para a Sé.
Primeiro homem bom: Quem foi esse santo?
Ancião (pacientemente): Foi um diácono hispânico, natural da cidade de Valência, que os romanos mataram por não ter querido renegar a fé de Cristo Nosso Senhor. É um grande santo, seu corpo foi levado secretamente para o nosso Algarve onde o sepultaram. Por ordem de el-rei D. Afonso Henriques os restos mortais vieram para Lisboa num barco, desde o promontório de Sagres até Lisboa dois corvos acompanharam as santas relíquias, olhem; vinha um à proa e outro à popa.
Segundo homem bom: Muito bem! E quem é aquele?
Ancião: É o nosso rei e senhor D. Afonso Henriques que se dignou acompanhar as venerandas relíquias.
 Primeiro homem bom: Bem haja bom homem. Não podemos perder o rei de vista

Narrador: Findas as cerimónias, os moradores de Trás da Serra dirigem-se ao rei.
Primeiro homem bom: Alteza real, vimos da Beira Serra onde fundámos um povoado, Trás da Serra é o seu nome, vimos oferecer a nossa terra e todos os nossos pertences ao nosso rei e senhor.
Afonso Henriques: Estou grato, aceito a vossa terra, como prova do meu agradecimento e alegria vou-vos oferecer um tesouro, tendes que o guardar para todo o sempre. Acompanhai-me.
Quarto homem bom: Onde nos leva o rei! Vamos entrar na Sé.
Afonso Henriques: Tomai este osso do queixo do mártir São Vicente, guardai-o religiosamente, a partir deste momento a vossa terra deixará de se chamar Trás da Serra e passa a chamar-se São Vicente.
Os quatro homens bons: El-rei nosso senhor, bem- haja
Primeiro homem bom: Majestade, aceitai estes humildes presentes, fruto do nosso trabalho. Isto é um pote de mel, aquele é um odre de azeite, uma canada de vinho, neste alforge estão enchidos das nossas salgadeiras; presuntos, chouriços…
Afonso Henriques: Bem-haja, que Santa Maria Nossa Mãe vos acompanhe de regresso à vossa terra, ao nosso São Vicente

Narrador: Contentes e felizes regressam; o povo recebe-os festivamente no largo principal.
Primeiro homem bom: Trazemos duas grandes notícias de Lisboa. El-rei D. Afonso Henriques com quem tivemos o privilégio de falar ofereceu-nos esta relíquia de um mártir que morreu pela nossa santa fé de nome Vicente, disse-nos para a guardarmos religiosamente na nossa terra. Só nós e Lisboa possuímos relíquias deste santo, aceitou a nossa terra e a partir de agora por vontade sua passa a chamar-se São Vicente. Viva o nosso rei
Todos: Viva… Deus o proteja.

Narrador: A comunidade Vicentina crescia, os dias e as noites sempre iguais; alguns anos mais tarde..
Arauto: Avisam-se todos os vizinhos desta nossa terra de São Vicente que faleceu no passado dia 6 de Dezembro deste ano da graça de 1185 nosso rei e senhor D. Afonso Henriques; sucede-lhe seu filho D. Sancho I. VIVA O REI!

