sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Publicidade

Em 2009, tive publicidade no blogue, mas não achei piada e mandei tirar.
Agora considerei que valia a pena aproveitar os (magros) ganhos e por isso ela retornou.
Há rendimento sempre que se visita o blogue e sobretudo sempre que se clica na publicidade.
O dinheiro, muito ou pouco, será entregue ao ermitão da Orada, o Zé Duarte. Fica o compromisso.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Para o sol não o queimar

Voltemos a estas duas quadras da apanha da azeitona:

S´o meu amor fosse António
Ai solidão, solidão
Mandavó ingarrafar
Ai, ai, ai, ai, ai
Em garrafinhas de vidro
Ai solidão, solidão
Para o sol não o queimar
Ai, ai, ai, ai, ai

Não me namora teu ouro
Ai solidão, solidão
Nem a tua branquidão
Ai, ai, ai, ai, ai
Só me namora teus olhos
Ai solidão, solidão
Que tão fagueirinhos são
Ai, ai, ai, ai, ai

São bem antigas!
O ideal de beleza era a pele branca, o mais possível. As senhoras até usavam sombrinhas para não se bronzearem. Depois, cerca de 1930, a Coco Chanel, que então começava a ditar a moda, deixou-se dormir estendiada ao sol, numa praia (uma hábito novo, nesse tempo) e acordou bronzeada. E todos correram para as praias, para ficarem como ela. Até hoje.
Mas voltemos ao antes. Para as gentes do campo (mais de 90% da população das nossas aldeias) ter a pele branquinha era uma impossiblidade, privilégio das famílias dos grandes lavradores que não faziam trabalho ao sol. Por ser rara, diferente, era sinónimo de beleza e por isso desejada.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Os amores da azeitona...

Eram sobretudo canções de amor, estas da campanha da azeitona:

(Uma voz) Os amores da azeitona
(Coro) Ai solidão, solidão
(Uma voz) São como os da cotovia
(Coro) Ai, ai, ai, ai, ai
(Uma voz) Acabada a azeitona
(Coro) Ai solidão, solidão
(Uma voz) Vai-te com Deus ó Maria
(Coro) Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão - Coro)
Vai de lá ó Maria
Tudo é um bem querer
Está um ar amoroso
Não te posso ir a ver


S´o meu amor fosse António
Ai solidão, solidão
Mandavó ingarrafar
Ai, ai, ai, ai, ai
Em garrafinhas de vidro
Ai solidão, solidão
Para o sol não o queimar
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

O meu amor não me fala
Ai solidão, solidão
Tudo é que lhe fale eu
Ai, ai, ai, ai, ai
S´ele se leva no seu brio
Ai solidão, solidão
Também eu me levo no meu
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Meu amor se fores à missa
Ai solidão, solidão
Fica em sítio que te veja
Ai, ai, ai, ai, ai
Não faças andar meus olhos
Ai solidão, solidão
Em leilão pela Igreja
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Cantigas ao desafio
Ai solidão, solidão
Comigo ninguém mas cante
Ai, ai, ai, ai, ai
Eu tenho quem mas ensine
Ai solidão, solidão
Meu amor é estudante
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Sei um saco de cantigas
Ai solidão, solidão
Ainda mais um guardanapo
Ai, ai, ai, ai, ai
Se me fazes atentar
Ai solidão, solidão
Eu vou desatar o saco
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Não me namora teu ouro
Ai solidão, solidão
Nem a tua branquidão
Ai, ai, ai, ai, ai
Só me namora teus olhos
Ai solidão, solidão
Que tão fagueirinhos são
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Os olhos do meu amor
Ai solidão, solidão
São duas azeitoninhas pretas
Ai, ai, ai, ai, ai
Eles foram escolhidos
Ai solidão, solidão
No jardim das violetas
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Da janela do meu quarto
Ai solidão, solidão
Vejo a cama do meu sogro
Ai, ai, ai, ai, ai
Vejo o sogro, lembra-me o filho
Ai solidão, solidão
Pelo filho é qu´eu morro
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Da minha janela à tua
Ai solidão, solidão
É um salto duma cobra
Ai, ai, ai, ai, ai
Quem me dera já chamar
Ai solidão, solidão
À tua mãe minha sogra
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

