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terça-feira, 7 de março de 2017

Juiz de fora

Este é o registo de casamento da filha do juiz de fora de São Vicente da Beira, celebrado na igreja matriz desta vila, no dia 21 de junho de 1705.
Casaram, então, o Doutor João Baptista, viúvo de Ângela da Mota da Fonseca, natural de Abrantes, e
Dona Beatriz de Andrade, filha do Doutor André Lopes de Andrade, juiz de fora de São Vicente da Beira, e de sua mulher Dona Maria de Andrade.
Assina como testemunha um outro ilustre de São Vicente, naquela época, o Doutor Manuel Jaques de Morais.
José Teodoro Prata

quinta-feira, 2 de março de 2017

Torturas

Bom homem, o Ti Zé Cipriano. Cantava que nem um rouxinol e para contar histórias, estava por ali… Mas ai de quem se risse ou dissesse alguma coisa enquanto ele falava, que abria muito os olhos e punha logo tudo em sentido. Um dia contou-nos esta assim, a mim e à minha mãe:
«Quando vim da Guerra, fiquei em Lisboa como impedido dum General. Gostava muito dele, e ele a mim tratava-me como a um filho. Para onde quer que fosse levava-me sempre a acompanhá-lo, e foi com ele que aprendi muitas das coisas que sei hoje
Um dia fomos os dois à Torre do Tombo, que ele era muito dado a essas coisas antigas, e encontrou lá um livro que contava a história dum padre que por modos, entre missas e confissões, não havia saias nas redondezas com que não se metesse. Era raro o ano em que não aparecia na terra mais um ou dois cachopitos que eram a cara chapada dele. Por modos chegaram a conhecer-se-lhe p’ra cima de trinta, entre fêmeas e machos.
E andou por lá muitos anos a pregar, a comer boas galinhas e a esfregar as mãos de contente enquanto sacudia a batina.
Na terra toda a gente sabia dos pecados do padre, mas eram tempos de miséria e de medo, e muitas vezes até as mães e os pais fechavam os olhos e os ouvidos, na esperança de verem as filhas fugirem à pobreza em que viviam. Que havia alguns que aperfilhavam os filhos e até punham casa às raparigas. Mas este é que não ia nessa, e nunca reconheceu nenhum dos inocentes, nem deu uma fatia de pão a ninguém, apesar de todos saberem que tinha muito de seu.
Naquele tempo reinava em Portugal um rei que o que queria era divertir-se e comer do bom e do melhor. Como não tinha mão no País, era o ministro que mandava e fazia tudo à maneira dele. Por modos até era bom ministro e leal ao rei, mas era um ganancioso, com a mania das grandezas e mau como as cobras. Só fazia o que tinha na ideia e lhe desse proveito, nem que tivesse que mandar expulsar ou matar os que lhe fizessem frente.   
Um dia chegou-lhe aos ouvidos a história do padre e ele próprio ditou-lhe a sentença: Que o atassem a um cavalo montado por um cavaleiro com boas esporas, e dessem tantas voltas ao castelo quantas fossem precisas até não ter pinga de sangue; e no fim de morto que deitassem os restos às feras. Os bens dele, todos confiscados, que logo se veria o que fazer com eles.
Assim que lhe chegou aos ouvidos a sentença do ministro, o padre tratou de se esconder o melhor que pode. E tal era o esconderijo que durante uns tempos ninguém soube onde é que se tinha metido. Passados uns tempos, o rei morreu e, como não tinha filhos varões, quem lhe sucedeu foi a filha. Diziam que tinha pouco juízo, mas coragem não lhe faltava. Tratou logo de despedir o ministro e acabar com muitas das leis que ele tinha feito.
Quando lhe chegou aos ouvidos a sentença do padre, mandou-o procurar e perguntou-lhe quantos eram os filhos que tinha tido.
- Saiba Vossa Alteza que são dezoito machos e pr’aí uma dúzia de fêmeas.
De boca aberta, a rainha virou-se para o novo ministro e exclamou:
- Como é que se pode mandar matar um homem que deu tantos filhos à nação? Ainda por cima sendo homens, o mais deles!
E para o padre:
- Abale lá para a sua terra e a partir de agora cumpra os Mandamentos e dê de comer a quem tem fome!
- Creia Vossa Alteza que assim farei.
Por modos já estava velho e nunca mais se ouviu falar dele, nem de mais nenhum rebento».

Esta história foi-me contada há algum tempo por uma vizinha que ainda se lembra do senhor José da Silva Lobo, mais conhecido por Zé Cipriano. Lembrei-me dela quando há dias vi estas imagens de instrumentos e práticas de tortura da Inquisição:




Voltei a lembrá-la há umas semanas, a propósito das declarações de Donald Trump sobre a eficácia da tortura e a ideia de que se deve combater o fogo com o fogo. Se é por demais lamentável que, apesar de proibida, a tortura seja ainda uma prática frequente em muitos países, incluindo Portugal, há alguma diferença entre essas situações (que mais não seja porque podem ser denunciadas e punidas) e o que defende o presidente de uma das nações mais influentes do mundo.

