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quinta-feira, 21 de abril de 2016

Lugares com histórias

Torta com chouriça

Quando a minha irmã que no céu esteja morreu, a dona Delevina foi logo a ter com a minha mãe para me deixar ir para o lugar dela.
- Eh minha senhora, não me leve a mal, mas a cachopinha é tão relezita! Deixe-a lá medrar mais alguma coisa, que Deus ainda agora me levou uma; não quero que esta me abale também.
- Não te preocupes que o trabalho não a há de matar! É só para ir à fonte e fazer os recados, que a Antónia já está velha. E sempre ficas com menos uma boca lá em casa.
Ao princípio não tive razões de queixa, mas passado pouco tempo, em vez de acartar água e fazer recados, tinha que esfregar o chão, lavar a roupa, passar a ferro; era o dia todo numa fona. E, quando me mandavam à loja a comprar alguma coisa, encomendavam-me logo o sermão:
- Olha que tu vai num pé e vem no outro; não fiques por lá na calhandrice com as outras!
A inveja que eu tinha quando passava na Praça e via as cachopitas da minha idade a jogar ao paspelho ou à pela!
Depois a dona Delevina adoeceu e ficou de cama, e fui também eu que tive que tratar dela. Quando a estava a lavar, não se calava:
- Ó rapariga, olha que tu fecha-me bem esses os olhos, que vais para o inferno se me vês o corpo!
Mas, não sei se era o diabo a atentar-me, quanto mais ela clamava, mais eu olhava, curiosa, porque nunca tinha visto um corpo de mulher feita todo encarapato. Um dia, na minha inocência, perguntei à minha mãe se a doença da senhora era terem-lhe nascido pêlos no corpo, e se aquilo se pegava.
- As coisas que esta mulher diz! Tu vê mas é se tens tino e nem abras a boca para ninguém, que até é pecado falar nessas coisas.
A partir daí achei que, se queria ir para o Céu, o remédio que tinha era andar de olhos fechados e boca calada, por isso nunca mais falei no assunto e só abria uma fisga dos olhos quando estava a tratar da senhora. Mas durante muito tempo não me saía da cabeça se aquela doença seria pegadiça, que tinha medo de ficar assim como ela, cheia de pêlos.
O pior daquela casa nem era o trabalho, era a miséria que se lá passava. De manhã só me davam uma malga de café negro com um bocado de pão com azeitonas; ao jantar era umas batatas estremes, só com um fio de azeite por cima; à ceia uma malga de caldo de feijão pequeno com couves. E era todos os dias a mesma coisa. Sem ser aos domingos ou dias de festa, raramente havia um bocadinho de conduto, numa casa tão farta de tudo: bons queijos de ovelha metidos naqueles grandes potes; boas chouriças e presuntos; ovos; azeite; vinho… Tudo quanto era bom, mas só para as visitas, que não saíam lá de casa… Tudo gente rica.
Quando a patroa, morreu quem ficou a tomar conta da casa foi a governanta. Já era velha, sempre a mancar duma perna e mouca que nem uma porta. Uma mãos de fome que ninguém calcula. Até parece que estou a vê-la, de saias rabudas, sempre com um molho de chaves preso à cintura, por cima do avental. À noite, quando ia para a cama, punha-as dentro dum açafate, em cima da banca de cabeceira, não fosse alguém pegar nelas.
Às vezes iam lá os pobres a bater à porta, a pedir esmola. Assim que os sentia, berrava-me lá para a cozinha:
- Ó Maria, olha que tu dá só azeite do velho ou do frito!
Mas eu, sempre que podia, pegava na amotolia às escondidas e dava era do bom, que tinham lá muito, e os pobres também são filhos de Deus; são ou não são?
Uma vez, só porque me viu a riscar dois fósforos para acender o lume, fartou-se de me chamar desgovernada, e que se fosse assim quando me casasse, havia de ser uma miserável. Eu só lhe respondi:
- Como é que quer que ateie o lume se a carqueja está toda verde? Amanhã acenda-o vossemecê, a ver se é capaz!
Ela ficou tão danada comigo que se me agarrou ao pescoço com tanta força que me ia atafegando. Estive mesmo para sair porta fora, mas tive medo que quando chegasse a casa a minha mãe me desse uma sova, e deixei-me ficar.
Às vezes ia lá a dormir comigo uma irmã minha. Um dia, chega lá ela e diz-me assim:
- Ai, irmã, venho cá mais desconsolada…
- Olha, dá cá a mão…
- Atão o que é que foi hoje a ceia?
- O que é que havia de ser? O mesmo de sempre.
- Com tanta coisa boa que há nesta casa e esta unhas de fome só te dá caldo?! Deixa-a estar que a gente já a coça!
Ficámos à espera que fosse para a cama e, assim que a ouvimos a ressonar, entrei no quarto, devagarinho, e fui direita ao açafate das chaves. Ela, mouca como era, nem se mexeu. Depois fomos à loja, pegámos nuns poucos de ovos, numa chouriça e numa medida de vinho, e voltámos para a cozinha. Batemos os ovos bem batidinhos, migámos a chouriça e fizemos uma torta. Ficou cá uma tora, mas demos cabo dela toda! No fim, até nos lambemos! Ainda por cima com um copinho de vinho para cada uma, foi como se estivéssemos a comer a melhor coisa do mundo!
E a ti Tonha, na cama, a ressonar; nem o cheiro a acordou. E nós, essa noite, também dormimos mais regaladinhas…   


