sábado, 3 de abril de 2010

Procissão do Enterro


Passo em frente ao antigo Convento das Religiosas Franciscanas.

Passei a tarde e a noite de Sexta-Feira Santa, na nossa terra.
Ao sair de casa para a Procissão do Enterro, fui surpreendido pela escuridão das ruas. Com a iluminação pública desligada, voltou a magia dos nossos tempos de criança. Mas não é só isso. A escuridão liberta-nos de distracções e ajuda a encontrarmo-nos com nós próprios.
Depois, as duas longas filas de luzinhas, a bater metálico da matraca, o choroso toque da Banda e o canto da Verónica. Cada vez que o caixão do Senhor de aproximava de um Passo, todos paravam, para a ouvirem.
E na Rua da Costa, a que tira o fôlego à Banda, cantámos o Senhor Deus:

"Senhor Deus, Misericórdia!
Virgem mãe de Deus e mãe nossa
Alcançai o vosso amado filho, Misericórdia!"

É bonito de ver e viver!
Este ano, foi fácil reencontrar amigos, pois veio muita gente passar a Páscoa a S. Vicente da Beira.


Contaram-me uma história que não resisto em partilhar convosco, até para lutar contra o empobrecimento progressivo da Língua Portuguesa, em nome do politicamente correcto.
Em 1932, e apenas nesse ano, o pároco de S. Vicente da Beira foi o Padre Virgílio Alberto Cordeiro. O costume era contratar um ou dois padres para ajudar na Semana Santa. A Vila sempre teve muitos padres. No século XVIII, viviam aqui cerca de seis padres e a Câmara pagava, anualmente, a um pregador, quase sempre o capelão das Religiosas do Convento, para fazer os sermões da Semana Santa.
Ora, em 1932, o P.e Virgílio Alberto Cordeiro fez tudo sozinho: confessou os paroquianos, numa época em que toda a gente se confessava e comungava, disse as missas, fez os sermões, acompanhou as procissões do Ecce Homo, dos Passos e do Enterro do Senhor e ainda o esperava a festa da Aleluia, com mais duas missas, uma procissão e a visita a todos os lares da Vila.
Impressionado, o Ti Guilhermino chegou junto dele e disse-lhe:
"O Senhor Padre é um colhudo! Conseguiu fazer a Semana Santa sozinho!"



Capela do solar construído no local do antigo convento franciscano.
Numa terra onde nem sempre se respeita o património, o Doutor Lino continua a ser um exemplo de qualidade e bom gosto.
(Para quem vê apenas estas imagens, pode parecer despropositada esta minha opinião, mas, na realidade, não é.)

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Os Martírios

Cantavam-se no escuro da noite, no tempo em que ainda não havia electricidade. Um grupo de pessoas, homens e mulheres, param nos locais de onde se podem ouvir bem, em toda a povoação, e cantam em coro. No passado, às vezes eram acompanhados por um pífaro.
Habitualmente, os locais são a Fonte Velha, a Praça, a Corredoura, (entroncamento com a Rua do Eiró e/ou com a Rua da Cruz), o cruzamento da Rua Velha com a Rua Nicolau Veloso, a Fonte de Santo António e o Calvário. A escolha dos locais depende do gosto dos cantores, mas o Calvário é fixo, pois ali terminam os Martírios, à meia noite. Em cada paragem, entoam-se três ou quatro estrofes.


Corredoura, no entroncamento com a Rua do Eiró. Era aqui que, nos anos 70, começávamos a cantar os Martírios. Subíamos as escadas e cantávamos de frente para a povoação. Acompanhavam-me o Ernesto Hipólito (o maestro), o Francisco Barroso, o Joaquim Trindade, o João Maria e outros.

Bendito e louvado seja
A Paixão do Redentor
P´ra nos livrar das culpas
Que morreu pelo nosso amor

Sofreu tão grandes tormentos
Duros martírios na cruz
P´ra nos livrar das culpas
Morreu por nós ó Jesus

Vossos divinos cabelos
Em sangue foram ensopados
Sangue que foi remido
Pelos nossos feios pecados

Vossos divinos cabelos
São mais finos que o próprio ouro
De onde ele tem a raiz
Tem a minha alma o tesouro

Vosso divino nome
É Jesus de Nazaré
Quero viver e morrer
Pela Vossa santa fé

Vossa santa cabeça
Coroa de espinhos cravados
Por grandes dores incríveis
Fontes de sangue derramaram

