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sábado, 24 de fevereiro de 2018

Quarta classe ou comunhão

(…) Mal a gente saía da escola, as nossas mães punham-nos logo a servir.
- Olha filha, ”dizia a minha mãe” sempre é melhor que ficares praí a trabalhar no campo de sol a sol, à chuva, ao frio, ao vento.
Quando tinha a tua idade já andava a servir; escola! Qual escola qual carapuça, nesse tempo só os cachopos; “e não eram todos”; tiravam a quarta classe. Os pais punham-nos logo a guardar cabras. Naquele tempo era uma dor dalma, muitos só viam as primeiras botas quando iam para a tropa, porque lhas davam lá.
Na vila havia meia-dúzia de casas ricas, as quintas, as melhores terras eram deles, muitas famílias nem um palmo de terra possuíam.
Dois ou três meses antes das festas de verão, as famílias mais pobrezinhas compravam um borreguito para ser comido nos dias das festas, como não tinham horta, engordavam-no nos ribeiros e na ribeira.
Ai daquele que fosse apanhado a roubar um molho de mato nas terras dos ricos…
- Olha filha, dizia a minha mãe; no tempo da azeitona, homens e mulheres andavam por esses olivais fora ao oitavo e ao nono; eram oito litros ou nove para o patrão e um para a camarada toda, uma miséria; ao fim do dia, por vezes não ganhava-mos um quartilho de azeite; quando as oliveiras estavam sujas e pouco carregadas. Quando estavam de carrola, os homens colhiam uma saca num instante. É por causa destas e doutras que antes te quero ver a servir.
A minha mãe era criança quando o concelho acabou, andava na praça a jogar ao paspelho quando viu um senhor a fechar a porta do balcão da cadeia, ao fundo das escadas estava um homem com uma carroça cheia de livros, o que fechou a porta subiu para a carroça e abalaram.
Certa vez a minha mãe, com ar sério e grave, voltando-se para mim, disse:
- Andam para ai a recordar o senhor fulano, a senhora fulana, o que é que fizeram pela nossa terra? Até deixaram abalar a câmara, que rai de ricos foram eles.
Ainda me lembro como se fosse hoje das palavras da minha mãe. 
- A vila nunca mais foi a mesma. Está cada vez mais deserta, há ruas onde moram duas ou três pessoas; os soldados partiam para a guerra, a emigração, a falta de trabalho, tudo isto contribuiu para a desertificação.
Adiante, águas passadas não movem moinhos, e depois!
Um dia, uma vizinha falou com a minha mãe no nosso almiar, eu estava ao cimo das escadas a ouvir a conversa.
- Ó Maria, esteve na praça um senhor e uma senhora à procura de duas criadas, e se nós mandasse-mos as nossas filhas?
A minha mãe não ficou muito convencida, eu muito menos, servir! A minha amiga lá me convenceu e fomos. Teria os meus quinze anos quando abalei, os patrões eram boas pessoas, andei por lá cerca de um ano, aos domingos a patroa dava-nos a parte da tarde para irmos passear, uma vez conhecemos um rapaz da nossa idade que nos acompanhava.
- Casavas com ele?
- Eu não, nem sequer tem a quarta classe.
- Isso para mim era o menos, não casava com ele porque não tem a primeira comunhão.
Um grande clarão vermelho sobressaia por detrás da serra do Engarnal, aproximava-se a noite, no chafariz coaxavam as rãs, no velho cedro, escondidas nas ramagens ouviam-se os sons estridentes das cigarregas; o sino da torre da igreja badalava as ave-marias.
- O anjo do Senhor anunciou a Maria…

Quartilho: Quarta parte da canada.
Carrola: Ramos, ladrões carregados de azeitonas.
Almiar: O pequeno espaço da habitação que se situa ao fundo das escadas. 
Cigarrega: Cigarra
Linguajar vicentino: praí; dor dalma; rai.

J.M.S

sábado, 30 de dezembro de 2017

Do 2017 ao 2018

À semelhança do ano dois mil e dezasseis; dois mil e dezassete, chegou ao fim. Mais uma etapa das nossas vidas que se ultrapassou, outra começa.
Dois mil e dezassete já não é o folgazão de outrora, está cansado e triste; arrastando os pés entrega o testemunho ao ano novo dois mil e dezoito. Este, cheio de ilusões, entra com muito fogo-de-artifício, muto álcool e muitos festejos. Mas, cada dia que passa, dois mil e dezoito encontrará os mesmo obstáculos, os mesmos problemas, os mesmos desastres naturais, ilusões, tristezas e alegrias que o ano anterior.  
A natureza humana, desde que o mundo é mundo sempre engendrou ódios, guerras, invejas, perseguições ao semelhante, nosso irmão. Felizmente também existem pessoas de bem, que lutam e anseiam por paz, justiça, igualdade e fraternidade. O mundo cada dia que passa clama por amor.
Por culpa do homem, muitas pessoas irão sofrer horrores, passar fome, frio e sede, serão obrigados a abandonar a sua casa, a sua terra. Que horror…
O ano hidrológico dois mil e dezassete foi de seca extrema, terras sedentas de água, barragens secas ou quase. Os primeiros seis meses de dois mil e dezoito, serão mais chuvosos, as terras produzirão mais ervagem para os animais, os lavradores terão mais água para as suas actividades agrícolas
A vila de São Vicente da Beira irá ter um grande e valioso museu de arte sacra, ficará sedeado no antigo solar da Fonte, que pertenceu à família do escritor vicentino Hipólito Raposo, está a ficar uma beleza, assim como o seu quintal; vai ser o orgulho da nossa freguesia. Juntamente com o Pequeno Lugar, localizado na Partida, irão ser duas instituições vicentinas que muito nos orgulharão. Dois polos de atracção turística.



Todo este património, juntamente com outros monumentos, sejam eles naturais, paisagísticos… irão certamente atrair muitas pessoas à freguesia de São Vicente da Beira e freguesias vizinhas.
Ordem Terceira, Santa Casa da Misericórdia e Paróquia, conjuntamente com a Câmara Municipal de Castelo Branco em boa hora se uniram para que deixasse de haver três pequenos museus em São Vicente da Beira e passar a haver somente um grande museu que será o orgulho do concelho e da vila.
Sendo assim, o homem põe, mas Deus dispõe.
Ah! Nunca nos esqueçamos: Deus Super Omnia.