M. L. Ferreira

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Rivalidades antigas

 Já houve um tempo em que os do Sobral não podiam ver os de S. Vicente, e os de S. Vicente, a mesma coisa quanto aos do Sobral. Ai daqueles que se aventurassem nas festas uns dos outros, e nos bailes nem os mais valentes se atreviam a tirar uma rapariga para dançar. Eram logo encorridos à pedrada ou à paulada. E tudo por causa da Santa Bárbara que antigamente tinha a capela na estrema entre os dois povos e os de lá achavam que era deles; os de cá, diziam que era nossa.
Um dia os nossos puseram-se a caminho e roubaram a Santa. Depois pegaram num carro de bois e foram buscar as pedras para a capela. Pediram um bocado de terra à Dona Celestina e fizeram-na aqui, no Casal da Fraga.


Enquanto duraram as obras, a Santa andou fugida de casa em casa, escondida no forro ou na loja para não ser achada, que os do Sobral não se conformavam com a perda da Santa.
É pequenina, a capela, mas motivo de grande orgulho e devoção. Tem a data de 23 – 03 - 23 e a partir daí todos os anos lhe fazem cá a festa, na terceira semana a seguir à Páscoa. É este fim de semana.


O programa promete, assim a Santa ajude com a melhoria do tempo. Diz que para contentar os dois povos, no ano em que chove na festa da Senhora da Saúde faz sol na de Santa Bárbara. Este ano choveu no Sobral, oxalá se cumpra a tradição e faça sol por cá…
Mas não é só entre o Sobral e S. Vicente que aconteceram estas rivalidades na disputa de santos e santas. Diz que entre a Póvoa e Tinalhas houve guerras ainda piores por causa da Senhora da Encarnação cuja capela também foi construída nos limites entre as duas localidades. Todos os anos, por alturas da romaria, tinham que pedir o reforço da guarda, e mesmo assim havia sempre muitas cabeças partidas. Só quando os de Tinalhas resolveram fazer uma capela à Rainha Santa Isabel, no outro extremo da terra, os ânimos acalmaram. Mesmo assim, na veneração à Santa ainda lembram rivalidades antigas:

Rainha Santa Isabel,
Tendes uma capela nova,
Foi o povo de Tinalhas
P’ra fazer ver aos da Póva.


M. L. Ferreira

sábado, 9 de abril de 2016

Mais Natureza


Para além dos azuis, roxos e violetas dos chupa-meis e viuvinhas (é assim que aqui chamamos às flores das fotografias que o José Teodoro publicou há dias), a Serra está já toda pintada do branco das estevas, do cor de rosa das urzes e do amarelo da carqueja. São uma bênção para a alma e algumas delas, também para o corpo.


O chá da flor de carqueja faz bem às digestões, à dor de barriga, à diabetes e à circulação. E para as constipações, tosse e dor de garganta? Diz a Ti Zefa que é tão bom como a graça de Deus!

M. L. Ferreira

terça-feira, 29 de março de 2016

Lugares com histórias

Namoros antigos
  
Como é que começámos a namorar? Olhe que já lá vão uma tormenta d’anos, mas ainda me alembro como se fosse hoje.