Vossos divinos olhos
Sofreram lágrimas internas
P´ra livrar as nossas almas
Do fogo e penas eternas

Vosso divino nariz
É um lindo diamante
É o cravo mais bonito
Que se cria no mirante

Vossa divina boca
Vinagre e fel amargoso provou
Poupando as nossas almas
Do castigo eterno horroroso

Vossas divinas faces
Sofreram mil bofetadas
Por duros ferros algares
Escarnecidas pisadas

Vossos sagrados ouvidos
Estão ouvindo os meus pecados
E lá, no dia do Juízo
Eles serão perdoados

O vosso puríssimo rosto
Cheio de escarros nojentos
Por nossos duros pecados
Senhor de tantos tormentos

O vosso divino pescoço
Grossas cordas o ligaram
De rua em rua com ele
Como réus o arrastaram

Vossos divinos ombros
Pesada cruz conduziu
De rua em rua com ele
Ainda mais chagas se abriram

As vossas mãos puras divinas
Pregadas nesse madeiro
Nele ficaste pendente
Bom Jesus verdadeiro

Os vossos divinos pés
Foram com ferros ofendidos
Mas foi rasgada a sentença
Contra milhões de perdidos

O vosso divino peito
Foi cruelmente rasgado
Todos nos dizem quanto horrendo
Quanto medonho é o pecado

Vossa sagrada cruz
É de pau de oliveira
É a rosa mais bonita
Que se cria na roseira

Quem me dera estar na fonte
Quando o Senhor pediu água
Eu lhe dera de beber
Dava-lhe bem a minha alma

Ó almas que tendes sede
Vinde ao Calvário beber
O Senhor tem cinco fontes
Todas cinco a correr

Ó almas que estais dormindo
Nesse sono tão profundo
Rezemos um Padre Nosso
Pelas almas do outro mundo

Estas duas últimas cantam-se no Calvário, onde terminam os Martírios.
É curioso que os momentos altos da religiosidade, em S. Vicente da Beira, sejam o Natal, a Páscoa e o Santo Cristo, nas festas de Verão. No primeiro, comemora-se o nascimento de Jesus e nos outros dois sofremos com a sua morte, para depois nos alegrarmos com a ressurreição. É Deus na sua humanidade que nós melhor entendemos, porque mais se parece connosco.

Recolha de Maria Isabel dos Santos Teodoro, trabalho manuscrito, Escola Secundária de Alcains, 1985

sábado, 27 de março de 2010

Domingo de Ramos



...e chegando o tempo da Páscoa, Jesus dirigiu-se a Jerusalém com os seus discípulos. As muitas pessoas que já ali se encontrava receberam-no em festa, com cânticos e ramos de oliveira e palmeira. Mal sabiam todos, Ele já saberia, que dias depois o iriam sacrificar, como mais um cordeiro, no holocausto da festa pascal.
Anos mais tarde, os seus seguidores, chamados cristãos, começaram a celebrar os acontecimentos que tiveram lugar em Jerusalém, por aqueles dias.
E assim nasceram as festividades pascais, do Domingo de Ramos às Boas Festas da Aleluia.
Em S. Vicente da Beira, nos anos 60 do século passado, recordava-se a chegada de Jesus à cidada santa, com ramos de loureiro, enfeitados de flores. Será dos encantos de criança, mas tenho na lembrança alguns ramos que eram verdadeiras obras de arte.
Pegava-se num simples ramos de loureiro, grande ou pequeno, e enchiam-se os espaços vazios com toda a espécie de flores que já tivessem desabrochado.
Recordo-me de um Domingo de Ramos com o Padre Branco, recém-chegado a S. Vicente. Vindo de Lisboa, impregnado pelo espírito renovador do Concílio Vaticano II, ele introduzira a moda de as crianças ficarem todas à frente, entre o altar e os primeiros bancos.
Havia muitas crianças e as pessoas mal viam o altar, tantos eram os ramos de loureiro erguidos ao alto. Mas, dos lados, a situação era preocupante, pois alguns ramos ameaçavam a integridade dos altares laterais.
O P.e Branco, preocupado com o excessivo entusiasmo do seu rebanho, interrompeu a missa e chamou ao altar um miúdo com um ramo mais pequeno. Pegou no ramo e mostrou-o a todos. Era aquele o tamanho ideal, nem muito grande, nem excessivamente pequeno.
Era o meu, decorado com as mais lindas flores que havia na Tapada ou que a minha mãe pedira a outra mulheres.
Não fora a estética que ditara o tamanho do meu ramo. Ele era do tamanho possível, considerando os ramos que a Senhora Maria José Afonsa dera à minha mãe e depois a divisão que deles se fez pelos seus filhos.
Quanto às flores, que me perdoem os rapazes da minha geração, mas a minha avó Doroteia obteve do Padre Tomás, em Confissão, o perdão antecipado dos pecados, por todas as flores que roubasse.
Mas não nos desviemos dos ramos de loureiro, em Domingo de Ramos. Finda a missa, família que tinha muitos ramos dividia por quem não tivesse nenhum. E todos eram levados para casa e colocados na cantareira, para abençoar o lar e temperar os manjares do ano inteiro.