Narrador: D. Afonso Henriques foi o “pai” de São Vicente, D. Sancho seu filho, concedeu-lhe a carta de alforria. Todo o povo reunido no largo escuta atentamente.
Primeiro homem bom: Perante todos vós, quero transmitir-vos o seguinte:-D. Sancho I concede-nos um foral que nos faz a partir deste momento cabeça de um grande território. Começa assim:
Em nome da Santa e Individua Trindade, Padre, Filho e Espirito Santo amem. Eu, rei Afonso filho do rei Sancho juntamente com minha mãe rainha Dulce e ao mesmo tempo com Gonçalo Martins prior de São Jorge e todo o seu convento e com frei João de Albergaria de Poiares queremos restaurar e povoar o lugar de São Vicente
Damos e concedemos o foro e costumes da cidade de Évora a todos, tanto presentes como futuros que lá quiserem habitar…
(Seguem-se todas a regalias e obrigações que cada morador tem)
A terminar, o documento menciona os limites de São Vicente que vão pela ribeira de Almacaneda e segue a corrente até ao fundo do vale do Peral, ao fundo entram em Almacaneda e entra em Rio de Moinhos no Ocresa, depois pela água de Ocaia! Vai até à Portela de São Vicente.
Eu rei Afonso, juntamente com minha mãe rainha dona Dulce, autorizamos e confirmamos esta carta com nossas próprias mãos.
Todo o que quiser rasgar este facto nosso, seja amaldiçoado de Deus. Concedemos a todo o cristão embora servo que habitar durante um ano em São Vicente seja livre e ingénuo.
João Venegas; presbítero, notou.
Eu, rei Sancho de Portugal confirmo. Eu, infante Fernando filho do rei Sancho confirmo. Eu, infanta dona Teresa, confirmo. Eu, Gonçalo Martins, prior de São Jorge e todo o seu convento confirmamos.
Frei João de Albergaria, confirmo
Os moradores de São Vicente não têm poder de vender, nem dar suas herdades enquanto não as sirvam por um ano, depois; vendam ou deam a quem quiserem
João Fernandes, testamenteiro; Mendo Pelágio, testamenteiro; Martinho Fernandes, testamenteiro; D. Julião, testamenteiro; Gonçalo Martins, testamenteiro; Didaco Cavaco, testamenteiro; Pelaio Rutura, testamenteiro; e Fernando Soares, testamenteiro
Feito no dia 22 de Março do ano da graça de 1195
Quem quiser saber tudo mais pormenorizado venha à minha humilde casa que leio e explico.
Todos: Viva São Vicente, viva a nossa vila, viva o nosso rei e senhor D. Sancho!

Narrador: Passavam os séculos, a vila sempre a crescer, tornou-se uma das terras mais importantes das Beiras.
Vigário: Fidalgo, estou velho, os anos passam, quero deixar os meus bens à Albergaria, é uma instituição que cuida dos pobres, dos doentes, dos que nada têm.
Fidalgo: Vossa reverência padre Estevão Anes é quem sabe.
Vigário: Deixarei os meus bens à Albergaria do Santo Espírito. Amanhã, dia 22 de Abril do ano da graça de 1363 chamarei o escrivão à minha casa. Conto com a vossa ajuda.

Narrador: Esta instituição antecede as misericórdias. A primeira vez que a palavra misericórdia é relatada, “até prova em contrário”, menciona que uma senhora casada com um senhor de nome Crespo, faleceu no dia 15 de Dezembro do ano 1572, foi sepultada na igreja da misericórdia. Em 1363 já existia na vila uma  albergaria assistencial.
As misericórdias foram fundadas pela rainha dona Leonor, a primeira a ser criada foi a de Lisboa, no dia 15 de Agosto do ano 1498.

Narrador: Continua o progresso e o engrandecimento da vila. Em Coimbra, no dia 20 de Agosto do ano 1469, D. João, ainda regente, confirma o foral; seu pai D. Afonso V ainda era vivo. Quarenta e três anos depois, D. Manuel l reforma-o em Lisboa, no dia 22 de Novembro do ano 1512

Narrador: Dona Teodósia da Paixão, à saída da missa.
Teodósia da Paixão: Senhor vigário, é meu desejo fundar um convento na nossa terra.
Vigário: Vou enviar uma carta ao senhor bispo a informá-lo.
Dona Teodósia: Dê-me novas o mais rápido que possa.
Um popular: A Dona Teodósia vai fundar um convento na nossa terra.
Outro popular: É uma santa, tem sempre qualquer coisa para dar aos pobres.
Vigário: Senhora, chegaram novas do senhor bispo, ele concede esse privilégio à nossa terra.
Dona Teodósia: Deus ouviu minhas preces. Obrigado, meu Deus!
Narrador: Dona Teodósia da Paixão foi a fundadora e a primeira abadessa do convento de monjas clarissas de São Vicente da Beira. Do velho mosteiro nada resta; desculpem: escapou um pórtico à voragem dos homens.