Andava com o meu pai a fazer aquela casa além em cima e via-a passar para a fonte ou a caminho da horta, com a cesta enfiada no braço. Havia dias que abalava logo de manhã, com um molho de mantas à cabeça, e só voltava já rente ao sol-posto. Assim que a via aparecer ao fundo da rua, até parece que o coração me queria saltar do peito e já nem as pedras assentavam como devia ser, umas em cima das outras. Às vezes até me esquecia que o meu pai podia ver e ficava parado a olhar e a sonhar que ainda um dia ela havia de ser minha.
Era a rapariga mais linda das redondezas! Mas o diabo é que ela tinha tanto de bonita como de arisca e, se calhava estar à porta ou à janela quando eu passava, assim que me via arrecadava-se logo para dentro. De modo que o tempo foi passando e não havia meio de arranjar maneira de chegar à fala com ela. Um dia, já andávamos nas empenas, o meu pai volta-se para mim e diz-me assim:
- Mas que raio de homem és tu que nem tens porte para pedir namora à cachopa!
- Qual cachopa é que vossemecê diz?
- Atão eu não te tenho visto a olhar para aquela além?
E eu a julgar que ele ainda não tinha percebido nada…
- Vossemecê não está bom da cabeça! Onde é que me viu a olhar p’ra ela?
- Não que não vejo… E olha que a rapariga até é bem asadinha! E há de ser trabalhadora, que não pára, sempre numa fona de um lado para o outro.
Passados uns dias, estava ela sentada à porta de casa.
- Estava a migar couves para as pitas.
Vê como ela também ainda se lembra dessa parte?
E eu já não aguentava mais. Peguei numa pedrinha e atirei-a devagar, não fosse acerta-lhe na cabeça. Foi-lhe cair mesmo aos pés. Deve-se ter assustado que olhou a toda a roda e, quando deu comigo lá em cima, perguntou-me, a modos que zangada:
- O que é que tem que andar a atirar-me com pedras?
- Olhe que não fui eu! Ia lá agora atirar pedras a uma rapariga tão linda…
- Se não foi vossemecê, deve ter sido o meu anjo da guarda.
- Nunca se sabe…
Quando foi à noite, que largámos, passei-lhe à porta e já não se escondeu. Dei-lhe a salvação e ela, ainda meio entre dentes:
- Vão lá com Deus.
Nos dias a seguir, sempre que a via, a mesma coisa; e por fim até já dava um sorriso. E os olhos dela ficavam ainda mais lindos quando se ria! Passados uns tempos, a um domingo, esperei-a à saída da missa e acompanhei-a até à porta de casa. E mal arranjei maneira de começar esta casinha para nos metermos cá dentro, pedi-a em casamento. Até hoje!
-­­ Está a ver como as coisas são? Mal sabia eu que havia de ser ele o meu Anjo da Guarda! E olhe que bem me tem valido, nas horas boas e nas más, que também têm sido muitas…
- Então e não foi aquilo que prometemos um ao outro no altar?

M. L. Ferreira

sábado, 19 de março de 2016

Mais uma boa notícia...

Voltar à escola

A USALBI alargou a sua área de ação e abriu pólos em várias freguesias do concelho. Uma das freguesias contempladas foi a nossa. E foi uma emoção voltar a subir aquelas escadas na qualidade de aluno!


Ainda não são muitos os que iniciaram as aulas, mas estão todos muito entusiasmados, principalmente com as aulas de informática, o que é um bom começo. Talvez no próximo ano o número de inscrições aumente.


“VIVER, APRENDER, CONVIVER” é o lema que justifica o trabalho das Universidades Sénior: não interessa apenas viver mais; interessa, sobretudo, viver melhor. Uma grande verdade!

M. L. Ferreira

sexta-feira, 11 de março de 2016

Judeus em São Vicente

Em São Vicente da Beira, também encontramos ainda bastantes vestígios da presença dos Judeus.


Esta janela, ao fundo da Rua Manuel Lopes, pelo biselado, pelo estilo do lintel
e pela data, pode ser um bom exemplo.


Na porta mais larga desta casa, ao cimo da mesma rua, terá havido um sapateiro? Parece que houve muitos por cá, noutros tempos.


E nesta janela, que já foi porta, pode bem ter trabalhado um ferreiro…

Parece que a herança que nos ficou dos judeus não está apenas no património construído, mas manifesta-se ainda em alguns aspetos da nossa cultura e peculiaridades da nossa maneira de ser. Por exemplo o beijar o pão, quando cai, será um hábito herdado dos Judeus. E a bipolaridade que nos caracteriza e se traduz no facto de num momento sermos uma coisa e no momento seguinte sermos o seu contrário, poderá significar que temos alguma coisa de marrano no nosso ADN…

Nota: muitas das informações/afirmações contidas no texto desta publicação foram recolhidas no programa “Visita Guiada” transmitido na RTP2, no dia 12 de janeiro de 2015, e “Encontros com o Património” transmitido na TSF, no dia 6 de fevereiro de 2016.

M. L. Ferreira