Andámos nós a maldizer do tempo frio e chuvoso, excessivamente frio e chuvoso, e a natureza deu-nos mais uma lição: chegámos ao Domingo de Ramos e o loureiro floriu, nem antes, nem depois. Afinal, a Primavera chegou na data certa!

sexta-feira, 26 de março de 2010

Os Piscos


A Associação de Caça e Pesca "O Pisco", sediada em parte do edifício da antiga Escola Primária, à Estrada Nova, vem revelando um grande dinamismo.
Já conta cerca de 80 sócios, da freguesia, da região e até de Leiria.
Realizou duas batidas aos javalis, bem comidas e bebidas, como se pode ver abaixo.
Também se mostram imagens de caçadas mais antigas. E não falta a pesca, na Barragem do Pisco.


O Domingos Jareto, grande pescador de carpas.


Sede da Associação: javalis da penúltima batida.


A comer assim, ninguém lhes pode chamar piscos! Mas o cansaço e a fome seriam grandes, depois de horas a correr atrás da bicharada. O retempero das forças foi na sede da Associação


Pelas caras, a caçada data de há cerca de 15 anos, por volta de 1995.


Outro momento, outro fotógrafo, o mesmo grupo.


O Senhor Manuel da Silva, trajado a preceito. Desconhecemos o acompanhante e o lugar. A foto foi dada ao Pedro Gama Inácio, por um caçador de Leiria.

Nota: Todas as fotos são do Pedro Gama Inácio.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Mudar as camas do ganal

O mato era para a furda do porco, a corte da cabra, os galinheiros e para a estrumeira. Uma vez por mês, tínhamos de se fazer camas novas. Também deitávamos mato em toda a frente da casa, para não irmos com os pés sujos para dentro. Depois, na altura de pôr as couves, no Verão, davam jeito mais umas carradas de estrume, pois o da furda já se gastara com as batatas.
Uma das minhas primeiras recordações é os filhos da Patrícia, barreira abaixo, com os molhos às costas, a meterem-nos medo e a correrem atrás de nós, de mim e dos meus primos, quando estávamos a brincar no rego da água.
Na véspera da minha entrada no Seminário, o Ti Jaquim Candeias ia a passar na quelha, atrás da casa Tapada, viu um molho de caruma com pernas e disse a rir para a minha mãe: "Olha um molho a andar!" Era eu, metido dentro do molho que se estava a escarapunsar. Tinha de deixar as camas feitas aos animais da casa, antes da partida.
Gostava de ir ao mato branco que havia no alto da barreira. Era o mais macio. Como o caminho era só a descer, às vezes exagerava e depois não conseguia ajudar-me ao molho. Içá-lo para as costas era impossível. Sentava-me ao lado dele e puxava-o para mim, mas às vezes caía-me outra vez, quando tentava levantar-me.
Nas situações de desespero, tinha uma solução praticamente infalível: deitava-me no chão ao comprido, de barriga para baixo e puxava o molho para cima de mim. Então rezava um Padre Nosso, se estivesse muito cansado, ou uma Avé Maria, no caso de ainda ter algumas forças. Depois começava. Primeiro levantava-me ligeiramente, apoiado nos cotovelos, e depois erguia o tronco e descansava, ajoelhado e com as mãos na corda do molho. A seguir erguia uma perna e depois a outra, com muito cuidado, pois era o momento crítico. Por fim, o arranque para cima.
Descia a barreira e estava em casa. Atirava com o molho ao chão e descansava. Sorte era quando ia ao mato com o meu pai. À chegada, ele pedia à minha mãe para nos fazer um gró, por causa da fraqueza. Sentados nas escadas do balcão, bebíamos o gró e descansávamos. Depois traçávamos o mato e fazíamos as camas.
O mato mais abundante era a carqueija, mas magoava os animais, sobretudo no tempo seco, quando está mais áspera. A cama nova da furda era nova por poucos minutos. O porco fossava tudo e abria túneis, na sua função de porco e à procura de abrigo das picadelas das moscas. Saía de lá todo riscado de vermelho.
Por isso íamos à carqueija debaixo dos pinheiros, onde era mais macia e mais alta. Os pinheiros eram os da Senhora Maria José Afonsa. Sabíamos que lá não podíamos cortar, pois, uma vez por ano, em Setembro, ela vinha com um carro de bois e pessoal, a buscar mato para o quintal, por detrás da sua casa no Cimo de Vila. Quem lhe guardava o mato era o Ti Miguel da Ti Laurentina que tinha a horta em frente, do outro lado do barroco. Mas ele morava no Casal do Baraçal e por isso bastava pormo-nos à escuta de sons de cabras ou chamamentos de gente.
Um dia, ele surpreendeu-nos, a mim e aos meus primos. Aproximou-se silencioso, podão na mão e casaco pendurado num só ombro, como o trazia sempre. Dera a volta ao barroco, por cima. Disse-nos o que já sabíamos e ofereceu-nos o seu mato, junto ao Cabeço do Pisco, sempre que precisássemos. Mas deixou-nos levar os molhos, porque era um homem bom.