Narrador: Os tempos passam, a certa altura em São Vicente surge mais um momento histórico
Anónimo popular: Senhor D. António, para onde vai com tanta pressa!
D. António: Quarenta bravos e valentes conjurados colocaram novamente rei português no trono de Portugal, mataram o traidor Miguel de Vasconcelos e obrigaram a duquesa de Mântua a deixar Portugal.
Anónimo popular: Vou tocar os sinos, senhor D. António de Azevedo.
D. António: Vai, toca-os com todas as tuas forças, este dia é de festa, de alegria e de esperança no futuro.
Populares: Que se passa! Os sinos não param de tocar, vamos à praça.
D. António: Vicentinos, vizinhos, amigos; o poder dos Filipes terminou, sessenta longos anos de obscurantismo acabaram, temos novamente rei português. Viva nosso rei e senhor D. João IV. Uma conspiração havida em Lisboa no dia 1 de Dezembro deste ano da graça de 1640, quarenta patriotas derrubaram o rei estrangeiro. Viva Portugal, viva o rei. Deixem-me partir, vou à vila de Castelo Branco aclamar o nosso rei.
Anónimo popular: Este senhor D. António de Azevedo Pimentel é um grande vicentino.

Narrador: Foi o primeiro a levantar voz a favor do rei português nas vilas de Castelo Branco e São Vicente. O tempo sempre velho e sempre novo passava, a pacatez da vila foi mais uma vez alterada.
Criado: Senhor comendador, uma carta de el-rei.
D. João: Deixa-me ver, era o que eu esperava, nosso rei D. Afonso VI concede-me o título de conde de São Vicente. Eu, João Nunes da Cunha, a partir desta data 2 de Abril do ano da graça 1666 sou o primeiro conde de São Vicente.
Narrador: Algum tempo depois recebe outra mensagem.
Isabel de Borbon: Senhor, que diz essa carta?
D. João: Sua alteza real quer que vá para a Índia ocupar o lugar de vice-rei.
Narrador: Nesse mesmo ano embarcou para a Índia, foi o trigésimo vice-rei. Faleceu na Índia no mês de Outubro do ano 1668. Dona Maria Caetana Vilhena e Cunha, sua filha, foi a segunda condessa, casou com o senhor D. Miguel Carlos de Távora que, pelo casamento, passou a ser o segundo conde de São Vicente.

Primeiro popular: Os sinos estão a dobrar, vou à praça ver o que se passa, se calhar morreu o senhor padre José, tem estado muito mal.
Segundo popular: Oh Maria, os sinos estão a dobrar há tanto tempo, o que é que se passa?
Maria: Vossemecê não sabe! Foi o senhor padre José Estevão Cabral que morreu.
Narrador: Foi um sábio, nasceu em Tinalhas no dia 22 de Fevereiro do ano da graça de 1734, aos catorze anos partiu para Coimbra para estudar no colégio dos jesuítas. O marquês de Pombal extinguiu a ordem em Portugal. Seu pai, abastado lavrador, foi a Coimbra convencê-lo a vir para Tinalhas, mas ele não aceitou e partiu para Roma.
O papa Clemente IV nomeou-o mestre do colégio romano. Trinta anos depois regressa a Lisboa. Grande conhecedor da hidráulica, a rainha Dona Maria I encarrega-o de estudar os rios Tejo e Mondego. Publicou vários livros sobre essa matéria. Hoje, dia 1 de Fevereiro de 1811, expirou um homem notável do nosso concelho.
Viveu os últimos anos da sua vida em São Vicente da Beira
Terceiro popular: Além vai o cortejo fúnebre a caminho da sua terra natal, que Deus o tenha em bom lugar.
Tanta gente a acompanhá-lo!