J.M.S

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Natal


O inverno está à porta, não tarda muito entra pelas nossas casas dentro. É a estação do recolhimento, do Natal.
Advento, quer dizer chegada, é o tempo que precede o nascimento do Menino, são quatro semanas de celebração e preparação até à noite da vigília, do nascimento, que se comemora com a missa do galo.
Não recordamos somente a vinda de Jesus ao mundo terreno, mas celebramos também o dia da família por excelência. É um tempo de paz e de amor entre todas as criaturas de boa vontade.
- Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade (Lucas 2.12).
Naquele tempo, Maria, esposa de José, deu à luz um Menino que marcou toda a humanidade, para os cristãos é uma festa importante por várias razões.
- Menino Deus que quis ser como nós, tinha trinta e três anos quando morreu num madeiro para nos redimir depois de andar por ai espalhando a Palavra da paz, do amor. Quando rezardes; rezai assim:
- Pai-nosso que estais nos céus…
Foi a única oração que Ele nos ensinou.
Para os nossos irmãos que não seguem Jesus é também para eles uma época festiva, mais não seja pela reunião de todos os membros da família, troca de prendas, e a mensagem de Paz e Amor que não pode deixar ninguém indiferente.
O mundo está precisando de Paz como o corpo necessita de comida.
Tanta miséria humana; fomes, crianças esgravatando no lixo tirando ao lixo os restos deitados para o lixo, não podemos ficar indiferentes.
Milhões de pessoas passam fome, sofrem doenças, vivem em casebres, vagueiam por aí fugidos da guerra que assola tantas partes da Terra.
Temos obrigação moral de ajudar quem abandona as suas casas e procura refúgio na Europa
São pessoas como nós. A fraternidade não pode ser uma palavra vã.
O Natal, é quando o Homem quiser, frase mais que batida; ponha-se em prática esta frase para que os deserdados da vida possam ter todos os dias algo com que mitiguem o estômago mas sem a caridadezinha que grassa por ai nestes dias.
Tempo de luzes, de alegria, que os grandes deste mundo aproveitam e transformam numa época consumista. As pessoas esfalfam-se por essas “catedrais” do consumo ver e comprar uma bugiganga que na noite santa do nascimento do Menino alguém vestido com um ridículo fato vermelho, disfarçado com umas longas barbas brancas, surge com um saco às costas e distribui embrulhos aos familiares.
As crianças olham embasbacadas: foi o pai natal…
O Menino não quis nascer na sua terra, não quis nascer na casa dos pais, escolheu um curral onde se recolhiam os animais.
Não foram somente os pobres pastores que correram ver o Menino trazendo-Lhe oferendas, vieram também poderosos; os magos ofereceram incenso, mirra e ouro. Epifania; gentios que O quiseram adorar e agraciar.
Quem não gosta de ver um presépio, sobretudo as crianças?
Que bom é ver reunida toda a família à volta da mesa na noite da consoada, enquanto existem tantas pessoas, tantas crianças por esse mundo sem terem uma côdea que lhes mitigue a fome.
São Francisco de Assis deixou-nos a tradição do presépio. Casas, igrejas, praças, largos; mais ou menos elaborado, eis o presépio.
Uma santo Natal!


J.M.S

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Almas danadas ao santorinho

Na nossa vila, principalmente em noites gélidas, frias, brancas e ventosas invernais, logo que anoitecia as pessoas recolhiam aos seus lares. Depois da ceia, à luz da candeia, com toda a família sentada em redor do braseiro, rezadas as orações, os mais novos escutavam com atenção estórias que os mais velhos contavam. Umas eram comoventes, outras, assim, assim e algumas eram terríficas.
Avô Zé, com as tenazes “conchegava” os chamiços que ardiam; avó Ana encostava o púcaro de barro ao brasido cheio de água da Fonte Velha, quando começava a ferver deitava para dentro uma ou duas colheres de café, era tão bom, tão bom, perfumava toda a casa.
Para assentar, punha dentro do púcaro uma brasa; sabia tão bem!
Avó, lenço negro atado à cabeça, cabelos brancos entrançados, era uma santa mulher. Avô, com seus safões de pele de cabra, barrete enfiado até às orelhas, começava:
Uma vez, era novo, tinha ido à vila, conversa puxa conversa, estava na praça mais uns poucos da minha idade o sino bateu a meia-noite; assustei-me, assustámo-nos todos. Entre a meia-noite e a uma hora era muito perigoso andar na rua, podia aparecer a má hora, uma alma do outro mundo, uma alma penada.
“Quem está aÍ! Se és uma alma do Purgatório diz o que queres; se és o demónio, eu te arrenego em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.
Pessoas muito altas, gente com pés de cabra, lobisomens. Quem se cruzava com estes seres sinistros corria esbaforido em direcção a casa, queria gritar por socorro e não conseguia. Era uma hora má, aquela.
Olhos bem abertos, atentos e ao mesmo tempo cheios de medo, ouvíamos com atenção, não olhávamos para trás, não aparecesse uma alma penada.
Naquela noite, ia para o Caldeira, estava vento, fazia lua; quando cheguei ao fundo da barreira do Marzelo, rebolava na minha direcção uma grande bola. Corri para São Sebastião cheio de medo, dei a volta pela estrada em direcção às Poldras, subi o Souto do padre Teodoro, o vento ventava com todas as forças; ao outro dia outras bolas rebolavam pela estrada. Sabeis o que era! Sargaços.
Certa vez, um homem vinha do Casal, quando ia a passar junto ao Calvário um vulto muito alto apareceu em cima da parede do cemitério, começou a correr cheio de medo, quanto mais corria, mais a aparição o acompanhava. Morava ao fundo da rua de São Francisco, ao chegar à porta, abre-a, entra, coloca a tranca rapidamente, do lado de fora uma voz cavernosa, forte, gritou:
-Foi o que te valeu!
- Ai home, que se passa contigo? - pergunta a mulher toda atrapalhada.
Este, com o dedo indicador apontou para a porta, sem nada dizer, ficou sem fala.
A esposa abre a porta, olha para a rua, não vê vivalma. O céu estava limpo cheio de estrelas, a noite serena, deitou-se no catre, não falava. No dia seguinte contou à mulher o acontecido.
- Ai home, a minha alma está parva…
- Ó vô; Como são os lobisomens!
- Durante o dia são pessoas como nós, à meia-noite transformam-se em lobos danados, andam uivando por ruas, montes e vales. No dia seguinte aparecem todos arranhados, feridos, por causa do esforço que fizeram. Entregaram a alma ao diabo estes damonhos.
- Credo!
- Olhem; nos cruzamentos e em lugares previamente escolhidos dançam as bruxas encarrapatas juntamente com o mafarrico. Cruz da Oles, Fonte da Portela… são locais onde isso acontece. Era noite cerrada, desci a rua a caminho da nossa casa com os meus pais e irmãos, lanterna acesa, dormi toda a noite com a cabeça debaixo das mantas, não aparecesse a má hora.
Meu avô dizia o seguinte proverbio: “Pelos santos, neve nos campos”. Como mudou o tempo, já não há neve, em contrapartida, ardem as matas.
- Dê-nos um santorinho