Notas:
1. Ganal deriva de gado e usávamos esta palavra como nome colectivo a designar o conjunto dos animais domésticos. Dizíamos: "Tratar do ganal", "Dar de comer ao ganal", "Tirar o estrume do ganal", "Fazer as camas do ganal"...
2. A palavra escarapunsar(ou escarapunçar) indicava um molho que se estava a desmanchar. Nunca vi a palavra escrita, nem a encontrei no dicionário.
3. Não sabia a origem da palavra gró, até que um dia, num filme, vi a referência a uma bebida feita de aguardente, água e açúcar. O nome era semelhante.
E, consultando os livros, descobri que existe, em Portugal, uma bebida alcoólica preparada com aguardente, água, açúcar e casca de limão. É o grogue.
Do grogue ao gró vai a tendência do nosso povo para simplificar tudo.
Já agora, o gró do meu pai era preparado com açúcar amarelo e água fresca da talha que tínhamos na cantareira, sempre cheia de água da mina da Barroca.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Aljubarrota


Na terça-feira, dia 9 de Março, voltei ao campo de São Jorge, local onde foi travada a Batalha de Aljubarrota.
É sempre com uma pontinha de emoção que falo aos meus alunos da participação, nesta batalha, de D. Frei Fernando Rodrigues de Sequeira (1338-1431), filho de Rodrigo Anes de São Vicente da Beira e de Maria Afonso de Castelo Branco.
Era Fernando Rodrigues de Sequeira já adulto, quando el-rei D. Pedro entregou aos freires de Avis o seu filho ilegítimo, D. João. Ainda criança, foi nomeado Mestre da Ordem de Avis, por ser filho de quem era.
Mas precisava de um orientador e o escolhido foi o vicentino Frei Fernando Rodrigues de Sequeira, que se tornou seu aio.
Juntos vão passar as vicissitudes da crise de 1383-83. Defenderam Lisboa, no cerco que D. João I de Castela lhe fez, em 1384, e lado a lado estarão um ano mais tarde, nos campos de Aljubarrota.
Longo e trabalhoso foi aquele 14 de Agosto de 1385, véspera de Nossa Senhora da Assunção. Um sol abrasador e espanhóis em excesso para vencer (6 mil contra 30 mil). Ainda por cima, os castelhanos não gostaram da espera que os portugueses lhes prepararam, a norte, e desviaram-se para sul, obrigando a movimentar todas as tropas e a cavar novos buracos, onde os seus cavalos cairiam.
D. Fernando e os restantes freires de Avis ficaram ao lado do seu Mestre, na retaguarda.
As tropas inimigas romperam a vanguarda de Nuno Álvares Pereira, mas a retaguarda do Mestre de Avis e do filho de Rodrigo Anes aguentou firme, com uma fé inabalável na vitória.
Ao entardecer, os castelhanos estavam em fuga e Portugal reafirmou a sua independência.
Meses antes, o Mestre de Avis fora aclamado rei de Portugal, nas Cortes de Coimbra, com o título de D. João I. No ano seguinte (1386), Frei Fernando Rodrigues de Sequeira foi eleito Mestre de Avis.