«Olho por olho, e o mundo ficará cego…», M. Gandhi

M. L. Ferreira

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Mudam-se os tempos

Hoje acordei com muitas ideias. Como o sonho comanda a vida, vou tentar colocá-las nos seus devidos lugares, cronologicamente falando.
Comecei por passar em revista as casas da nossa vila, como eram as habitações e como são nos nossos dias.
Passavam de pais para filhos, estes mantinham-nas tal qual as recebiam, medievas, a cheirar a mofo, com pouca luz, sem conforto, mas acolhedoras. Guardavam dentro de si recordações, histórias únicas; a luz bruxuleante da candeia, o candelabro, as velhas lucernas, a lamparina de azeite, tendo ao meio uma torcida que se mantinha acesa com a ajuda de um pequeno disco de cortiça com um furo ao meio de onde saía o pavio, iluminava o quarto, a sala… As nossas ruas possuíam em locais estratégicos candeeiros a petróleo. Assim que começava a anoitecer, um lanterneiro, escada numa mão, lata do petróleo na outra, acendia-os. “Já era bem bom”, como me contou um dia o senhor Zé coelhito.
Graças à eletricidade, tudo mudou. A noite escura desapareceu das nossas moradas e das nossas povoações, a pasmaceira que seria se ainda se vivesse assim. A energia eléctrica chega a todo o lado, os velhos artefactos foram substituídos pelas lâmpadas.
Eu sou a Luz do mundo, disse Jesus.
Não viviam somente as pessoas nas casas, as lojas eram ocupadas pelos animais que ajudavam nas lides domésticas, fossem vacas, burros, cabras, galináceos. Se a casa possuía mais que uma loja, a segunda destinava-se a guardar o vinho, a salgadeira, o azeite, as ferramentas… As paredes exteriores eram construídas com pedra granítica, miúda; por dentro, as divisões eram feitas de taipa, adobe; assoalhados de madeira… Cheiravam a mofo as casas dos nossos pais, mesmo assim eram acolhedoras.
A casa dos meus pais, da qual eu gostava bastante, certo dia foi totalmente derribada, só ficaram as paredes exteriores. Uns anos mais, o interior de outra casa medieva desaparece, julgo ter sido a pioneira no advir, morada da Maria do Ninho, casa grande feita de grossas paredes e taipa. Um dia chegaram pessoas vindas de fora, orientadas pelo pai do general Eanes, “construtor da obra” as madeiras foram substituídas por placas, vigas de cimento, o solar ficou irreconhecível por dentro, o cimento, o tijolo… começou uma nova era na edificação de edifícios
A vida na vila continuava a fazer-se como sempre se fez até aos anos setenta do passado século. As galinhas esgravatam as pedras da calçada, na esperança de encontrarem algum miolo, minhoca…; à porta das lojas as cordas que guiavam os burros eram atadas a argolas, as mulheres munidas de um caldeiro, onde iam as lavaduras e os restos de comida, desciam as escadas e limpavam a pia, despejando nela a vianda. Quando os porcos comiam bem, eram uma boquinha lavada.
Por vezes perdiam o apetite, a dona do animal ia à casa da pessoa que sabia tirar o mau-olhado. Feito o esconjuro, o porco voltava a comer, era um louvar a Deus. Por altura do Carnaval, os vicentinos ofereciam ao Santo António chouriças, nacos de toucinho, presunto, farinheiras, morcelas… O Chico Calmão empunhava o pau do santo e andava de rua em rua a pedir para o ramo de Santo António.
No princípio dos anos sessenta, Goa, Damão e Diu foram invadidas, ia sendo uma tragédia para os nossos soldados. Angola, Moçambique, Guiné; os mancebos partem aos milhares para as áfricas combater os “terroristas”. As feridas da segunda grande guerra ainda não estavam totalmente saradas na Europa, era preciso construir; voltar a reedificar estradas, pontes habitações… muitas famílias desapareceram do mapa, a Europa necessitava mão-de-obra. Portugueses, espanhóis, italianos… procuram uma vida melhor para si e os seus, grande parte dos trabalhos eram braçais, apesar de já existirem máquinas, a força do homem ainda imperava.
Partiam aos milhares a salto, passadores guiavam-nos até entrarem na terra prometida. Quando atravessavam as montanhas pirenaicas, em estreitas veredas cheias de perigos, se tivessem o azar de escorregar e cair precipício abaixo, iam parar ao rio e nunca mais… os outros seguiam cheios de frio, sujos…
Quando finalmente chegavam ao destino iam parar aos arredores da cidade onde se situavam os bidonvilles, barracas de lata cercadas de lama; os pioneiros viviam em condições péssimas, mesmo assim não desistiam, a vida aos poucos ia melhorando, ganhavam mais numa semana que em Portugal num mês, os trabalhos eram duros, verdade; valia a pena o sacrifício. As famílias juntavam-se, deixavam as barracas para viverem em habitações condignas, o sonho da casinha e da courela no lugar que os viu nascer tornava-se realidade. Só queriam ganhar dinheiro para construir a sua maison e adquirir um pedaço de terra. Os filhos crescem, fazem amigos, a palavra regressar não existia nos seus vocabulários. Havia o problema das guerras coloniais, mancebos fugiam a salto, as casas estavam construídas, olivais, courelas compradas. Foi passando o tempo, casaram os filhos, os netos surgiram e os pais, que só queriam realizar o sonho de terem uma linda casa, foram-se acomodando, a maior parte estão fechadas. É a vida.
Com o envio das remessas dos emigrantes, a construção civil progrediu, a paisagem medieva, rural, transformou-se.
As guerras coloniais não tinham fim à vista; 1974, militares milicianos protestam, o povo aproveita a boleia, surge a revolução do vinte e cinco de Abril.
Descolonização, mais de quinhentos mil desalojados portugueses abandonam haveres, terras, deixam tudo e regressam a Portugal.
Muitos nunca conheceram outra terra, Portugal era um lugar estranho; traziam experiência, conhecimentos, depressa se integraram na sociedade portuguesa, sangue novo foi injectado, floresceu o comércio, a indústria, a construção, o país aos poucos foi-se modernizando
Em 1985, Portugal assina o tratado de adesão à C.E.E., um ano depois entrava oficialmente. Todos os dias chegavam milhões de contos aos cofres. Auto-estradas, algumas quase paralelas, estádios, pavilhões… o dinheiro jorrava, os bancos emprestavam; “queres mil, leva dois mil” foi um fartar vilanagem.
Os valores especulativos dos bens caem, muitos bancos não aguentam a pancada e desmoronam-se, as casas desvalorizam drasticamente, a vida levou um tombo…
Portugal endividou-se, os empregos para toda a vida passaram a ser precários, a torneira foi-se fechando, muitas empresas abriram falência, o dinheiro fácil terminou. A sociedade actual é bem diferente da que era há meio-século atrás, as aldeias estão desertas, as cidades aumentaram a sua população, o perímetro urbano também, as vias de comunicação, os transportes, a saúde, a educação…tornaram-se realidades, a economia está nas mãos de empresas estranhas, a divida pública é enorme.
Os portugueses, povo forte e valente que sempre foi capaz de dar a volta por cima, um país que descobriu meio mundo, onde a língua de Camões é das mais faladas, um povo assim vencerá mais esta batalha.
As casas de outrora quase desapareceram das nossas aldeias, ainda há os resistentes que souberam preservá-las dando-lhes uma nova roupagem. Transformadas por dentro, acolhedoras, mantêm a traça exterior. Conserve-se o que ainda resta, há valores patrimoniais. Quando se esbarrondam, nunca mais se recuperam. Em vez de se esbarrondar, deve-se preservar, para que os nossos netos fiquem com uma ideia de como eram as habitações, as ruas estreitas e medievas no tempo dos seus avós.
O mundo é uma escadaria; sobem uns, descem outros, porque para trás mija a burra.
«Eles não sabem, nem sonham,
Que o sonho comanda a vida,
Que sempre que o homem sonha
O mundo pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança.»
Rómulo de Carvalho