J.M.S

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

O nosso património

As comunidades não podem dissociar-se do passado, mas também não podem e não devem parar no tempo. Quero dizer com isto que a vida é como uma moeda, tem duas faces.
O homem maduro, depois de obter a sua reforma. deve aproveitar o tempo que ainda tem de vida para transmitir aos mais novos valores e conhecimentos que foi adquirindo ao longo do tempo. A memória de alguém considerado idoso nunca pode ser igual à memória de uma pessoa jovem. Os neurónios vão-se perdendo, a memorização é diferente, enquanto alguém jovem apreende algo com uma facilidade tremenda, a pessoa idosa muitas vezes vê-se e deseja-se para captar determinadas matérias, nomeadamente disciplinas que requeiram concentração, aprendizagem.
Sendo assim, suponho que cada geração terá muito para oferecer à outra. As gerações mais antigas podem e devem transmitir ensinamentos vividos e experienciados à medida que os anos foram passando. Ensinar aos mais novos saberes que de outra maneira se perderão para sempre, a partir do momento em que se corte o fio ténue que nos une à vida.
Entre a vida e a morte, o espaço que medeia estes dois momentos é tão pequenino, tão curto, basta um esticãozito, o fio parte-se e tudo termina para este mundo.
Sou daqueles que acredita que não morreremos. O corpo, sim; o espírito jamais, pertence ao Criador.
Já estou a entrar por um caminho que não é aquele que quero apanhar hoje; portanto… Adiante.
Idoso ou não; todos temos muito que aprender uns com os outros, mas cada geração tem o seu tempo.
Este pequeno intróito tem a ver com o tema que vou explanar.
Estava eu sentado num dos cais da nossa praça a ouvir o som da aparelhagem cujos altifalantes iam debitando decibéis incomodativos, (música de arreda cão, para mim), quando ao meu lado se sentou uma simpática idosa. Depressa veio à baila o passado.
Tínhamos que falar um tom acima do normal, o barulho ensurdecedor dos altifalantes…
- Olha Zé, uma parte da minha casa ainda está tal e qual como era no tempo do Hipólito Raposo, os sobrados e os tectos em castanho, são daquele tempo…
- Qualquer dia, vou lá, se me deixar, claro.
- Quando quiseres.
José Hipólito Vaz Raposo nasceu no dia 12 de Fevereiro 1885, numa casa situada na rua Velha, nº 47, na vila de São Vicente da Beira; não teve uma vida muito longa pois, no dia 26 Agosto do ano 1953, faleceu em Lisboa; tinha 68 anos.
Era filho de João Hipólito Vaz Raposo e Maria Adelaide Gama. Aos 17 anos entrou para o seminário da Guarda, “influência do seu irmão padre Domingos Vaz Raposo com certeza”.
Na Guarda permaneceu dois anos, 1902/1904; depois entrou no liceu de Castelo Branco e mais tarde partiu para Coimbra, onde se formou em Direito, 1911.
Não me vou alongar mais com a sua biografia, o José Teodoro e outros já a esmiuçaram amiudadamente.
No passado mês de Setembro, desci a rua da Cruz, bati à porta da senhora Maria de Jesus, que amavelmente me convidou a entrar. Ao fundo das escadas encontra-se uma porta que dá acesso a três lojas onde guarda utensílios de lavoura, pipos, tanque para o vinho… Subi, ao cimo das escadas, à esquerda, entro numa sala repleta de recordações da sua família: quadros, fotografias dos antepassados… O que imediatamente me chamou a atenção foi um Menino Jesus de Malines!
A senhora Maria de Jesus falava, explicava e apontava.
- Olha aqui ó Zé, para esta moldura: São José, Menino Jesus e o São Roque; aquele quadro além é a Senhora dos Milagres, tem os milagres em toda a volta”.
- E este Menino Jesus, perguntei.
- Foi-me dado pela minha madrinha e tia Maria de Jesus; era irmã da minha mãe, viveu 40 anos em Lisboa. Olha, tem dá réis e tudo.
A sala está igual ao que era no tempo do senhor João Raposo, o pai de Hipólito Raposo.
- É a sala de jantar, nunca cá comi nenhum jantar ou almoço.
- Quer dizer, que aqui comeu muitas vezes Hipólito Raposo.
- Com certeza.
- Estas portas que dão acesso aos quartos, são as portas originais?
- Isto não tinha portas; as cortinas fui eu que as pus. O sobrado e o tecto são todos de castanho.
Entrei nos quartos.
- Terá sido neste quarto que nasceu Hipólito Raposo, é o maior. - diz a senhora Maria de Jesus.
Fotografei e seguimos.
Antes de sairmos da sala, apontou para as portas de uma janela que dá para a rua.
- Ó Zé, repara nestas portas, ainda entram num buraco que as segura, as da outra janela já são modernas.
Ao entrarmos no corredor disse-me: - Dava acesso à cozinha, a minha tia tapou a porta, antes via-se logo a porta da rua.
- Esta é a cama onde morreu a minha tia Resgate (catequista, zeladora da igreja).
Na parede de outro aposento, um relógio de sala me chamou a atenção: - É muito antigo!
- Se é, se é… já disse ao meu neto para mo por aqui mais baixo para lhe dar corda; tem um defeito, quando começa a dar horas, quando dá uma, temos que contar logo duas, parece que está a tocar ao fogo; bam…bam…
- Daqui para lá era à telha vã, e não era tão larga, tinha uma porta para o quintal que já era velha, foi o meu homem que aumentou isto, não tinha aquele quarto que é o meu. Aqui havia uma porta, repara nos buracos e no rasgo, era para porem a tranca. O meu homem é que a tirou, porque era muito velha, aqui era tudo à telha vã, era aonde a minha avó tinha o tear; era tecedeira, esta sala não era tão larga, era mais estreita. A minha avó chamava-se Josefa.
Entrámos na cozinha, imediatamente a senhora Maria de Jesus apontando para o chão dizendo.
- O lar era aqui no meio, o Zé companhia é que fez além a chaminé, o meu homem alargou para aqui a cozinha. As pedras do lar eram iguais àquelas (ardosias que se encontram na soleira da antiga porta) Olha, aqui está a dita porta que dava acesso ao corredor…
Entrei no seu quarto, um cruxificado e várias imagens em cima da cómoda.
- Uma vez cai agarrei-me à comoda, caíram os santos todos que estão em cima do móvel; este Senhor que está além é muito antigo, ficou-me em cima do colo atravessado, intacto; foi um milagre do Senhor Santo Cristo.
A tarde já ia adiantada, tinha que ir regar as couves. Agradeci à Senhora Maria de Jesus toda a atenção que me dispensou.
Com os seus noventa anos, continua a ter uma memória invejável. Saí mais rico, porque estive no lugar onde nasceu e viveu durante a sua meninice o escritor vicentino doutor José Hipólito Vaz Raposo.