Padre Simão: Afilhado, estou velho e alquebrado, tenho pensado seriamente naquilo que hei de fazer à fortuna que possuo. Gostaria de fazer alguma coisa pela nossa terra, que achas? Uma obra social?
Padre José: Padrinho, a sua ideia é boa, mas o Sobral é uma terra tão pequena, porque não construir em São Vicente? Tem um passado histórico riquíssimo, é sede do concelho, localiza-se num lugar central, ao passo que o Sobral está numa ponta…
Padre Simão: Tens razão, afilhado; São Vicente está bem localizado, a nossa terra fica perto, vou pensar na tua ideia.
Narrador: O padre José Davide dos Reis foi um grande professor e um grande amigo de São Vicente. Provedor da Santa Casa, foi ele o mentor e o principal responsável para que o padre Simão Duarte do Rosário deixasse a sua fortuna à Santa Casa. Com a sua fortuna, construiu-se o grande hospital que ficaria a servir todas as freguesias vizinhas, vontade sua.
Padre Simão: Afilhado, tens razão, será na vila que irei construir o hospital. Fique desde já assente, servirá a vila, o Sobral, Louriçal, Ninho do Açor, Tinalhas, Almaceda…
Padre José: A sua vontade será feita.
Narrador: Em 1894, nascia um grande edifício, o hospital da misericórdia de São Vicente da Beira. Possuía bastantes bens, com o advento da república a maior parte do seu património foi confiscado. Tinha propriedades no Ninho do Açor, Lardosa, São Vicente… Começou a sobreviver de donativos, cortejos de oferendas.
Outro grande benemérito, foi o doutor Silva Lemos, natural da cidade do Porto, deixou todo o seu património ao hospital. Com o seu dinheiro construíram-se as casas do bairro.
Em 1952 realizou-se um grande cortejo de oferendas. Nessa altura o poeta popular senhor José Lourenço editou um pequeno livro de versos onde narra toda a história do cortejo.
(…)
Deram os comerciantes
-Que em seus carros bem se via-
Muita coisa proveitosa
Roupas e mercearia!

Lá vinham os nossos ranchos
Todos tão bem ensaiados
Que nos deixaram absortos
-Completamente encantados

Lá vinha o Mestre Ventura
Na bigorna a martelar
Co`seu porta voz fingido
E o seu fole a trabalhar

Chegaram os lavradores
Com tantos produtos seus
-Tão úteis e variados
Que eram um louvar a Deus!

O do Ninho do Açor
Foi o que primeiramente
Deu entrada no cortejo
Co`seu carro de semente

Vinham os carros das Quintas
Todos bem apetrechados
-Neles as donas de casa
Bem mostraram seus cuidados

Viu-se o carro dos Pereiros
A correr por ali fora
Ia ficando p `ra traz
Por vir à última hora!
(…)

A Santa Casa chegou a ter 75 propriedades.

Com a queda dos morgadios, o apoio a D. Miguel na guerra entre absolutistas e liberais, começou a decadência da vila.
Era composto este antigo concelho pelas freguesias de Sobral do Campo, Louriçal do Campo, Ninho do Açor, Freixial do Campo, Tinalhas, Povoa Rio de Moinhos ”justiça”. Com a queda do concelho de Sarzedas, Almaceda passou para o concelho de São Vicente
A partir do terceiro quartel do século dezanove, o concelho começou a esboroar-se até à queda final que aconteceu em 1895.
Atualmente, todas a freguesias deste antigo concelho pertencem ao grande concelho de Castelo Branco.
E depois! Morreram as vacas, ficaram os bois


J.M.S

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Cultura, anos 80

            Andava eu procurando uns apontamentos “que ainda não achei”, quando encontro este folheto do Teatro Experimental de São Vicente. Divulga mais uma peça teatral, desta feita um auto do grande poeta e dramaturgo Gil Vicente: “Auto da Barca do Inferno”. O encenador foi o professor Francisco Barroso “já nessa altura tinha queda para a arte de Talma” O teatro Morcego de Coimbra editou um livro da sua autoria, “Assim Fala Zaratustra”, uma adaptação teatral do meu cunhado Francisco. A tiragem foi de 500 exemplares, teve o apoio do ministério da cultura e da câmara municipal de Coimbra… adiante.