J.M.S 

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O tocador de realejo

Nasci e vivi no Casal da Fraga até aos 20 anos. Só de lá saí para ir para a tropa. Era muito amigo do teu tio João e do que toca reco-reco no rancho. Andávamos sempre juntos!
Nos anos 50 e 60, a malta da Vila ia toda para o Casal, ao bailarico. Era na taberna do Marcelino e adivinha quem era o tocador? Eu, a tocar realejo. Tudo a dançar, menos eu, que nem cheguei a aprender. E jogávamos à malha, naquele chão de terra em frente à taberna.
Depois fui para a tropa e tirei a especialidade de condutor. Já sabia que me mandavam para o Ultramar. Em Santa Margarida até esperavam que nós acabássemos a formação em Coimbra para depois irmos para a guerra.
No dia em que abalei, subi o caminho da ribeira e parei lá no alto. Virei-me e olhei para o Casal e depois passei os olhos por todo o vale até à Senhora da Orada. Não sabia se voltava a ver aquilo tudo.
A viagem para Angola demorou 12 dias. À chegada não nos deram de comer e fui mais um da Soalheira a um bar do porto comer umas sandes e comprar tabaco. Depois fomos de comboio para um quartel nos arredores de Luanda. Era tudo tão feio! Durante uns dias ainda senti o corpo para cima e para baixo, como se continuasse no baloiço do mar.
Ao segundo dia, o capitão avisou-nos: amanhã estão no mato, a qualquer momento podem ter o inimigo à vossa frente! Não largávamos a arma e o cinto com 100 balas, nem para comer! Aquilo pesava, mas depressa nos habituámos.
Nunca dei um tiro em combate, só alguns num campo de tiro, para a experimentar. A certa altura começámos a ouvir tiros e viemos embora, pois os inimigos estavam lá no alto a ver-nos. Mas nunca nos atacaram. Talvez por causa do Alferes Coelho. Na altura não sabia nada, ele era um como os outros, mas tinha de certeza um pequeno grupo de amigos com quem conversava.
Muitos anos depois de voltar, procurei o pessoal do meu batalhão na internet e encontrei logo o Alferes Coelho. Eu só o conhecia por esse nome, mas fiquei a saber que se chamava Mário Brochado Coelho e que tinha tido muitos problemas com a Pide, logo na Universidade. Aliás, foi mandado para o Ultramar de castigo e lá a Pide fazia um relatório dele todos os quinze dias. Ele nunca escreveu nenhum aerograma, pois sabia que lhos abriam logo. Mandava cartas para Luanda, pelos motoristas brancos que lá iam. Ele era advogado e defendeu muitos presos políticos. Escreveu isto tudo num livro que já estava esgotado, mas eu andei, andei e consegui comprá-lo. Quem mo trouxe do Porto foi um rapaz de Vila das Aves que estuda cá informática.
Ele fala de mim no livro. A certa altura escreve que está sentado na secretária a olhar pela janela para a palmeira. E que está guardado por dois soldados, o Espanhol e o Russo. Ele chamava-me Espanhol e ao outro chamavam Russo, não sei porquê. Escreveu que éramos um batalhão muito internacional, até lá tínhamos tido um Americano (tinha a mania de falar inglês), mas que já tinha sido mandado para outro lado.
O nosso quartel ficava a 120 quilómetros e a melhor coisa que fazíamos era ir a Luanda buscar cerveja. Na floresta aquilo era perigoso. Conduzia uma viatura enorme com para-choques largo de ferro carregado com sacos de areia. E a toda a volta a mesma coisa. Até debaixo dos pés tinha sacos de areia, para não irmos pelos ares se rebentássemos uma mina. Por duas vezes não morri por pouco, valeu-me Nossa Senhora.
Depois estive bastante tempo em Nova Lisboa, mas lá não havia guerra. Era tudo normal, uma cidade como aqui. Curioso, nunca me lembro dos tempos que lá passei, só dos que vivi no mato.


José Teodoro Prata

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

O caldudo

O castanheiro é uma árvore de grande porte e longevidade que se cultiva em muitas regiões do Mediterrâneo. Até aos meados do século XX, em muitas regiões beirãs e transmontanas, existiam enormes soutos. Os nossos pais saíam da vila em direcção à Senhora da Orada, levavam uma saca ou uma cesta e iam apanhando as castanhas que caiam para o caminho; “tal a quantidade de castanheiros que havia”. Na serra existiam enormes exemplares. Os fogos, a doença da tinta… exterminaram a maior parte dos soutos na região de São Vicente da Beira.
Durantes séculos, a castanha era um dos alimentos principais dos povos que habitavam as zonas serranas.
Com a chegada dos espanhóis aos países andinos descobriram um tubérculo “batata” que aos poucos foi destronando a castanha.
As castanhas eram as nossas “batatas”, podem-se comer cozidas, assadas, adocicadas…
Os nossos pais e avós faziam um pitéu muito apreciado, nos nossos dias quase completamente esquecido. Caldudo era o seu nome.
Para se fazer um bom caldudo, são necessárias castanhas piladas. A castanha era colocada em caniços “varas que se estendiam por cima da lareira paralelas umas às outras com uma distância de cerca de um centímetro”; deitavam-se as castanhas em cima das varas, espalham-se e iam secando com o calor da chama.
Depois de secas, tirava-se a pele e guardavam-se em bolsas de pano.

Perguntei à minha mãe como se faz o caldudo:

Para se fazer um bom caldudo, as castanhas têm que estar bem secas.
Põem-se de molho de um dia para o outro, depois tiram-se algumas peles que ainda tenham, coloca-se água num tacho com um pouco de sal, deitam-se as castanhas lá para dentro e deixam-se cozer.
Com uma colher e um garfo, vemos se já se esmagam. Quando se esmagarem, estão cozidas.
Havia quem gostasse de esmagar as castanhas todas; a tua avó deixava sempre algumas inteiras…
Despejamos a água que ainda se encontra no tacho e colocamos o leite juntamente com o açúcar. Deixamos ferver lentamente e vamos provando.
Quando punha o leite e o açúcar, gostava de deitar um pouco de canela e uma casquinha de limão. Ficava mais saboroso, havia quem não pusesse.
E se não tivermos castanhas piladas, pode-se fazer com castanhas normais!
Pode, mas não é tão bom.
Se o caldudo for feito com castanhas “verdes”, antes de se porem no tacho a cozer não esquecer de fazer um corte na castanha, se não se fizer começam a inchar e desfazem-se. Depois de cozidas tira-se a casca…

José Manuel anotou, a explicação foi dada por sua mãe Maria da Trindade, no dia 21 de Outubro do ano 2016, no Lar da Santa Casa da Misericórdia de São Vicente da Beira, sua vila Natal.