A oliveira da serra
Ai solidão, solidão
Que azeitona pode dar
Ai, ai, ai, ai, ai
Dará uma, dará duas
Ai solidão, solidão
Dará três se carregar
Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)

Se a oliveira a falasse
Ai solidão, solidão
Ela diria o que viu
Ai, ai, ai, ai, ai
Debaixo da sua rama
Ai solidão, solidão
Dois amantes encobriu
Ai, ai, ai, ai, ai

(…)

Além das lembradas pelos meus pais (António Teodoro e Maria da Luz), registadas pela minha irmã Isabel dos Santos Teodoro, incluí ainda as que o Ernesto Hipólito enviou para a publicação anterior.

domingo, 27 de novembro de 2011

Se a oliveira falasse…

Por volta de 1940, as terras de S. Vicente da Beira pertenciam, em grande parte, a três casas agrícolas: Casa Conde, Casa Cunha e Visconde de Tinalhas. Na altura da azeitona, contratavam camaradas para a colheita. Uma camarada era um grupo de homens e mulheres, dois homens por cada mulher, que colhia a azeitona para um médio ou grande agricultor, a troco de um décimo da produção: de cada dez alqueires de azeite, um alqueire (13,5 litros) era da camarada. No final da campanha (colheita), o azeite era distribuído por todos os membros.
Ao cantar do galo mais madrugador, às 5 horas da manhã, um homem da camarada ia à Praça tocar a corneta para que as mulheres se levantassem a fazer o almoço (pequeno almoço) aos seus homens: batatas ou feijão. Mais a merenda para um dia de trabalho.
Duas horas depois, confluíam para a Fonte Velha, chamados pelo toque do búzio da camarada, que partia depois em direção do seu olival, longe ou perto.
A colheita fazia-se a ritmo acelerado, pois tinham de colher azeitona suficiente para fazer o ordenado de cada membro da camarada. Os corpos magros e enregelados subiam e desciam escadas e as mulheres acorriam aos gritos de “Fato”. Os dedos frios das mulheres mal conseguiam catar as bolinhas negras no meio de ervas e terra. No início, o lume era mais fumo que fogo e uma passagem breve por lá apenas iludia o corpo.
Cantava-se para esquecer. Os homens desafiavam as camaradas que passavam ou andavam por perto. O diálogo gritado envolvia dois homens:

- Ó João, dá cá o podão!
- P´ra quê?
- P´ra malhar aqueles que além vão.
E torna-o cá a dar,
- P´ra quê?
- P´ra os tornar a malhar!


Os da outra camarada respondiam à letra:

- Ó João!
- O que é?
- Dá cá a navalha.
- P´ra quê?
- P´ra malhar aqueles canalhas.
E torna-a cá a dar.
- P´ra quê?
- P´ra os tornar a malhar!


As mulheres, alheias a estes rituais guerreiros, entoavam canções melodiosas com letras ligadas à tarefa que as ocupava:

(Uma voz) A oliveira da serra
(Coro) Ai solidão, solidão
(Uma voz) Que azeitona pode dar
(Coro) Ai, ai, ai, ai, ai
(Uma voz) Dará uma, dará duas
(Coro) Ai solidão, solidão
(Uma voz) Dará três se carregar
(Coro) Ai, ai, ai, ai, ai

(Refrão)
Vai de lá ó Maria
Tudo é um bem querer
Está um ar amoroso
Não te posso ir a ver