            A partir de certa altura, o grupo fez uma parceria com o Sport Clube de São Vicente da Beira. Embora ligados, continuavam autónomos. Rapazes e raparigas talentosos entregavam-se com denodo à arte de representar: Cila; António Candeias; Edite, “faleceu tragicamente num acidente de viação”; António Esteves; Manuel Leitão; Tó Luís; Luzita…
          O barracão paroquial era o nosso centro cultural. Filmes, teatros, exposições, colóquios, casamentos, baptizados… nele se instalou “através do padre Branco” uma pequena indústria:- confecção de malhas; mais de vinte jovens raparigas trabalhavam nesse espaço, fazendo camisolas…
            Tem história o barracão. A missão para que foi criado há muito terminou, fica a memória de tantos eventos que lá ocorreram.
        Aproveitando a embalagem, no mesmo momento encontrei este folheto da primeira exposição organizada pelo GEGA e que o “barracão” acolheu. Desde trajes antigos, uma grafonola, pedras com inscrições, cantareira… alguns objectos eram propriedade do grupo, outros foram cedidos temporariamente por particulares. O entusiasmo, a alegria, a entrega e o empenho, que muitos de nós demos ao trabalho de por de pé este acontecimento, contagiou as pessoas. A RTP veio fazer uma reportagem sobre o evento, foi um sucesso!



J.M.S


Belos tempos, boas recordações e grande encenador o Francisco Barroso! Pegou num grupo de jovens com diferentes ocupações e capacidades académicas e conseguiu pô-los a representar o "Auto da Barca do Inferno" e "Frei  Luís de Sousa, fazer os adereços e os cenários, (o Tó Luís era um artisa). Fizemos um grande sucesso e chegámos a representar em aldeias próximas.
Aqui ficam fotos dos mesmos:


Barca do Anjo e do Diabo.(Eu, a Cila, o Paulo Inês (parvo), Tó "patrão", 
Edite, Manuel, Maria José Lobo e Zé Carvalho.


Numa saída ao Casal da Serra.
Maria da Luz Teodoro

sábado, 11 de junho de 2016

Tempos gloriosos


Aproveitando a maré.... queria acrescentar mais uma fotografia desses tempos idos e "gloriosos". 
É mais um boneco que o meu primo João "Brito" tirou. Naquele tempo, ele, juntamente com o Chico do Caldeira, eram os fotógrafos de "serviço". 
Esta fotografia foi tirada num domingo à tarde no então novíssimo café do "João "Cagarola" tempos áureos da construção da barragem, a empresa Terbal "construtora do grande lago" empregava muitos operários, os cafés, os comércios fervilhavam de gente, durante dois anos o marasmo desapareceu. Quem não se lembra "rapazes e raparigas do meu tempo" do gira discos que lá existia. metia-mos uma moeda de dez tostões num orifício, escolhíamos um disco (Roberto Carlos, Roberto Leal, tango dos barbudos...) um braço ia buscá-lo e era uma torrente a deitar música.
Esta barragem foi a primeira grande albufeira do concelho, na freguesia já existia outra: "Sales Viana ou Penedo Redondo" que se situa na ridente povoação do Casal da Serra, custou 472.000$00 e foi construída em 1934.
A cidade com o tempo foi crescendo, a água daquela barragem passou a ser insuficiente daí a necessidade de se construir novo lago: desta feita o local escolhido foi o Casal do Pisco.
Adjudicada à empresa Terbal pela quantia de:-29.971.012$10; tem 16 m de altura, armazena 1.400.000 metros cúbicos de água; e por aí fora...
Do lado de baixo da barragem situa-se este lindo edifício "Lugar do Ainda" que se estava a transformar numa ruína. Aqui está um exemplo que deve ser seguido, a história da casa mantêm-se, o espaço enriquecido e valorizado. (Quem acode à casa Cunha!...).
O padre José Maria Sarafana do Rosário viveu os últimos anos da sua vida neste lugar, Fonte da Pipa. Era um homem alto, seco de carnes, coxeava um pouco, olhar penetrante e grave. Durante muitos anos, paroquiou as paróquias alentejanas de Bencatel, São Romão, o histórico santuário de Nossa Senhora da Conceição e a bela igreja de São Bartolomeu em Vila Viçosa.
Todos os dias o senhor Manuel "criado da casa" se deslocava na sua bicicleta à vila buscar o correio, comprar o pão...
Era um senhor forte, alto. Assim que chegava à fonte encostava o velocípede à parede da casa do senhor João "Coxo" (actual sede da banda), entrava na taberna, emborcava um canjirão e seguia à sua vida.
Com estes entretantos, quase me ia esquecendo da rapaziada da fotografia.
Da esquerda para a direita: Jaime Madeira (Jaime scanta) a fazer o seu cigarrinho; depois sou eu, o Zémanel mosca, enrolando o cigarro; Joaquim Ambrósio (Jaquim parrego) pensativo; José Augusto (Zé do café) empinando um caneco; por fim Madeira (Tó scanta) com o  cigarro pronto para ser fumado. Encenação...
Aqui deixo mais esta: Bebe vinho, mas nunca bebas o siso.