J. M. S.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

O Endireita da Paradanta

Naquele tempo, havia poucos médicos e o dinheiro para consultas e medicamentos ainda era menos, por isso os mais pobres não tinham outro remédio senão recorrer aos santos da sua devoção ou aos curiosos, para se tratarem de qualquer mazela de que padecessem. Havia-os por todo o lado e para quase tudo usavam benzeduras, rezas e mezinhas feitas com o que tinham à mão.
Para problemas de ossos, não havia como o Endireita da Paradanta. Tinha uma fama tão grande que era procurado até por gente que vinha de longe. Dizem que às vezes lhe chegavam à porta tolhidos das costas ou com pernas e braços que mal podiam mexer e saíam de lá como se não fosse nada com eles. Por modos, até os médicos lhe mandavam os doentes, quando já não se entendiam com os males de que se queixavam.
Mas, como em todo o lado, aqui nas nossas terras há muita gente que não pode ver uma camisa lavada a um pobre e havia quem tivesse inveja de alguns bocaditos de terra que ele ia comprando à custa do trabalho que fazia. Devem ter ido dar parte dele, que um dia a autoridade bateu-lhe à porta.
- Como é que vossemecê se chama?
- Por enquanto ainda sou João; João Faustino, senhor guarda.
- Então e é vossemecê que anda aí a fazer-se passar por doutor?
- Não senhor, senhor guarda, que não estudei para isso. Desde pequeno que sou ferreiro, que foi a arte que o meu pai me deixou.
- Não estudou p’ra doutor, mas até parece; que por modos não lhe falta freguesia à porta. 
- Olhe, senhor guarda, lá isso é verdade, mas os doutores fazem o serviço deles e eu faço o meu, que neste mundo há trabalho para todos. Mas sempre lhe digo que para levar os ossos ao lugar, não há pai p’ra mim.
- Ai ele é assim? Então já vamos a ver se é como vossemecê diz. Traga-me aí uma galinha.
- Trago até duas, que tenho um galinheiro cheio delas, bem gordas.
- Para o que é, basta uma!
O ti João foi à capoeira, apanhou a galinha mais gorda e entregou-a a um dos guardas. Nem quis crer quando o viu agarrar no animal pelas patas, pegar no bastão e quebrar-lhas pelo meio.  
- Agora é que vamos a ver se é como vossemecê diz! Pegue lá no bicho e ponha-o outra vez a andar, se for capaz.
O endireita agarrou no frango e, mexe daqui, puxa dali, roda dacolá, passado um bocado põe-no outra vez no chão. O animal, mal se viu à solta, ó pernas para que vos quero! Desatou a correr por ali fora e já ninguém o agarrou. Os guardas até ficaram aparvalhados.
- Sim senhora, por esta é que nós não estávamos à espera! Olhe, ti João, fique cá com Deus e governe a sua vida, que bem merece. Nós já levamos que contar.


M. L. Ferreira

domingo, 12 de fevereiro de 2017

O Dr. Nicolau Veloso

Estive a recapitular e já fiz duas publicações sobre o Nicolau Veloso. Mas numa coloquei um documento do de Távora e noutra do de Carvalho.
Hoje apresento documentos dos dois: o casamento do de Carvalho e o casamento de dois jovens de fora da Vila que trabalhavam no forno do Licenciado Nicolau Veloso de Távora. Era então um letrado, o que o coloca na primeira linha para ganhar nome de rua.
Outra questão são os fornos da Vila. Não havia fornos comunitários e as pessoas mais ricas tinham um forno, onde quem cozesse pão pagava uma percentagem da cozedura. O mesmo se passava nos moinhos e os lagares. Aliás, na Torre, todos os poderosos da região tinham um moinho, para ganhar com a correnteza das águas da Ocreza. O nome do pagamento variava do forno para o moinho (maquia) ou o lagar (poia), mas o valor não, era sempre um oitavo (1/8).
Agora imaginem este cenário muito próximo da realidade: um rendeiro colhia os cereais e a renda menor que poderia pagar era 1/8 (se colhesse 8 sacas, entregava uma). Depois moía o cereal, quinzenalmente ou de mês a mês, mas sempre que fosse ao moinho, que poderia ser do senhorio das terras que cultivava, deixava 1/8 da semente ou da farinha. De seguida ia ao forno de um senhor da vila, que poderia ser do dono das terras que trazia arrendadas, e entregava 1/8 do pão no final da cozedura. Não admira que se morresse tanto!



José Teodoro Prata

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Neve

Há neve um pouco por todo o país, mas entre o sopé da Gardunha e o da serra de São Mamede (Portalegre) não caiu nada. Daqui (Castelo Branco) vê-se o cabeço do Mastro todo branquinho, parece um lençol estendido lá do alto até à capela da Senhora da Orada.
A imagem abaixo apresentada é do site http://www1.hotelsamasafundao.com/index.php/galeria.
Não será deste nevão, mas é assim que estarão os altos da Gardunha.


A foto é do nevão de 2010, tirada pelo Jaime Gama.
Ontem o santuário estaria igual.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O frete da farmácia