Se a oliveira a falasse
Ai solidão, solidão
Ela diria o que viu
Ai, ai, ai, ai, ai
Debaixo da sua rama
Ai solidão, solidão
Dois amantes encobriu
Ai, ai, ai, ai, ai

E continuavam com outras quadras…
Mas o ganho era sempre magro, mesmo com muito trabalho. Por isso, à passagem de algum rico ou na ida do patrão ao olival, colhia-se um ramo de oliveira e oferecia-se:

Tome lá este raminho
Da minha mão se oferece
Ainda não é tão delicado
Como o senhor o merece


Ou

Tome lá este raminho
Todo cheio de alegria
Onde vão meus cumprimentos
E de toda a companhia


A simpatia pagava-se com dinheiro, para terem vinho a acompanhar o jantar (almoço).
Se encontrassem duas folhas pegadas, aproveitavam para reforçar os laços. Um rapaz e uma rapariga pegavam cada um num lado e rasgavam-nas, dizendo:

(Um) - Como se chama o menino?
(Outro) - Raminho de bem querer.
(Davam um aperto de mão)
(Ambos) - Vamos ser compadres até morrer!

No último dia da colheita, faziam um jantar ou ceia com bacalhau, batatas e couves. O patrão dava o vinho e o azeite.
Depois iam ao lagar do patrão buscar a paga. E comiam uma taborna (tiborna): pão torrado embebido no azeite novo. O ganho era dividido por toda a camarada e corria-se à procura de mais trabalho, na esperança conseguir azeite para todo o ano.

Como habitualmente, nestas tradições mais antigas, baseei-me num trabalho escolar da minha irmã Maria Isabel dos Santos Teodoro. Ela ouviu-as da boca dos nossos pais António Teodoro e Maria da Luz (Prata).

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

O nosso falar: bátega d´água

Já aqui escrevi sobre a gravanada. Depois pus-me a pensar nas formas de chuva que havia e encontrei: gravanada, bátega d´água, bem chuvidinha, a cântaros e carujar. Já houve de todas, neste Outono, menos a chuva a cântaros ou potes.
Deixo-vos um glossário com os termos vicentinos para os diferentes tipos de chuva.

Bem chuvidinha: Era a chuva preferida dos nossos. Podia estar uma semana a chover, calmamente, nem estiava, nem chovia forte, que as nossas gentes não se aborreciam.
“Deixa estar que ela é cá precisa!”
“Assim é que é bom, entra toda na terra, para os nascentes correrem, quando fizer falta.”
Com a chuva bem chuvidinha, não há erosão dos terrenos, nem enxurradas destruidoras. A chuva cai e só faz bem: a terra mata a longa sede do estio e depois armazena para o resto do ano.

Carujar: Não é, nem deixa de ser. Quase dispensa o guarda-chuva, mas chamam-se parvos aos que andam debaixo deste carujo, sem proteção. Refresca, mas mal assenta o pó, se estivermos no tempo dele. "Está a cair um carujozito.", diziam os nossos mais antigos.

Gravanada: É uma chuva repentina, intensa, mas só dura breves minutos. Vem acompanhada de vento forte.

Bátega d´água: Cai repentina e intensa, também, mas por mais tempo do que a gravanada. Entre os 10 e os 30 minutos é o tempo de uma trovoada d´água ou pancada d´água, como também se diz. Provoca pequenas enxurradas.

Chover a cântaros ou a potes: Este termo é do tempo em que se ia à fonte com o cântaro ou o pote à cabeça. Imaginem que despejavam a água toda de uma só vez! É assim a chuva a cântaros, diluvial, intensa e demorada. Caem grandes quantidades de água durante largos minutos e até horas. Por vezes abranda e volta a cair com a mesma intensidade. "Chovia se Deus a dava!"
É a chuva das enxurradas e inundações.

Nota: Este texto foi reescrito no dia 1 de Dezembro, com base nos comentários do Ernesto Hipólito.

sábado, 19 de novembro de 2011

O nosso falar: gafa


Oliveira multicentenária na tapada de José dos Santos Candeias, por cima do Cimo de Vila.