Corredor; ao fundo existiu uma porta que dava acesso à cozinha.
                             

A porta da janela é do tempo do doutor Hipólito Raposo, diz a senhora Maria de Jesus.

        
Um batente entra num buraco na parte superior; estas portas não tinham ferragens.


 Tecto da sala todo em castanho


Cabides


Quarto onde terá nascido Hipólito Raposo.
O sobrado é todo de castanho, diz a senhora Maria de Jesus.

                                                                          
Menino Jesus de Malines 

J.M.S

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Interior

Naquele tempo…
Há muitos, muitos séculos, existiu um rei (Sancho I), em Portugal  que, quando subiu ao trono, encontrou vastas terras cheias de matagais, despovoadas, nomeadamente no interior, onde o diabo perdeu as botas. Depois de muitas lutas, conjuntamente com seu pai (D. Afonso Henriques), o reino atravessava um tempo bonançoso.
Tinha trinta anos, quando tomou as rédeas do poder, as fronteiras com os reinos cristãos, embora frágeis iam-se consolidando. O problema mantinha-se a sul, onde predominavam os Muçulmanos.
O rei de Portugal soube tirar partido desta acalmia e…
- Não pode ser! - disse um dia ao seu chanceler D. Julião - No meu reino tenho terras incultas que nunca mais acabam; contacte o deão de Silves (que entretanto tinha voltado novamente para domínio Muçulmano), ele que vá à sua querida Flandres e traga gente para os meus reinos!
- Não é mal pensado. - respondeu o chanceler.
O Deão Guilherme partiu para a Flandres onde engajou muitos colonos. Ao chegarem a Portugal, o rei ofereceu-lhes terras para se instalaram.
Adiante.
Trás-os-Montes, Beiras… locais onde as populações eram escassas. Covilhã, 1186; Viseu, 1187; 
São Vicente da Beira 1195… Restaurou, povoou, incentivou portugueses e colonos a morarem nessas terras, dando-lhes regalias através de forais.
Desta maneira conseguiu o rei, aos poucos, que todo o reino se fosse povoando.
Os povos arroteavam, trabalhavam e rezavam.
Um dia, um filho de rei (Infante D. Henrique) isolou-se no extremo sul de Portugal, onde fundou uma escola de marinharia. Começou a enviar marinheiros para que descobrissem novas gentes, aos poucos e poucos os habitantes mais expeditos iam abandonando suas terras, partiam à procura de melhor vida.

Os séculos foram passando, algumas povoações perderam importância, outras aumentaram-na.
Em 1976, no mês de Abril, realizam-se eleições livres em Portugal
Em São Vicente da Beira, estavam inscritos nos cadernos eleitorais 1833 eleitores; na vizinha freguesia de Almaceda, 1291; Louriçal do Campo, os eleitores inscritos totalizavam, 815; Sobral do Campo 532; Ninho do Açor, 381…
Os anos foram passando, os cidadãos, morrendo ou debandando outras paragens; eis que chegamos ao ano 2013.
Eleições autárquicas:

São Vicente da Beira, 1355 eleitores; 2017, 1161 almas com direito a votar.

Nas vizinhas freguesias de:
Almaceda, em 2013, estavam inscritos nos cadernos 804  eleitores; 2017, 657 eleitores

2013, Ninho do Açor/ Sobral do Campo, 841  eleitores; 2017, 738 eleitores

2013, Louriçal do Campo, 644 votantes; 2017, 540 eleitores

Desde 1976 até 2017 a freguesia de São Vicente da Beira perdeu 672 eleitores. Uma média de 16 cidadãos eleitores por ano.

A freguesia de Almaceda perdeu 634 eleitores. Durante estes anos perdeu, por ano, cerca de 15 cidadãos eleitores.

As freguesias Sobral do Campo e Ninho do Açor perderam 175 cidadãos eleitores.
Estas duas freguesias unidas perderam, por ano, uma média de 4 eleitores.

Louriçal do Campo perdeu 275 eleitores. Esta freguesia perdeu uma média de 6 eleitores por ano, durantes estes últimos 41 anos.

Desde 1976 até aos dias de hoje, estas quatro freguesias perderam 1756 almas; muitos cidadãos.
Por este andar, se os governantes não tomarem medidas sérias, todo o interior irá ser uma vasta coutada, terras de ninguém ou de meia dúzia de endinheirados que as transformam em vastíssimos coutos para gaudio de uns poucos.
Em 2013, estavam inscritos nos cadernos eleitorais da cidade de Castelo Branco 31 287 eleitores. Actualmente estão inscritos 30 719 cidadãos.  
Julgo, não será isto que os governantes quererão, para isso têm que ser tomadas medidas positivas, incentivos para que as pessoas regressem às suas origens, pondo fim às portagens, diminuindo a carga fiscal aos que queiram investir nestas paragens; incentivos à maternidade, atribuir regalias sociais para quem queira morar no interior, e por aí fora.
As nossas aldeias e vilas possuem melhor qualidade de vida que a existente nas grandes cidades. Ares e águas puríssimas, boas estradas. Para se fazerem trinta quilómetros numa grande cidade, demora-se uma hora, ou mais; nas nossas terras, meia hora basta. Nada de engarrafamentos, nem dores de cabeça. 
Se não se tomarem medidas sérias e justas, qualquer dia, era uma vez