Todos os vicentinos do meu tempo e mais velhos quando lerem esta historieta vão recordá-la certamente, fez parte da nossa geração.
A vila naqueles tempos era uma pacata povoação rural. Havia meia dúzia de casas ricas que dominavam, os homens eram contratados à jorna. Se por ventura o tempo não estivesse capaz e não pudessem trabalhar não ganhavam nada e alguns ainda gastavam o pouco pecúlio que havia emborcando copos de vinho nas tabernas. Se por um acaso jornaleiro tivesse o azar de adoecer, não havia nada que o protegesse durante a doença; não trabalhava, não ganhava.
Tempos duros, difíceis; alguns pela manhã iam para a praça na esperança que alguém os contratasse para o duro trabalho diário
A vida quotidiana regia-se pelo badalar das horas e pelo toque do sino que chamava os fiéis à igreja. Todos os dias antes de o sol nascer, o vigário celebrava uma missa, o templo na penumbra; bruxuleando somente as velas do altar sacrificial, a igreja acolhia muitas dezenas de jornaleiros, artesãos, criadas, proprietários… assistiam à missa antes de começarem as tarefas diárias
Apesar da pacatez rural, as pessoas viviam felizes, naquele tempo não havia nenhuma habitação pobre ou rica que não estivesse habitada, as ruas fervilhavam de gente, a natalidade superava os óbitos. Na Rua do Beco existiam: um artesão, senhor Fernando latoeiro; uma barbearia, senhor José Craveiro; uma padaria, senhor José Matias; uma farmácia, senhor Segurado; um café, senhora Eulália; mais tarde da tia Tomásia; uma mercearia, senhor Joaquim “boas noites”, atualmente o proprietário é o Rui Pedro; duas tabernas, a do senhor João “arrebotes” e a da senhora Maria “viúva”.  
Para termos uma ideia da população residente, no ano de 1950, segundo os censos, residiam na freguesia 4.185 habitantes. A partir desse ano, a curva inverteu-se de tal maneira que, no último censo de 2011, os moradores em toda a freguesia eram 1.259 almas. Em 61 anos a freguesia perdeu 2.926 habitantes.
Se dividirmos este número por 61 anos, faleceram ou demandaram outras paragens 48 pessoas por ano. A manter-se esta tendência, daqui por vinte e seis anos não mora ninguém na freguesia. “O diabo seja cego, surdo e mudo”.
Se não existirem leis que estanquem esta hemorragia e invertam este estado de coisas, o interior transformar-se-á num enorme deserto e teremos outra vez de volta os senhores “condes”.
Deus permita que nunca aconteça uma coisa dessas, para que as nossas aldeias e vilas não desapareçam do mapa. Oxalá!
Não vou dar continuidade a este pensamento, porque não era nem é o cerne do meu escrito, foi somente uma bucha que meti no texto.
Assim, a estrada nova que hoje faz parte do perímetro urbano da vila, naqueles tempos ficava nos arrabaldes; existia somente uma casa junto à paragem das camionetas e que há muitos anos pertence à família do senhor João Ventura.
Naquela época a malta ia para a paragem esperar a camioneta da carreira da Auto Transportes do Fundão. Lourenço era o motorista, a carreira chegava às cinco horas da tarde à vila. Este autocarro todos os dias partia do Fundão, passava cerca das sete horas da manhã na vila e terminava o seu percurso em Castelo Branco. À tarde saía às quatro horas de Castelo Branco para terminar no Fundão, por volta das seis horas.
À farmácia chegavam pessoas de toda a freguesia, a fim de adquirirem os remédios que o doutor Alves receitava, para a cura dos seus males, alguns medicamentos certamente esgotavam ou havia necessidade de se repor o stock. Todos os dias a carreira trazia uma encomenda.
Um pouco antes das cinco horas, na paragem, começavam a aparecer cachopos na esperança de poderem apanhar o frete e entregá-lo na farmácia. Os mais pequenos raramente conseguiam tal intento, o que valia era o senhor Lourenço de vez em quando dar a encomenda a quem entendia. Só assim alguns de nós conseguíamos entregá-la na farmácia.
À força, aos grandes bastava darem-nos um encontrão e era uma vez o frete da farmácia.
Era assim que chamávamos à encomenda e sabem o porquê de tanta sofreguidão para a conseguir apanhar? O farmacêutico dava dez tostões a quem a entregasse.

J.M.S

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Migrações internas


Aos 19 de março de 1698, casaram Manuel Fernandes Pereira Pisoeiro e Maria Henriques, na Igreja Matriz de S. Vicente da Beira..
Ele de Moselos, freguesia de Campo, concelho de Viseu, e ela de São Miguel de Poiares, concelho de Vila Nova de Poiares (distrito de Coimbra).

Ele seria pisoeiro, a julgar pelo apelido que lhe acrescentaram ao nome. 
Nós tínhamos em São Vicente vários pisões nas margens da ribeira, pois éramos um centro de produção de tecidos com alguma importância. 
De um deles nos ficou o topónimo Chão do Pisão.
O pisão era um engenho em que se pisoavam os tecidos depois da tecelagem, a fim de os lavar e dar aperto às fibras. Também havia pisões que serviam para tingir os tecidos, após a tecelagem. Nos inícios deste século XVII, tínhamos em São Vicente um cristão-novo (descendente de judeus) que era tintureiro.

Há dias, reuni com a pessoa que trabalha numa plataforma genealógica, a quem envio os meus levantamentos de registos de batismos, casamentos e óbitos.
Dizia-me ele que fazer o levantamento da freguesia de São Vicente é fundamental, para estudar a genealogia da região a sul da Gardunha, pois foi via São Vicente que chegaram a esta zona muitas pessoas originárias do interior-centro entre o rios Zêzere e Douro (concelhos interiores dos bispados de Coimbra e Viseu), com destaque para os concelhos de Arganil, Góis, Oliveira do Hospital...
Parece que é uma região muito bonita e todos lá temos as nossas raízes. Temos de lá ir um dia destes!
Para melhor perceberem o que acima escrevi, deixo um exemplo:
Acabei ontem o levantamento dos registos de casamento de 1702. 
Foi um ano muito fértil (26 enlaces), em comparação com os anos anteriores (1700 - 4; 1701 - 8).
Dos 52 noivos, 32 eram originários da nossa freguesia (62%), 13 noivos vieram da região a que atrás me referi (25%) e 7 (13%) de outras terras (da Covilhã e Penamacor, passando por Vila Velha de Ródão, até Aldeia do Mato (Abrantes)).
Estranhamente, nenhum noivo veio das freguesias de Sobral de Campo, Almaceda, Castelejo e Souto da Casa. Por duas razões: por mero acaso e porque o casamento com estes nossos vizinhos iria ganhando importância com o desenrolar do século XVIII e sobretudo no século XIX.
As migrações para São Vicente da Beira já foram estudadas pela nossa Maria João Guardado Moreira e a sua amiga Helena Diogo, no estudo Migrações Internas para S. Vicente da Beira no século XVIII, publicado nas Comunicações das I Jornadas de História Regional do Distrito de Castelo Branco, obra que se encontra esgotada.
José Teodoro Prata