Notícias do mundo agrícola, para quem está longe e com vontade de azeite novo.
Este ano a azeitona amadurou mais cedo, porque o mês de Outubro foi muito quente. A produção de azeitona será inferior à do ano passado e a qualidade do azeite ligeiramente menor.
Isto derivado da mosca, que não da gafa.
O Verão foi primaveril e a mosca não morreu com o calor, como pertence, antes continuou a furar frutos e pôr ovos. O resultado é a azeitona estar muito bichosa, em certas zonas. A chuva ventosa já tombou alguma, mas muita da colhida está furada, por isso o azeite não será tão puro. Por outro lado, em certas zonas, a azeitona engrossou muito com a chuva e por isso não fundirá como no ano passado.
Não que em S. Vicente se tenha dado por isso, pois muita gente recebeu do lagar azeite a 12 kg por litro, de azeitona sãzinha e miudinha. Mas quem levou a azeitona para mais longe teve fundas a 8. Este ano parece que dão o azeite pelos 10kg/l, nada mau, em ano em que a funda real andará próximo dos 9, em média.
Mas voltemos à azeitona. O mal dela é a mosca, não a gafa. Julgava que fosse um regionalismo, mas o site da SAPEC informa-me que a gafa ataca sobretudo a azeitona galega e acontece quando há muita humidade e calor, isto é, tempo quente e húmido durante o amadurecimento. O calor e a humidade são condições propícias ao desenvolvimento dos esporos que existem nos ramos e nas folhas. Já sabia da humidade, mas pensava que era do frio. Uma oliveira com gafa tem a azeitona podre e as folhas também morrem e caem.
Pelo menos livrámo-nos da gafa, graças a um Outubro seco.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Amato Lusitano

Comemora-se, este ano, o 5.º centenário do nascimento de Amato Lusitano (1511-Castelo Branco / 1568-Salónica). A data foi assinalada com inúmeros realizações que culminaram num congresso sobre Amato Lusitano, nos dias 10, 11 e 12 deste mês de Novembro. No dia de abertura, houve espetáculo no Cine-Teatro Avenida, onde, entre outras artes, foi apresentada uma peça de teatro da minha autoria, levada à cena pelo grupo de teatro da escola onde trabalho. Como a crítica a considerou uma obra asseada, aqui vo-la deixo.


Na corte do papa Júlio III.
(A abóbora é um produto biológico vicentino e também é nosso o topónimo Casal do Grilo!).


O AMATO DA LUSITÂNIA
José Teodoro Prata

Personagens
Amato Lusitano, o doente
Amato Lusitano, o médico
Amato Lusitano, a criança
Mulher muçulmana
Camponesa
Filha da camponesa
A outra camponesa
A Loucura
Personagens que contracenam com a Loucura
Damião de Góis
Erasmo de Roterdão
Embaixador de Portugal
Rapariga com fenda palatina
Mãe da rapariga com fenda palatina
Músicos, pintor, poeta, escultor...
Grupo de crianças-sangue

(À boca de cena, a um canto do palco, jaz Amato Lusitano, num cadeirão, doente de peste. É um homem de 57 anos, de barbas e cabelos grisalhos, com gânglios inchados e negros nas partes visíveis do corpo. Ali ficará durante toda a peça, tratado por uma mulher muçulmana. A sua atitude deve ser, ao longo de toda a representação, de sofrimento e humildade. Nos outros espaços do palco, desenrolar-se-ão as restantes ações desta peça.)