J. M. S

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Um diner

João, bom camarada, amigo do seu amigo; até do inimigo, desde que visse alguma necessidade premente, estava no terraço a preparar um churrasco para presentear as visitas que tinham chegado durante a tarde. Estes aproveitaram e fizeram uma carpool.
Aproximava-se a noite, o dia fora abrasador. O sol tinha metido alguns cavacos a mais na fornalha, fazendo com que aumentasse a temperatura solar seguramente mais um ou dois graus. A ajudar à festa, os terráqueos, cada vez mais sabedores das ciências e do desconhecido, contribuem com sua cota parte para que a temperatura suba ainda mais através das indústrias, automóveis… e outras máquinas sujadoras.
Com temperaturas tão elevadas, a humidade do ar quase inexistente, os matos e as árvores, potenciais matérias inflamáveis, num instante, por incúria ou malvadez, se transformam em pasto de chamas que o fogo devora sem dó nem piedade.
Nesse dia, a comunicação social televisionada não mostrou nas pantalhas qualquer ocorrência; apesar disso, o dia tinha sido insuportável, bom para veraneantes e hoteleiros. Os primeiros molhavam-se nas águas quentes do sul; os segundos faturavam.
Vénus já se via no céu ainda azul; a noite, ao invés do dia, prometia ser fresca e agradável. João desceu as escadas que davam acesso à garagem, pegou no saco do carvão, de seguida foi buscar o barbecue que se encontrava numa pequena arrecadação que fica debaixo das escadas que dão acesso à cozinha.
Depois de o montar, espalhou o carvão, acendeu uma pinha, pouco tempo depois estava transformado num verdadeiro brasido. Quando estava a abanar o carvão, aparece junto dele o António, cabisbaixo.
- Precisas de ajuda?
- Vens mesmo na hora certa, sobe as escadas, vai ao frigorífico e traz umas jolas… conta-me a tua vida que a minha sei eu.
- Deixa-me cá, estou metido num grande sarilho.
- Mau, o que é que se passa?
Aqui há tempos, estava numa esplanada em Castelo Branco, de repente apareceu, surgindo do nada, uma garina que eu já não via há mais de dez anos. Sentou-se numa cadeira, entabulámos conversa…puxa conversa; passado algum tempo, levantámo-nos e dirigimo-nos à pensão onde passámos o resto da tarde e noite. Ao outro dia, partiu cada um para seu lado. Passados três meses, aparece à minha frente com a barriga saliente, pediu para falar comigo e me disse que se encontrava grávida, que o pai da criança era eu. Um affaire
- Que azar o teu!
- A minha namorada nem sonha, já viste a minha vida?
- Pode estar a fazer bluff só para te agarrar!
- Vi-lhe a barriga mais crescida.
- Se fosse a ti, tirava isso a limpo…
- Vai lá dentro à cozinha buscar as carnes e de caminho traz três jolas.
O barbecue estava pronto para receber os assados, na cozinha as mulheres azafamavam-se com os tachos que ferviam no fogão com as iguarias que acompanhariam as febras, chouriças, morcelas, salsichas…
- No passado fim de semana, participei numa running wonders, fiz a meia maratona. - atalhou Vicente, que entretanto tinha chegado junto deles - Participaram umas quatro mil pessoas. Algumas centenas correram meia maratona; outras, dez quilómetros; a maioria, caminhou durante cinco mil metros. O tempo estava agradável, nem frio, nem calor. Não fui dos primeiros a chegar, mas também não fui dos últimos, recebi uma medalha de cortiça bastante bonita. De seguida, eu e a Inácia fomos a um shopping, entrámos numa hamburgueria, comemos um hamburger com batatas fritas. Fast food. Aproveitámos a tarde e visitámos a exposição temporária que se encontra no Centro de Arte Contemporânea. Estavam a entrar muitas pessoas para o auditório, fomos ver e entrámos também. Na mesa, três palestrantes, eis senão quando começaram um Workshop sobre alterações climáticas. Marketing. Quando saímos, descemos ao parque de estacionamento, entrámos no automóvel, passámos por umas bombas de combustível, atestei o carro, entrei na zona do market e paguei. Como tinha em meu poder um voucher, rumámos ao Lugar do Ainda, que se situa num local bastante aprazível, perto da barragem do Pisco, em São Vicente da Beira, onde pernoitamos. Pela manhã, os passarinhos chilreavam alegremente; não muito longe, marulhavam as águas da ribeira da Senhora da Orada, o atendimento não podia ser melhor. Atenciosos os proprietários! Tomámos o breakfast, agradecemos a maneira cordial e simpática como nos receberam e partimos em direcção à nossa casa.
O churrasco, acompanhado de uma pinga de estalo, estava uma maravilha, a noite serena, estrelada, envolvia-nos, como a querer dizer: -Está na hora de irem para a cama, daqui a nada cantam os galos e chega a aurora…


J.M.S

sábado, 8 de julho de 2017

D. Sancho I

Os sinos do mosteiro de Santa Cruz dobram, dentro do templo encontra-se uma urna que contém o cadáver do rei Sancho I de Portugal, colocada em cima de uma essa ricamente ornada, ladeada por seis tocheiros, três de cada lado.
  Frades agostinianos com seus hábitos negros cantam em cantochão salmos fúnebres, imploram ao Senhor o perdão dos seus pecados e receba sua alma na morada eterna do Céu
  O largo fronteiro ao mosteiro está apinhado de gente que reza e chora a morte do bom rei. Sofria de uma doença terrível que grassava em Portugal e em toda a Europa, a lepra.
  Não poupava ninguém, pobre ou rico.
  D. Sancho I morreu desse terrível mal, a igreja considerava castigo de Deus.
  Findas as exéquias fúnebres, o cadáver foi colocada num mausoléu, perto do túmulo de seu pai D. Afonso Henriques.
  Tinha 56 anos quando naquele dia 26 de Março do ano 1211 entregou a alma ao Criador.
  A vida quotidiana decorria com normalidade em Sanctus Vincencii; os servos trabalhavam para os senhores, donos das melhores terras, alguns tinham que fazer corveio, que consistia em trabalhar gratuitamente um ou dois dias da semana para o senhor dono da terra, os que moravam nas Vinhas, na Fonte da Portela, eram livres de qualquer encargo perante o senhor feudal, dai haver alguns renitentes…
  Alguns dias após a morte do rei, um arauto entrou em Sanctus Vincencci, contactou os Homens Bons, estes, imediatamente mandaram tocar o sino da igreja.
  Mensageiro anunciou a todos os moradores o trágico desfecho.
O povo chorou amargamente a morte de D. Sancho, prior rezou ofícios divinos pela alma de sua majestade.
  Rei morto, rei posto; D. Afonso II seu filho, sucedeu-lhe no trono.
  D. Sancho nasceu no dia 11 de Novembro do ano 1154, ”dia de São Martinho”; por esse motivo deram-lhe o nome Martinho.  
  Henrique, seu irmão, “morreu criança”; por morte deste, o herdeiro da coroa passou a ser Martinho. Os nobres achavam que este nome não era o mais apropriado, passou a chamar-se Sancho Afonso.
  Casou D. Sancho I com Dª Dulce de Aragão no ano 1174 de quem teve dez filhos: D. Afonso; D. Pedro; D. Fernando; D. Henrique; D. Raimundo; D.ª Berengária, que foi rainha da Dinamarca; D.ª Branca e as beatas Teresa; Mafalda e Sancha.
 Para além dos filhos legítimos D. Sancho teve alguns filhos naturais: D. Martim Sanches e D.ª Urraca Sanches; filhos de D.ª Maria Aires de Fornelos.
  De D.ª Maria Pais Ribeira teve seis filhos: D. Rodrigo; D. Gil; D. Nuno; D. Maior; D.ª Constança; D.ª Teresa.