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Coronel e Zé Canhoto

Reconquista, 19 de janeiro de 2017

José Teodoro Prata

domingo, 29 de janeiro de 2017

Conversas na Vila

Era mais uma manhã escura de janeiro. Na vila, fazia frio e chovia. Corria um daqueles invernos habituais, longos e modorrentos com chuva miudinha e persistente. Com a humidade excessiva, os quintais, à ilharga das casas, onde se acumulava o estrume dos animais, que se acomodavam na loja, por baixo ou ao lado das habitações, tinham um cheiro peculiar a decomposição, pouco agradável! O tempo passava lento, com aquele assardaniscar do carujo a ensopar a terra, mas a fazer crescer as águas freáticas e a ribeira, o que era bom!
Mas certo é que, com o tempo que fazia, a vida nas fazendas era muito agreste. Mesmo assim, todos se levantavam logo pela manhã cedo, ainda ao lusco-fusco.
A mulher punha o almoço em cima da mesa da cozinha. Comiam as migas ou as sopas de leite ou o feijão pequeno e, ala que se faz tarde! Com o almoço na barriga, os homens lá iam, casaco pelas costas, para se protegerem da humidade e do ar frio da manhã, dar o almoço aos vivos, que já faziam a chinfrineira matinal com a fome. A burra zurrava assim que ouvia a voz do dono e os porcos cuí, cuí, pediam também o almoço! A manhã avançava e andavam por ali, entretidos, a dar as forragens secas ao gado, guardadas desde o último verão. Ração de feno para ovelhas e cabras. Palha triga e caneirões de milho para os animais de carga e de tiro.
— Raio de tempo este que não deixa fazer nada nas fazendas! — disse Bernardo Garrancho, de si para si, arreliado com a invernia que tudo trazia enchapuçado!  — As fazendas querem ver o dono todos os dias! E ninguém as trata melhor! Por isso, lá diziam os antigos, “Quando o dono morre, as fazendas vão com ele!”
Por vezes passava ali pela porta da loja um vizinho ou mesmo um conviva habitual dos domingos à tarde, na taberna:
— Bons dias nos dê Deus!
— Tu por aqui, Tonho?! Tu que moras da praça baixo, aqui no cimo de vila a esta hora?! Anda por aí passarinho novo!
O seu nome era António Dias, mas os amigos chamavam-lhe Tonho Racha! A alcunha vinha-lhe de repetir muitas vezes na roda de conversadores, na praça ou na taberna, sobretudo quando já estava com um copito: “Se for preciso, racha-se já um diabo!” Apanharam-lhe o ponto! Mas lidava bem com a alcunha que, afinal, não lhe arrancava nenhum bocado! À provocação de Garrancho respondeu:
— Ná! Não quero, nem tenho idade para isso! A minha mulher tem feito vir muitos ao mundo porque … é a parteira da terra!
— Bem sei! E que tem isso?!
— Tem que, para alvoroço de crianças, já basta as que tenho, que são minhas e dela e as dos outros que ela vai ajudando a nascer! 
— Então e depois?!
— Depois, é que vim só a dizer ali ao João Jarêto para falar com o patrão a ver se me pode ir lá dar uma jeira daqui a um mês ou dois, à entrada da primavera. Tenho a fazenda do Vale de Caria com o mato a querer avançar para um leirão que este ano quero semear de batata. Aquilo tem que ser atalhado quanto antes. Senão, os vizinhos vá de me censurarem a dizer que ali não entra ferro de enxada nem charrua! E, como bem sabes, a semente quer mudar de terra de vez em quando, senão deixa de luzir! Olha lá, ou!... Mas, que andas tu a fazer, Bernardo?!
— O que hei de andar a fazer, Tonho? — respondeu Bernardo Garrancho. — Com o tempo como tem ido, ando aqui a dar de comer à burra e aos bácoros, porque as cabras, essas, estão sempre na serra. O meu neto, que pode bem melhor que eu, ainda hoje tem que dar lá um salto para lhes dar a ração, apesar do tempo que faz! Tenho lá ainda as galinhas e os coelhos que também estão sempre a reclamar a sua parte. Na semana passada a raposa fez-me lá estragos! Escavou um buraco por baixo da parede de madeira e rede do galinheiro, conseguiu entrar e matou-me meia dúzia de galinhas, o estupor! Aquilo deve ter sido um desassossego! Mas quê?! Se é no verão, estamos a dormir lá ao lado, em casa, e podemos acudir logo que haja alarido nos animais. De inverno vimos a dormir para a vila e é o que se vê! Já viste como vai este ano que ainda há dias começou?! Um alagoeiro que alto lá com ele! Nada se pode fazer que as terras não estão capazes!
— Deixá-lo — retorquiu Tonho Racha. — Uma temporada assim é boa para as couves negras e, sobretudo, para as nascentes. Sem elas como é que, no verão, regamos as batatas, os tomates e as alfaces?! Sofremos esta inclemência, se é que podemos assim chamar-lhe, mas a partir da primavera, vamos gozar o que agora estamos a amargar! E lá diz o ditado: “Quem manda, pode”!
S. Pedro, que era quem podia, não estava a colaborar. Aquela invernia ensopava tudo!
— Mas — acrescentou Tonho Racha — volúvel, é a oração do crente! Agora quer chuva, logo quer sol e calor! Por isso é que o santo decide como lhe apraz, sem atender aos rogos dos homens!
O resultado ver-se-ia na primavera, com a natureza a rebentar, prenhe vida.
O “casarão”, assim designado pela família, era a loja térrea dos animais em casa de Garrancho, onde os dois amigos se encontravam em amena conversa. Espaço em parte coberto pela “casa velha”, também assim apodada pela família e, em parte, a céu aberto. Tinha um portão largo que dava diretamente para a rua, por onde entravam as carradas de mato e carqueja, mas também o feno, a palha e os caneirões para o gado, no inverno. E de onde saía o estrume para todas as fazendas que ele cultivava.    
— Mas, ó Tonho — disse Bernardo Garrancho — tenho aqui um barril de tinto na loja. Está ali a ouvir a conversa! Vai um copinho? Olha que é de boa vontade!
Tonho Racha era um grande apreciador de aguardente, a sua bebida preferida pela manhã cedo, logo que se levantava! Depois, durante o dia, passava tanto para o vinho tinto como para o branco! Dizia que nunca fora homem com preferência por qualquer cor! E nunca recusava um copo à porta de uma adega, desde que fosse cheio de uma bebida da família da uva fermentada.
— Se vai?! Homessa! Ó Bernardo, isso nem se pergunta! Um homem, para ser um bom cristão, nunca deve recusar um copo de vinho! É como se fosse uma obrigação e até um preceito da nossa religião! Na adega, como na missa, há de beber-se sempre vinho! — riram!
Bernardo Garrancho estendeu-lhe o copo de meio quartilho que Tonho levou à boca e bebeu sem descansar.
— Aaah! — fez de satisfação!
A seguir a um copo foi outro, que Garrancho gostava de tratar bem os amigos! E Tonho Racha não se fez rogado.
— Já fui a muitas adegas cá na vila a provar o deste ano — disse — e olha que este é um dos mais bem apaladados! — concordaram os dois!
— Espera! — disse Garrancho — tens ainda que beber mais um. Vou ali à salgadeira buscar um bocado de presunto para acompanhar.
Veio um pedaço de presunto. Febra bem curada de sal, com uma tira de gordura entremeada para não saber a seco! Mas Bernardo foi ainda buscar um bom naco de queijo de cabra curado que a mulher era hábil em fazer e metade de um casqueiro!
— Mau, ó Bernardo, não me estejas já a arranjar o jantar! Olha que ainda é muito cedo! Ainda agora é de manhã!
— Nada disso. Hoje já comeste o almoço?
— Bebi só um copo de aguardente com passas de figo.
— Ora então aí tens! Isto é apenas uma bucha para aconchegar. Toca a comer e a beber!
Depois, aproveitaram para conversar sobre a agricultura e as sementeiras. Como é que ia o tempo, como é que não ia. Se andava bom para as colheitas, se não andava. E mal se descuidaram estava a chegar a hora do jantar. Despediram-se com mais um copo para a sossega!
Não fossem os afazeres com os animais nas lojas e os amigos para o palratório e estes homens andariam ali por casa a rebolar, sem nada produzir, como que a morrinhar ou sentados à lareira. Quando assim era, uma dormência tolhia-lhes o corpo habituado que estava à exercitação diária do trabalho. As pernas entorpeciam. Depois, levantavam-se e iam ao janelo da cozinha, encostavam-se à vidraça a olhar o horizonte. Lá fora, via-se a invernia muito agarrada que acaçapava todo o vale onde se situa a vila, ao fundo da encosta da Gardunha. E depois punham-se, absortos, a ver cair a água dos beirais, mesmo ali nas casas defronte. O regato à roda das parede de ambos os lados da calçada lá ia, rua abaixo, com pouco mais que uma chisca. Com as trovoadas e aguaceiros é que a valeta, pouco profunda, não podia conter o caudal que extravasava para a calçada.
Mas muitas vezes os homens, nestas manhãs molhadas, também iam para a taberna fazer sociedade. Bebiam, riam em voz alta, jogavam as cartas, ao tanguinho ou ao burro. Falavam dos negócios do gado, da vida agrícola e contavam passagens para matar o tempo. E assim passavam a maior parte destes invernos feios e mortiços, sem nada poder fazer!
Inverno rima com inferno!
Seria isto uma grande verdade, não fosse certo que a água é um bem precioso que não podemos dispensar e que torna a natureza úbere!
Eram estes homens, prisioneiros da sua própria condição, que vinham às portas das lojas, das casas ou das tabernas. Olhavam, impotentes, o cinzento carregado do firmamento, enquanto a chuva fazia o seu caminho do céu à terra, aspergindo-a vagarosamente como uma canção dolente!