J.M.S

quinta-feira, 2 de junho de 2016

1895


1895, setembro; as parreiras deixavam ver entre a folhagem belos “gachos” de uvas prontos para serem colhidos, “algumas com muita parra e pouca uva”, as festas de verão estavam à porta; quarta-feira; lavradores e camponeses, começavam a faina, “embora alguns já andassem vindimando”.
Na Fonte Velha junto ao chafariz dornas, pipos, tonéis eram tratados com água para as aduelas incharem e o vinho novo não vazar por alguma frincha.
A praça municipal fervilhava de munícipes que vinham dos mais recônditos lugares para tratarem de assuntos inerentes às suas vidas, pagar a décima ou fazer compras no comércio que a circundava.
Ao fundo da praça ouvia-se o barulho cadenciado do martelo batendo na bigorna, ferrador não tinha mãos a medir ferrando as alimárias. O céu azul começou a toldar-se de nuvens escuras, grossas pingas começaram a cair, a poeira da praça num ápice se transformou em lama, a cachopada corria descalça lapacheirando-se uns aos outros.
Um cidadão com um saco na mão subiu o balcão da cadeia como habitualmente, entrou na câmara, entregou-o e saiu. Todos os dias fazia o trajecto S. Vicente, Castelo Novo à tarde; no outro dia de manhã regressava. Comboio levava e trazia as cartas, encomendas e todo o género de valores.
Uma carta chama a atenção ao presidente da câmara, “vinha do governo” ao lê-la, seu rosto ficou branco como a cal. Estava sonhando, só podia; dentro vinha uma cópia do diário do governo que suprimia o concelho, a chuva continuava a cair, o céu tristonho parecia querer comungar da mesma desgraça, o martelo continuava a bater na bigorna, as festas estavam à porta, o povo não queria acreditar, os principais monumentos da vila cobriram-se de faixas negras. “ o escudo que encima a velha fonte ainda se podem ver os pregos que serviram para o tapar com um pano preto, em sinal de luto”.
Ganhões atravessavam a praça transportando dornas cheias de uvas para serem desfeitas nas adegas. Os sinos dobravam, as pessoas choravam, a autonomia municipal deixou de existir.
A partir daquele momento a vila passou a ser uma simples freguesia sem qualquer poder administrativo. Depois; bem, depois, começou a debandada dos funcionários, a partida de muita gente para outras paragens, a vila a começou a fazer uma longa travessia no deserto. Durante muitas décadas o marasmo, o esquecimento, a apatia foram os “donos e senhores do burgo” sessenta e três anos depois a casa da câmara foi restaurada. As sonaves, os caibros e as telhas viam-se, não havia forro, os pardais e as andorinhas na primavera esvoaçavam fazendo seus ninhos nos caibros, de vez em quando uma chinca obrigava os alunos e terem que mudar as carteiras para que a água não caísse em cima das cabeças, os espaços onde outrora existiram repartições passou a haver jovens estudantes. Cada sala possuía duas classes; primeira com a terceira e a segunda com a quarta classe. Para além do quadro negro de ardósia na minha sala existia junto à janela um ábaco, as andorinhas e os pardais sobrevoavam o espaço chilreando e nós aprendíamos o bê á bá através de uma grande senhora, a professora dª Susana. Ao cimo do balcão da cadeia existiam duas portas, uma dava acesso directo à sala do antigo tribunal.
Com a remodelação do edifício essa porta desapareceu, a Domus foi restaurada, levou sobrado novo, forro, retretes,” um luxo”, salamandras que nos aqueciam durante os dias frios e chuvosos invernais.
Por essa altura a vila possuía muitos habitantes, as crianças de ambos os sexos em idade escolar andariam à volta de 120 alunos. A praça fervilhava de catraios correndo e brincando.
(…) Mais uns anos de pasmaceira, em 1961 rebenta a “bernarda” em Goa, Damão e Diu. Nehru invade com cerca de cinquenta mil soldados aquelas parcelas de território “Luso”.
Angola, Moçambique… seguem as pisadas, a partida dos mancebos para as ex colónias, emigração para os países devastados pela grande guerra, a sangria humana; a desertificação começa, a vila continua “pasmada”, nada de novo, até que 70 anos depois novo surto de desenvolvimento. Barragem, saneamento básico, água ao domicílio, luz eléctrica, “à meia-noite mais ou menos os candeeiros eram desligados ficando as ruas às escuras” A velhinha calçado basáltica foi substituída por paralelos graníticos; a estrada que liga Alcains ao Castelejo aos poucos foi sendo alcatroada 78 anos depois da queda do concelho, a Pequena Lisboa recebeu uma embaixada da Grande Lisboa, chefiava-a o presidente da câmara. Um “obelisco” é levantado na Fonte Velha para comemorar os oitocentos anos da deslocação de alguns homens bons à capital do reino para oferecerem o povoado ao rei D. Afonso Henriques.
A vila sempre a aumentar; novas artérias, casas, serviços, indústrias. A baixa densidade humana… a partida dos naturais procurando novos rumos transformaram-na. Na zona medieval vivem cada vez menos cidadãos, a maioria idosos, não há sangue novo.
No dia de Corpo de Deus, fizeram a primeira comunhão quatro crianças.
Com tantos melhoramentos que existem:- ”piscina, escola, banco, estradas (quase todas asfaltadas) falta a velhinha Cascalheira, santuário da Senhora da Orada primorosamente alindado, templos recuperados,… filarmónica, rancho, bombos, bombeiros, escoteiros… há cada vez menos pessoas a habitar a donairosa vila de São Vicente da Beira
Quo vadis interior!