  O campo, nomeadamente as Vinhas, Fonte da Portela, eram lugares onde ainda moravam muitas pessoas; certo dia, ouvem-se gritos aflitivos, vinham do lado da Oles.
  Fujam… vêm aí os sarracenos; matam e queimam tudo por onde passam!
  Pedro Afonso homem possante, valente, imediatamente reúne malados, peões, cavaleiros vilãos…armados de chuços, vão ao encontro dos sarracenos; estes vendo que não conseguiam vencer os habitantes das Vinhas e Fonte da Portela fugiram em direcção à campina dilatada de Vila Franca da Cardosa.
  D. Afonso I já tinha atribuído nome à nova povoação que se encontrava mais acima no sopé da serra, as brenhas, os ursos e outros animais por onde passavam devastavam… eram como o inimigo quando fazia algum fossado.
  Os moradores aos poucos foram deixando o campo, apesar de as terras serem mais fáceis de arrotear, as formigas e a falta de água, obrigava-os a deixarem suas cabanas.
  Os vizinhos, à medida que iam chegando a Sactus Vincencii, eram logo ajudados pelos que já lá moravam, todos juntos levantavam paredes e nascia mais uma casa; as mulheres pariam, o povo rezava na pequena igreja, até que um dia o rei D. Sancho querendo povoar o interior do reino convidou gente da Flandres, da Borgonha… a viverem em Portugal.
  Sanctus Vincencii, já era uma terra importante, o rei sempre preocupado com a governança, defendendo o comércio e fomentando a criação de riqueza atribui forais a muitas terras das beiras.
  Covilhã, 1186; Viseu, 1187; São Vicente 1195; Guarda 1199…
  D. Sancho I não se preocupou somente com a criação de concelhos atribuindo forais, também era meticuloso na administração dos dinheiros públicos, deixou muitos morabitinos nas arcas.
 
  Naquele dia pelas ruas da vila ouviam-se pandeiros, guizos, castanholas; eram dois jograis que anunciavam um folguedo no terreiro, vinham acompanhados por uma amásia e uma soldadeira.
  Saltério, viola de arco e outros instrumentos eram tocados pelos jograis, o povo acorreu em massa, as mulheres dançavam enquanto uma tocava o pandeiro e a outra, castanholas...
  O largo estava todo iluminado com archotes e banhado pela lua cheia; compareceram todos os moradores, que assistiram ao espectáculo com alegria.
     
A do mui bom parecer
mandou lo adufe tanger
louçana, d`amores moir`eu

  A hora ia adiantada, mas ainda houve tempo para ouvirem um jogral declamar uma trova da autoria do rei D. Sancho I; foi um grande protector de trovadores e jograis.
Vamos lá então:
Ai eu, coitada, como vivo em gram cuidado
Por meu amigo, que hei alongado!
Muito me tarda
O meu amigo na Guarda!

Ai eu, coitada, como vivo em gram desejo
Por meu amigo, que tarda e nem vejo!
Muito me tarda!
O meu amigo na Guarda!

  Quando os jograis deram por terminada a função, todos foram para a deita satisfeitos.

  Em nome da Santa e indivisa Trindade, Pai, Filho; Espírito Santo, ámen. Eu, rei Afonso, filho do rei Sancho, juntamente com minha mãe rainha Dulce, e ao mesmo tempo com G. Martins, prior de São Jorge e todo o seu convento e com frei João de Albergaria de Poiares, queremos restaurar e povoar o lugar de São Vicente, damos e concedemos o foro e costumes da cidade de Évora a todos, tanto presentes como futuros que lá quiserem habitar…
 (…) Se alguém quiser rasgar este facto nosso seja amaldiçoado de Deus.
Concedemos a todo o cristão, embora servo, desde que habite durante um ano em São Vicente, seja livre e ingénuo, ele e toda a sua progénie…

  Resumindo: uma vila do tempo da fundação de Portugal, e nunca houve ninguém que tenha atribuído o nome de uma rua, largo ou praça ao rei Sancho I ou erguer-lhe um busto. Nunca é tarde para corrigir…
Fiquem bem!

Notas:
Essa: Estrado onde se coloca o caixão com o cadáver durante as cerimónias fúnebres
Cantochão: Canto da igreja católica, canto gregoriano
Malado: Pessoa sujeita a encargos e serviços dos senhores feudais
Peão: Soldado de Infantaria; plebeu
Jogral: Músico
Amásia: Amante
Soldadeira: Mulher que serve por soldada, criada
Saltério: Instrumento musical de cordas
Louçana: Louçã
Hei alongado: Tenho ausente

Pesquisa:
História de Portugal, Fortunato de Almeida, Promoclube
Fotografia D. Sancho I, História de Portugal, Fortunato de Almeida, Promoclube
História da Literatura Portuguesa Ilustrada, Albino Forjaz de Sampaio, Livrarias Aillaud e Bertrand
Cantiga de amigo, (Ai eu, coitada…) História da Literatura Portuguesa Ilustrada, D. Carolina Michaelis de Vasconcelos