Amato Lusitano, o doente (Dirigindo-se à mulher que o trata): Sai desta casa mulher imprudente. Não vês como fiquei por tratar os doentes de peste? Se aqui continuares, acabará por te acontecer o mesmo. Foge daqui e não voltes mais!
Mulher muçulmana (Dando-lhe de comer, na boca): Um dia bati à sua porta, com o meu filho nos braços, a arder em febre há três dias. O senhor doutor curou-o, mesmo sabendo que sou da religião muçulmana e não tinha nada para lhe pagar. Por isso, não o abandonarei. Coma esta sopinha. Vai ajudar o seu corpo a vencer o mal! (Ele come duas colheradas e depois faz sinal de que não quer mais; a mulher tenta distraí-lo e animá-lo.) Sei que não é daqui. Como se chama a sua terra?
Amato Lusitano, o doente: Vim de muito longe, do reino de Portugal, também chamado Lusitânia, que fica na outra ponta da Europa, para o lado onde o sol se põe.
Mulher muçulmana (Aproveitando para lhe enfiar mais uma colherada de sopa): Então é por ser da Lusitânia que se chama Lusitano!
Amato Lusitano, o doente: Sim, e Amato é o meu apelido de família. Amato Lusitano.
Mulher muçulmana: E é bonita a terra onde nasceu, tão grande como esta nossa Salónica da Grécia?
Amato Lusitano, o doente: Não, é apenas uma vila, mas muito bonita. Espraia-se na encosta soalheira de um pequeno monte, rodeada de muralhas e com um castelo no alto. O castelo não é branco, mas chama-se Castelo Branco. Entre as pedras da muralha cresce uma pequena planta cuja flor parece uma pequena avezinha.
Mulher muçulmana (Compondo-lhe as almofadas): Deve ser muito bonita. E lá, na sua terra, o senhor doutor curava as pessoas como aqui faz?
Amato Lusitano, o doente (Recordando): Depois de me formar em Salamanca, no reino vizinho de Espanha, fiquei em casa pouco tempo e só acudi a algumas pessoas que me pediram ajuda, como tu fizeste um dia. O caso mais interessante passou-se com uma menina que, no pino do sol, ia com a mãe levar o almoço aos ceifeiros e foi mordida por uma víbora.
(No fundo da sala ouve-se um grito de criança. Ambas pousam as cestas que levam. A menina chora e a mãe grita aflita, chupando o sangue da mordedura na perna da filha. Esta começa a desfalecer e a mãe pega-lhe ao colo e grita por socorro. Na boca de cena, encontra uma mulher, pára e coloca a filha no chão.)
Camponesa (A gritar, aflita): Ajuda-me, a minha menina foi mordida por uma víbora!
A outra amponesa: Ata-lhe casca de trovisco acima da mordedura que atalha o veneno!
Camponesa (Aflita): Mas aqui, onde é que vou achar trovisco?
A outra amponesa (Procurando): Olha ali uma touceira! (Parte um ramo, tira a casca e com ela ata a perna da menina.) Agora tens de ir ao médico a Castelo Branco!
Camponesa (Pegando na menina ao colo): Faz-me um favor: vai chamar o meu homem que anda no Casal do Grilo com os ceifeiros. Eu vou indo para casa, a atrelar a burra. Valha-nos Nossa Senhora dos Aflitos! (A mulher sai de cena, por onde entrara.)
Mulher muçulmana: E conseguiu salvar a menina, como fez com o meu filho?
Amato Lusitano, o doente: Bateram à porta dos meus pais três horas depois. A menina já vomitara bílis e vinha atacada de tremores, com vertigens e perda de sentidos. Mandei o cirurgião golpear toda a perna e das feridas saiu um sangue negro. Depois apliquei, nas feridas, um emplastro de alhos e cebolas azedas. Também lhe receitei suco de freixo, para beber, e outros tratamentos. Um mês depois, estava completamente curada.
Mulher muçulmana (Ocupada a arrumar o quarto): Essa é a melhor recordação que tem da sua terra?
Amato Lusitano: Alcançar a cura para os meus doentes sempre foi a razão de ser da minha vida. Mas as melhores recordações são os tempos da minha infância, em casa de meus pais, com os meus irmãos e primos. E nunca esqueci um poema que me ensinou o meu mestre das primeiras letras. Era de um fidalgo-poeta da minha terra, chamado João Roiz ou Rodrigues, como eu, que morreu nos meus tempos de rapaz.
(Entra em cena um rapazito – Amato Lusitano, a criança - que recita o poema.)

Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
tão fora d' esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

(Amato Lusitano, o doente, fica triste, desanimado, quase choroso.)
Mulher muçulmana (Com voz calma, maternal): Pronto, já chega de conversa. Descanse agora um pouco.
(Amato Lusitano, o doente, fecha os olhos e dorme. A mulher muçulmana aconchega-lhe a roupa e depois coloca-lhe a mão na testa.)
Mulher muçulmana: Arde em febre. Pobrezinho! Um homem tão sábio e bom, neste sofrimento atroz. Que Alá lhe acude! (Vai buscar uma bacia de água e aplica-lhe uma toalha húmida na testa, refrescando-lhe o rosto e o pescoço.)
Amato Lusitano, o doente (Agita-se e fala em delírio): Loucura… Antuérpia… Erasmo… A loucura do Erasmo… O Góis…Antuérpia…
(A mulher não sai da sua beira, tentando baixar-lhe a febre. Entra em cena uma personagem mitológica, a Loucura, que semeia a discórdia por onde passa. Sugerem-se várias situações, como roubo, assassinato…)
Amato Lusitano, o doente (Continua agitado, em delírio): Antuérpia… Erasmo… A loucura do Erasmo… O Góis… A loucura…
(Aparecem em cena dois homens, conversando animadamente.)
Damião de Góis: Ora, meu amigo Amato, bons olhos o vejam nesta mui nobre e rica cidade de Antuérpia. Que notícias me traz do nosso Reino de Portugal?
Amato Lusitano, o médico: Más notícias, meu caro Damião de Góis. Intolerância, perseguições e fuga! Uma nova diáspora para o povo eleito de Abraão e Moisés, perseguido por todo o reino de Portugal. Só dor e tristeza!
Damião de Góis: (Lamentando): É uma tragédia nacional. Saem os mais esclarecidos e o reino fica privado da sua iniciativa e dos seus cabedais. (Animando-o.) Mas, aqui, nesta pérola da Europa do Norte, podes estar descansado. Muitos da tua religião já aqui se refugiaram e os seus negócios prosperam. Também tu te sentirás como em tua casa. Mas eis que chega o meu amigo Erasmo de Roterdão, ilustre autor da obra “Elogio da Loucura”. (Cumprimenta o monge Erasmo de Roterdão, com uma abraço.) Apresento-lhe João Rodrigues de Castelo Branco, mais um notável médico cristão-novo fugido da nossa madrasta Lusitânia.
Erasmo de Roterdão: É uma loucura! Os grandes da sociedade, políticos e religiosos, levam uma vida de luxo e de prazeres, desprezando os mais humildes. Os cristãos viraram-se uns contra os outros e ninguém se entende. A Igreja de Cristo começa a partir-se aos pedaços, dividida entre católicos, protestantes e anglicanos. E, não satisfeitos, perseguem os crentes das outras religiões do Livro, judeus e muçulmanos. Raros são os oásis de tolerância como esta minha Flandres. (Levantando as mãos para o céu.) Que Deus ilumine as consciências dos homens é tudo o que Lhe peço! (Vão saindo de cena, a conversar, agora em voz baixa.)
(Amato Lusitano, o doente, acorda, já mais aliviado da febre. A mulher muçulmana dá-lhe água a beber.)
Mulher muçulmana: Beba água, porque suou muito (Dá-lhe água e ele bebe.) E agora este xarope que me ensinou a fazer.
Amato Lusitano, o doente: Dormi, mas pouco descansei, porque as más recordações entraram no meu sono. Passa-me aquele livro!
(A mulher pega num livro e entrega-lho. Ele folheia-o.)
Mulher muçulmana: O que há nesse livro?