J.M.S                                                                                                                            

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Andava o deus Pã apascentando seus rebanhos na campanha de Trans Serre, tocando com sua flauta mágica músicas campestres. Impulsivo, lascivo, sua cabeça cornuda, barbicha hirsuta e patas de bode percorria montes e vales. À medida que guardava o seu rebanho, cantava e tocava. O Eco imitava-o, ele ficava danado e continuava a tocar músicas simples do campo.
De vez em quando, corria em perseguição de uma ninfa ou pastora, pudera; lascivo e folgazão como ele era!
Algumas ninfas não iam na sua conversa, nem se deixavam cativar pelas músicas campestres.
Foi o caso da Siringe que se transformou numa cana por não ter cedido ao seu apetite sexual. Aproveitou-a e fez com ela uma flauta que o passou a acompanhar para todo o lado, desta maneira tinha sempre a sua amada nos lábios.
Certo dia, tendo-se afastado um pouco mais das pastagens habituais “embora andasse por todo o lado”, foi dar a uma pequena aldeia moura, teve sede, dirigiu-se à Fonte da Portela para se saciar.
Quando chegou, estava enchendo sua bilha uma linda moura; faces rosadas, olhos pretos brilhantes como o sol, sorriso arrebatador.
Lascivo, luxurioso como sempre foi, não se conteve e agarrou a linda moura. Ela esbracejou, gritou, por fim conseguiu libertar-se das manápulas de Pã e fugiu em direcção à sua cabana.
Com seus pés de cabra, Pã lançou-se numa correria desenfreada para apanhar a linda moça.
Já não estava muito longe de casa, mas, ao olhar para trás, não teve dúvida nenhuma, estava prestes a ser agarrada. Gritou com todas as forças, mas ninguém apareceu. A solução foi transformar-se numa cobra que por sua vez se metamorfoseou.
Desde essa altura a moura continua enfeitiçada, transformada numa pedra à espera que alguém a desencante.
Cuidado, ela é enganadora. Pela manhã mostra melhor a sua bocarra, nem todos os locais em seu redor servem para a admirar. É preciso saber escolher o sítio para que se deixe ver.
Quem sabe se numa manhã de São João algum príncipe afagando o penedo não a desencante!


J.M.S