J.M.S

José Barroso

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Ex votos

Todos nós somos de uma maneira ou outra, religiosos. Mais não seja crermos na ciência humana. Os partidários do agnosticismo não crêem naquilo que não vêm, o intangível. Apesar de aparentemente não acreditarem na existência de um Ser criador de todas as coisas, crêem na ciência. São Tomé só acreditou quando viu o Mestre.
         Ao contrário dos agnósticos, os ateus não seguem qualquer religião; para eles, Deus não existe, em contrapartida, há os que acreditam numa divindade.
Católicos, muçulmanos, judeus, adoram um Deus único. “Latria”. Há povos que aceitam vários deuses.
Os católicos muitas vezes “negoceiam” com a divindade oferecendo contrapartidas pela graça recebida; podem ser velas, dinheiro, ex votos…
Quem numa hora difícil nunca pronunciou a palavra Deus? Valha-me Deus, Deus nos valha, Deus nos acuda…
A igreja da Misericórdia, dedicada ao Senhor Santo Cristo, guarda umas largas dezenas de ex votos, formas de agradecimento por graças alcançadas. Nela figuram dois belos quadros: um oferecido pelo visconde de Tinalhas e o outro pela família Robles Monteiro.
A maioria representa órgãos do corpo humano feitos em cera: braços, pernas, corações… Cada figuração representa a cura daquele órgão figurado.
Também se encontram figurações humanas completas, representam crianças que foram curadas dos seus males. A criança manifesta a dor através do choro, mas não consegue dizer qual o órgão afectado, então os progenitores oferecem à divindade uma figura humana.
Seja na igreja do Senhor Santo Cristo ou no santuário da Senhora da Orada, todos os objectos ex votos estão dependurados nos locais mais nobres do templo.
Na igreja da Misericórdia existe um divisa militar oferta de alguém que foi para a guerra e voltou são e salvo. Também se exibe um grande cirio.
Esta fé em algo que nos transcende já acontecia nos santuários da antiga Grécia. Os nossos reis, em alturas de aflição, agradeciam a Deus, através da construção de grandes monumentos: Real Convento de Mafra, Mosteiro da Batalha… No nosso tempo, ainda há muitos crentes que continuam a oferecer à divindade da sua devoção peças votivas.
Em Santuários como Fátima, Aires, Senhora da Póvoa, existem expostos em lugar apropriado peças de roupa, fotografias, ourivesaria e todo o género de recordações.
         Nos grandes ou pequenos santuários, como da Senhora da Orada, em dias de romaria, os crentes exibem velas acesas como agradecimento. Não se perpetuam no tempo. Enquanto dura a cerimónia, a súplica, o pedido ou o agradecimento pela graça recebida, as velas alumiam, é a forma de pagamento pela graça que a divindade concedeu.
Tudo isto está enraizado nos cultos de raiz popular.    
O Homem, ser finito, pelas suas fragilidades e dores, é limitado. Por isso tem necessidade de recorrer à acção benevolente dos santos, eles são os mediadores entre Deus e o Homem. Estas situações acontecem quase sempre quando a esperança na ciência se esgotou, voltando-se a pessoa para o além, para conseguir o milagre, por intercessão do santo a que se recorre.
A principal razão da existência dos ex votos é a gratidão pela graça concedida, mas para isso o pedido tem que ser acompanhado de muita fé. Porque a fé, nas obras se vê.

J.M.S





M. L. Ferreira

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Mudam-se os tempos

Hoje acordei com muitas ideias. Como o sonho comanda a vida, vou tentar colocá-las nos seus devidos lugares, cronologicamente falando.
Comecei por passar em revista as casas da nossa vila, como eram as habitações e como são nos nossos dias.
Passavam de pais para filhos, estes mantinham-nas tal qual as recebiam, medievas, a cheirar a mofo, com pouca luz, sem conforto, mas acolhedoras. Guardavam dentro de si recordações, histórias únicas; a luz bruxuleante da candeia, o candelabro, as velhas lucernas, a lamparina de azeite, tendo ao meio uma torcida que se mantinha acesa com a ajuda de um pequeno disco de cortiça com um furo ao meio de onde saía o pavio, iluminava o quarto, a sala… As nossas ruas possuíam em locais estratégicos candeeiros a petróleo. Assim que começava a anoitecer, um lanterneiro, escada numa mão, lata do petróleo na outra, acendia-os. “Já era bem bom”, como me contou um dia o senhor Zé coelhito.
Graças à eletricidade, tudo mudou. A noite escura desapareceu das nossas moradas e das nossas povoações, a pasmaceira que seria se ainda se vivesse assim. A energia eléctrica chega a todo o lado, os velhos artefactos foram substituídos pelas lâmpadas.
Eu sou a Luz do mundo, disse Jesus.
Não viviam somente as pessoas nas casas, as lojas eram ocupadas pelos animais que ajudavam nas lides domésticas, fossem vacas, burros, cabras, galináceos. Se a casa possuía mais que uma loja, a segunda destinava-se a guardar o vinho, a salgadeira, o azeite, as ferramentas… As paredes exteriores eram construídas com pedra granítica, miúda; por dentro, as divisões eram feitas de taipa, adobe; assoalhados de madeira… Cheiravam a mofo as casas dos nossos pais, mesmo assim eram acolhedoras.
A casa dos meus pais, da qual eu gostava bastante, certo dia foi totalmente derribada, só ficaram as paredes exteriores. Uns anos mais, o interior de outra casa medieva desaparece, julgo ter sido a pioneira no advir, morada da Maria do Ninho, casa grande feita de grossas paredes e taipa. Um dia chegaram pessoas vindas de fora, orientadas pelo pai do general Eanes, “construtor da obra” as madeiras foram substituídas por placas, vigas de cimento, o solar ficou irreconhecível por dentro, o cimento, o tijolo… começou uma nova era na edificação de edifícios
A vida na vila continuava a fazer-se como sempre se fez até aos anos setenta do passado século. As galinhas esgravatam as pedras da calçada, na esperança de encontrarem algum miolo, minhoca…; à porta das lojas as cordas que guiavam os burros eram atadas a argolas, as mulheres munidas de um caldeiro, onde iam as lavaduras e os restos de comida, desciam as escadas e limpavam a pia, despejando nela a vianda. Quando os porcos comiam bem, eram uma boquinha lavada.
Por vezes perdiam o apetite, a dona do animal ia à casa da pessoa que sabia tirar o mau-olhado. Feito o esconjuro, o porco voltava a comer, era um louvar a Deus. Por altura do Carnaval, os vicentinos ofereciam ao Santo António chouriças, nacos de toucinho, presunto, farinheiras, morcelas… O Chico Calmão empunhava o pau do santo e andava de rua em rua a pedir para o ramo de Santo António.
No princípio dos anos sessenta, Goa, Damão e Diu foram invadidas, ia sendo uma tragédia para os nossos soldados. Angola, Moçambique, Guiné; os mancebos partem aos milhares para as áfricas combater os “terroristas”. As feridas da segunda grande guerra ainda não estavam totalmente saradas na Europa, era preciso construir; voltar a reedificar estradas, pontes habitações… muitas famílias desapareceram do mapa, a Europa necessitava mão-de-obra. Portugueses, espanhóis, italianos… procuram uma vida melhor para si e os seus, grande parte dos trabalhos eram braçais, apesar de já existirem máquinas, a força do homem ainda imperava.
Partiam aos milhares a salto, passadores guiavam-nos até entrarem na terra prometida. Quando atravessavam as montanhas pirenaicas, em estreitas veredas cheias de perigos, se tivessem o azar de escorregar e cair precipício abaixo, iam parar ao rio e nunca mais… os outros seguiam cheios de frio, sujos…
Quando finalmente chegavam ao destino iam parar aos arredores da cidade onde se situavam os bidonvilles, barracas de lata cercadas de lama; os pioneiros viviam em condições péssimas, mesmo assim não desistiam, a vida aos poucos ia melhorando, ganhavam mais numa semana que em Portugal num mês, os trabalhos eram duros, verdade; valia a pena o sacrifício. As famílias juntavam-se, deixavam as barracas para viverem em habitações condignas, o sonho da casinha e da courela no lugar que os viu nascer tornava-se realidade. Só queriam ganhar dinheiro para construir a sua maison e adquirir um pedaço de terra. Os filhos crescem, fazem amigos, a palavra regressar não existia nos seus vocabulários. Havia o problema das guerras coloniais, mancebos fugiam a salto, as casas estavam construídas, olivais, courelas compradas. Foi passando o tempo, casaram os filhos, os netos surgiram e os pais, que só queriam realizar o sonho de terem uma linda casa, foram-se acomodando, a maior parte estão fechadas. É a vida.
Com o envio das remessas dos emigrantes, a construção civil progrediu, a paisagem medieva, rural, transformou-se.
As guerras coloniais não tinham fim à vista; 1974, militares milicianos protestam, o povo aproveita a boleia, surge a revolução do vinte e cinco de Abril.
Descolonização, mais de quinhentos mil desalojados portugueses abandonam haveres, terras, deixam tudo e regressam a Portugal.
Muitos nunca conheceram outra terra, Portugal era um lugar estranho; traziam experiência, conhecimentos, depressa se integraram na sociedade portuguesa, sangue novo foi injectado, floresceu o comércio, a indústria, a construção, o país aos poucos foi-se modernizando
Em 1985, Portugal assina o tratado de adesão à C.E.E., um ano depois entrava oficialmente. Todos os dias chegavam milhões de contos aos cofres. Auto-estradas, algumas quase paralelas, estádios, pavilhões… o dinheiro jorrava, os bancos emprestavam; “queres mil, leva dois mil” foi um fartar vilanagem.
Os valores especulativos dos bens caem, muitos bancos não aguentam a pancada e desmoronam-se, as casas desvalorizam drasticamente, a vida levou um tombo…
Portugal endividou-se, os empregos para toda a vida passaram a ser precários, a torneira foi-se fechando, muitas empresas abriram falência, o dinheiro fácil terminou. A sociedade actual é bem diferente da que era há meio-século atrás, as aldeias estão desertas, as cidades aumentaram a sua população, o perímetro urbano também, as vias de comunicação, os transportes, a saúde, a educação…tornaram-se realidades, a economia está nas mãos de empresas estranhas, a divida pública é enorme.
Os portugueses, povo forte e valente que sempre foi capaz de dar a volta por cima, um país que descobriu meio mundo, onde a língua de Camões é das mais faladas, um povo assim vencerá mais esta batalha.
As casas de outrora quase desapareceram das nossas aldeias, ainda há os resistentes que souberam preservá-las dando-lhes uma nova roupagem. Transformadas por dentro, acolhedoras, mantêm a traça exterior. Conserve-se o que ainda resta, há valores patrimoniais. Quando se esbarrondam, nunca mais se recuperam. Em vez de se esbarrondar, deve-se preservar, para que os nossos netos fiquem com uma ideia de como eram as habitações, as ruas estreitas e medievas no tempo dos seus avós.
O mundo é uma escadaria; sobem uns, descem outros, porque para trás mija a burra.
«Eles não sabem, nem sonham,
Que o sonho comanda a vida,
Que sempre que o homem sonha
O mundo pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança.»
Rómulo de Carvalho