Esquema da movimentação e da posição dos dois exércitos, na Batalha de Aljubarrota. No local onde estava a retaguarda portuguesa, ergue-se hoje o Centro de Interpretação da Batalha de Aljubarrota.


Capela de São Jorge, erguida em agradecimento ao santo protector do exército de Portugal, no local onde se situava a vanguarda portuguesa, comandada por Nuno Álvares Pereira. Na janela da esquerda, há sempre uma bilha com água, em memória da sede que ali passaram os portugueses, nesse 14 de Agosto.


Pintura da época, representando a Batalha de Aljubarrota.

sexta-feira, 5 de março de 2010

A fortaleza de Almeida

No princípio, eram os castelos, de madeira ou pedra, sempre altaneiros, a impedir a entrada dos inimigos.
Venciam-se pelo fogo, catapultando para dentro bolas de lume ou ateando as portas. Também pela doença, através do lançamento, para o interior, de cadáveres de vítimas da peste, designação genérica de doenças contagiosas de morte certa. Foi o início da guerra biológica. Por vezes, simplesmente, esperava-se. A fome e a sede levariam os sitiados à rendição. Habitualmente, tomava-se o castelo transpondo as muralhas, com engenhos e escadas.


O castelo do Sabugal: pátio interior, com a torre de menagem ao fundo.

Mas as técnicas militares começaram a mudar. Em 1453, os turcos tomaram Constantinopla (actual Istambul), usando canhões que “vomitavam fogo”, não os trons usados em Aljubarrota (1385), que apenas lançavam pedras esféricas.
Esta nova arma tornou os castelos medievais obsoletos, incapazes de resistir ao fogo cerrado do inimigo. Dois ou três disparos bastavam para abrir uma brecha na muralha e permitir a entrada e a conquista. Ficaram para alimentar o nosso imaginário romântico, de príncipes e princesas.
As fortificações tiveram de se adaptar à nova arma. A primeira, em Portugal, foi a parte inferior da Torre de Belém, de influência italiana. Mas seria a necessidade de defesa face a Espanha, após a Restauração de 1640, que obrigou Portugal a construir uma ampla rede de fortalezas modernas, nas fronteiras terrestres e marítimas.
Em vez das muralhas altas dos castelos, fizeram-se muros grossos e baixos, quase a nível do chão, intervalados por fossos fundos e largos, com canhões apontados para o exterior, em todas as direcções. No subsolo, escavaram-se abrigos, as casamatas.
Assim nasceu a fortaleza de Almeida. O velho castelo lá continuou, mas apenas a servir de paiol da pólvora. Uma estrela de pedra passou a circundar a sentinela da Beira, guardando uma das duas entradas naturais de Espanha em Portugal, com percurso favorável até Lisboa.


Mapa de Portugal, com as duas estradas de ligação de Espanha a Lisboa, seguindo o percursos mais acessíveis: relevo pouco montanhoso e sem linhas de água intransponíveis.
Na entrada por Ciudad Rodrigo-Almeida, o rio Mondego era atravessado na ponte de Coimbra; na entrada Badajoz-Elvas, passava-se o Tejo de barco, junto à foz.
Neste mapa, as fortalezas referidas estão assinaladas com estrelas.




A praça-forte de Almeida: esquema e fotografia aérea.

Almeida merece a nossa visita, pois um dos concelhos que a fornecia de soldados era o de S. Vicente da Beira. Nos séculos XVII, XVIII e XIX, era principalmente para o Regimento de Cavalaria de Almeida que os oficiais das Ordenanças enviavam os nossos soldados, embora também houvesse vicentinos na fortaleza de Elvas, que guardava a outra entrada natural.
Na “Matrícula dos Moradores” de 1779, temos o registo de homens do concelho que pertenciam à força armada do Reino, o exército de primeira linha: Manoel da Gama do Freixial, marido de Izabel Pires, era soldado da praça de Almeida; Joaõ Antunes do Sobral, casado com Maria Agostinha, servia na praça de Elvas.
Indo a Almeida, visitar também Sortelha, para fazer o contraponto com um castelo medieval. Ali bem perto, o Sabugal oferece-nos uma torre de menagem majestosa, restaurantes ou uma praia fluvial para picnicar. No regresso, temos a Sé da Guarda, ampla nave de pedra que nos espera na frieza granítica dos seus muros e pináculos góticos.


O castelo de Sortelha: torre de menagem.


Almeida, "Casa da Amélinha": uma ginjinha de estalo!