Nota: neste texto foram utilizados termos ou expressões regionais ou locais.  

José Barroso 

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Natal beirão

UM AUTO DE NATAL
Natal Beirão

Da Etnografia da Beira, de Jaime Lopes Dias,
transformado em texto dramático por José Teodoro Prata,
adaptado a São Vicente da Beira por José Manuel dos Santos 
e representado, neste Natal, pelo Rancho Folclórico Vicentino.

O espaço assemelha-se a uma Igreja, com um corredor a meio e o público dos dois lados. No lado oposto à entrada, em local elevado, está um presépio vivo, com as principais figuras (São José, Nossa Senhora e o Menino Jesus) e eventualmente outras figuras tradicionais.
Um padre (ou um leigo com essa tarefa) aparece em local visível por todos e fala:

Padre:
É Natal. Alegremo-nos, nesta noite santa.
Comemoramos o nascimento de Jesus, que é Deus feito Homem.
Com alegria, cantemos todos:

Todos os presentes:

Alegrem-se os céus e a terra
Cantemos com alegria
Que já nasceu o Menino
Filho da Virgem Maria

Entrai pastores entrai
Por esse portal sagrado
Vinde adorar o Menino
Numas palhinhas deitado

Ao fundo da igreja, encontram-se as personagens intervenientes.
Os pastores avançam um passo e cantam:

Ó meu Menino Jesus
Ó meu menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo

Avança o primeiro pastor, dando alguns passos em frente.
Entretanto, surge uma estrela que guia o pastor até ao altar. Esta deve estar sincronizada com os movimentos e paragens que os pastores vão fazendo até chegarem ao presépio.
Primeiro Pastor:

Vi uma estrela brilhante
E anjos a cantar
Levantei-me, comecei a andar
Até este local distante

Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino adorado
Aqui tendes a visita
Dos pobres pastores de gado

O primeiro pastor avança mais um pouco pela coxia e continua a declamar:
                                                                                                                                                                    
Ó estrela luminosa
Meus passos alumia
Que eu venho visitar
O filho da Virgem Maria

Perto da capela-mor:

Ó meu Menino Jesus
Estou muito admirado
De Vos ver com tanto frio
Nessas palhinhas deitado

Chega ao presépio, volta-se para o Menino dizendo:

A oferta que Vos trago
É simples e de pouco valor
É apenas um cordeiro
Dos que guarda o pastor

Ajoelha, beija o Menino e continua a declamar:

Também trago uma merenda
Das que me dá o patrão
Ó meu Menino Jesus
Tende de nós compaixão

A estrela inicia o caminho de regresso e o pastor despede-se dizendo:

Adeus Menino Jesus
As costas Vos vou virar
Adeus, até para o ano
Se eu cá puder voltar

Desce a coxia e junta-se aos outros pastores. Cantam todos:

Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo

Um segundo pastor entra em cena:

Junto ao gado eu dormitava
Quando ouvi anjos a cantar
Glória, paz na Terra, toca a levantar
Vamos adorar o Menino                                                                                                                                                                     

Não há vida mais triste
Do que a vida de pastor
De inverno apanha frio
De verão muito calor

Avança e no meio da igreja e continua a declamar:

Eu vos peço meu Menino
Do fundo do coração
Que me livreis de guardar gado
E que eu venha a ser patrão

Em frente ao presépio:

Trago-Vos umas castanhas
Que tinha enterradas no chão
Não as roubei a ninguém
São das que me deu o patrão

Finda a atuação do segundo pastor, o padre faz sinal à estrela para sair pela lateral e ela avança. O público zomba, rindo, mas o segundo pastor diz:

Entrei pela porta principal
Por ela quero sair
De nada me importa
Que esta gente se esteja a rir

De frente para o presépio, despede-se:

Cá voltarei para o ano
Se ainda for pastor
A visitar-Vos Deus Menino
Que Vos tenho muito amor

Desce a coxia e junta-se aos outros e todos juntos cantam:

Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo

Um terceiro pastor avança, levando um cabrito e um sarrão.
O cabrito berra e o pastor tenta acalma-lo; como não consegue, pede ajuda ao padre:

Ó senhor padre Manuel
Mande-me cá o sacristão
Que se não quer calar
Este grande berrão
                                                                                                                          
Entretanto, cala-se o cabrito e o terceiro pastor volta-se para as pessoas e diz:

Cá vem o pobre pastor
Que sempre usa seu cajado
Seu ofício, toda a vida
É andar a guardar gado

Chego a casa, enfadado
De andar lá pelo monte
Ainda a patroa me diz
Ó criaaado, vai à fonte

Em frente ao presépio:

Vem qui comigo
Um cabrito a saltar
Cá Vos o deixo meu Menino
Aos pés do Vosso altar

Entretanto, uma pessoa da assistência comenta:

Fraquinho! Muito fraquinho…

O público ri, mas o terceiro pastor não se mostra muito incomodado com a crítica e responde:

Ó meu Menino Jesus
Bem me podeis perdoar
Isto de fazer versos
É para quem os sabe quadrar

O público retoma a risada e o pastor com voz cava vai desabafando:

Ó meu Menino Jesus
Esta gente está-se a rir
Eu já nem vejo a porta
Por onde hei-de sair


A estrela começa a regressar e o terceiro pastor despede-se:

Ó meu Menino Jesus
Não me posso demorar
Pró ano se tiver saúde
Cá tornarei a voltar
                                                                                                                                                                
Regressa para junto dos outros e todos cantam:

Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo

Um quarto pastor avança e, voltando-se para o público, diz:

Esta noite de Natal
É noite de alegria
Vimos adorar o Menino
Filho da Virgem Maria

Vai subindo e no meio da coxia:

É meu Menino Jesus
É meu Deus verdadeiro
Foram-se-me os lobos ao gado
Levaram-me um cordeiro

Junto ao presépio:

Ó meu Menino Jesus
Eu vivo numas montanhas
Pouco mais tenho para vos dar
Do que umas tristes castanhas

Adeus, meu Menino Jesus
Filho da Virgem Maria
Se eu chegar a ser patrão
Até choro de alegria

Volta-se para o público:

Esta vida de pastor
É custosa de levar
Se não tira o gado a horas
O patrão começa a ralhar

Desce e todos cantam novamente:

Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo
                                                                                                                                                                   
O quinto pastor avança e começa a função dizendo:

Se algum ponto errar
Ninguém se deve rir
A porta do errar é larga
Todos lá podem cair

No meio da coxia, volta-se para o público:

Esta estrela luminosa
Por onde passa, alumia
Ela me vai ensinar
O filho da Virgem Maria

No presépio, beija o Menino e diz:

Aqui trago, Menino Jesus
Dentro do meu sarrão
Uma garrafa de Vinho
Que me deu o patrão

Faz menção para se retirar, mas volta-se novamente para o Menino:

Ó meu Menino Jesus
Já me ia a esquecer
Ainda cá tenho uma chouriça
Que é para vos oferecer

Regressa e cantam todos:

Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo

Padre:
Há mais alguém que tenha prendas para oferecer ao Menino?

Sobe um ganhão e diz:
Eu também quero adorar o Menino

Depois, junto ao presépio:

Eu Vos ofereço esta garrafinha
De vinho moscatel
Bem sei que não é para Vós
Mas para o senhor padre José Manuel
                                                                                                                                                                      
Uma camponesa sobre também e declama:

Eu deixo este agasalhinho
Para Vos aquecer
Fi-lo para Vo-lo oferecer
É de lã e bem quentinho

Uma costureira trazendo roupinhas:

Menino Jesus
Tenho que Vos dar
Pelos Vossos pés
Hei-de começar

O primeiro dado
Hão-de ser sapatos
Hemos de ir à feira
Comprá-los baratos

Já tendes sapatos
Precisais de meiinhas
Eu Vo-las farei
De linhas bem finas

Já tendes camisa
Precisais jaleque
Eu Vo-lo darei
De pano de crepe

Menino Jesus
Que mais Vos hei de dar!
Uma rica cama
Para Vos deitar

Uma padeira, com açafate na mão, sobe a coxia e declama:

Eu sou a padeira
Trago pães bem fresquinhos
Ouçam meus queridinhos
Quero ser a primeira

A adorar o Salvador…
Tão bonito que Ele é
Filho de Maria e José
Lindo, lindo, um amor

                                                                                                                                                                
Atrás vem uma lavadeira:

Eu sou a lavadeira
Seus cueiros quero lavar
Hei-de pô-los a corar
Na nossa ribeira

Avança a leiteira e diz:

Eu venho dar ao Divino
Um queijinho amanteigado
Há muito o tinha guardado
Para o oferecer ao Menino

No meio das pessoas surge uma voz:

Estou muito contente
Hoje nasceu o Salvador
Nosso rei e Senhor
Protege São Vicente

Ampara, guarda, dá saúde à nossa gente
Pereiros, Partida, Casal da Serra ou Mourelo
Vale de Figueira, Paradanta, Tripeiro ou Violeiro
Menino Jesus, é povo de São Vicente

Todos as personagens recitam:

Bendito e louvado seja
O Menino Jesus nascido
No ventre da Virgem Maria
Nove meses andou escondido

A assistência, com uma flor ou um raminho de oliveira na mão, intromete-se dizendo:

Pai-nosso vimos pedir
Paz, alegria, misericórdia e amor
Aceita Menino esta flor
Já é tarde, vamos dormir


Ó meu Menino Jesus
Dorme um soninho descansado
Muito obrigado
 Por este serão de truz                                             
                                                                                                                                                                        
O padre o termina o auto:

A todos os presentes
Tenham uma noite descansada
Apesar de estar gelada
Espero que estejam contentes

O Menino está dormindo
Nos braços da Virgem pura
Os anjos Lhe estão cantando
Meu amor, minha doçura!

As personagens, no fundo da igreja, cantam:

O Menino está dormindo
Nos braços da Virgem pura
Os anjos Lhe estão cantando
Meu amor, minha doçura!

Todos batem palmas e, enquanto vão saindo, cantam:

Ó meu Menino Jesus
Ó meu Menino tão belo
Logo vieste nascer
Na noite do caramelo

Fim

José Teodoro Prata