J.M.S 

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

O caldudo

O castanheiro é uma árvore de grande porte e longevidade que se cultiva em muitas regiões do Mediterrâneo. Até aos meados do século XX, em muitas regiões beirãs e transmontanas, existiam enormes soutos. Os nossos pais saíam da vila em direcção à Senhora da Orada, levavam uma saca ou uma cesta e iam apanhando as castanhas que caiam para o caminho; “tal a quantidade de castanheiros que havia”. Na serra existiam enormes exemplares. Os fogos, a doença da tinta… exterminaram a maior parte dos soutos na região de São Vicente da Beira.
Durantes séculos, a castanha era um dos alimentos principais dos povos que habitavam as zonas serranas.
Com a chegada dos espanhóis aos países andinos descobriram um tubérculo “batata” que aos poucos foi destronando a castanha.
As castanhas eram as nossas “batatas”, podem-se comer cozidas, assadas, adocicadas…
Os nossos pais e avós faziam um pitéu muito apreciado, nos nossos dias quase completamente esquecido. Caldudo era o seu nome.
Para se fazer um bom caldudo, são necessárias castanhas piladas. A castanha era colocada em caniços “varas que se estendiam por cima da lareira paralelas umas às outras com uma distância de cerca de um centímetro”; deitavam-se as castanhas em cima das varas, espalham-se e iam secando com o calor da chama.
Depois de secas, tirava-se a pele e guardavam-se em bolsas de pano.

Perguntei à minha mãe como se faz o caldudo:

Para se fazer um bom caldudo, as castanhas têm que estar bem secas.
Põem-se de molho de um dia para o outro, depois tiram-se algumas peles que ainda tenham, coloca-se água num tacho com um pouco de sal, deitam-se as castanhas lá para dentro e deixam-se cozer.
Com uma colher e um garfo, vemos se já se esmagam. Quando se esmagarem, estão cozidas.
Havia quem gostasse de esmagar as castanhas todas; a tua avó deixava sempre algumas inteiras…
Despejamos a água que ainda se encontra no tacho e colocamos o leite juntamente com o açúcar. Deixamos ferver lentamente e vamos provando.
Quando punha o leite e o açúcar, gostava de deitar um pouco de canela e uma casquinha de limão. Ficava mais saboroso, havia quem não pusesse.
E se não tivermos castanhas piladas, pode-se fazer com castanhas normais!
Pode, mas não é tão bom.
Se o caldudo for feito com castanhas “verdes”, antes de se porem no tacho a cozer não esquecer de fazer um corte na castanha, se não se fizer começam a inchar e desfazem-se. Depois de cozidas tira-se a casca…

José Manuel anotou, a explicação foi dada por sua mãe Maria da Trindade, no dia 21 de Outubro do ano 2016, no Lar da Santa Casa da Misericórdia de São Vicente da Beira, sua vila Natal.


J. M. S.