Amato Lusitano, o doente: Este livro é o quinto volume das minhas Centúrias, onde explico como tratei os doentes.
Mulher muçulmana: E tem alguma história engraçada?
Amato Lusitano, o doente: Por acaso, na cura 14, descrevo um caso muito curioso.
(Entra em cena Amato Lusitano, o médico, e chega uma mulher com a sua filha.)
Mãe da rapariga com fenda palatina: Senhor doutor, a minha menina tem um buraco no céu-da-boca. Estou farta de correr os médicos e nenhum faz nada!
Amato Lusitano, o médico: Olá, moça. Como te chamas?
Rapariga com fenda palatina (Com voz de cana rachada.): Chamo-me Margariga.
Mãe da rapariga com fenda palatina: Vê, senhor doutor? Todos zombam dela!
Amato Lusitano, o médico: Abre a boca!
(Ela abre a boca e o médico observa. A mãe aproxima-se e aponta.)
Mãe da rapariga com fenda palatina: É aquele buraco. A comida passa por lá e volta a sair pelo nariz. Pobrezinha da minha menina!
(Amato Lusitano, o médico, medita no caso e tira-lhe o molde do céu da boca, com uma massa.)
Amato Lusitano, o médico: Vou ver o que posso fazer. Venham cá para a semana.
(A mãe e a filha saem e Amato Lusitano, o médico, trabalha numa prótese para colocar na fenda do céu da boca. Mãe e filha voltam a entrar.)
Mãe da rapariga com fenda palatina: Bons dias, senhor doutor. Mandou-nos voltar cá por via do buraco que a minha filha tem no céu da boca.
Amato Lusitano, o médico: Olá, Margarida.
Rapariga com fenda palatina (Com voz de cana rachada): Olá, senhor doutor.
Amato Lusitano, o médico: Abre a boca. Vou tapar a fenda que aí tens, com esta prótese. (A rapariga abre a boca e o médico coloca-lhe lá uma prótese.) Diz-me lá como se chama a tua mãe!
Rapariga com fenda palatina (Com voz normal.): A minha mãe é Joaquina.
(A rapariga fica surpreendida com o som, o médico sorri e a mãe fica maravilhada.)
Mãe da rapariga com fenda palatina (Exuberante.): A minha rica filha já fala como as demais! O senhor doutor é um santo. Deus lhe pague! Todo o dinheiro do mundo não chega para pagar o bem que fez à minha menina.
Amato Lusitano, o médico (Sorrindo.): São só 5 florins.
(A mãe da rapariga paga-lhe e continuam a falar em voz baixa, enquanto saem de cena.)
Mulher muçulmana: Foi uma sorte para esta rapariga ter sido tratada pelo senhor doutor! E diga-me mais uma coisa: de entre tantas pessoas que curou, qual foi a mais importante.
Amato Lusitano, o doente: Para um médico, todos os doentes são igualmente importantes. Mas percebo o que queres dizer. A pessoa mais famosa que tratei foi o papa Júlio III, na cidade de Roma.
(Em cena, entra um grupo musical e toca. Este grupo pode ser substituído por uma música renascentista gravada e colocada no início desta cena que pretende retratar a corte papal de Júlio III. Num lado, um pintor dá uns retoques num quadro. No outro, um poeta escreve. Estas sugestões podem ser substituídas por outras, desde que se crie o ambiente de uma corte renascentista. Deve existir um símbolo papal, que informe tratar-se da corte pontifícia. Entra Amato Lusitano, levado pelo embaixador de Portugal em Roma.)
Embaixador de Portugal: Agradeço a Vossa Mercê a prontidão com que acorreu à minha chamada. Sua Eminência Reverendíssima está gravemente doente e até agora nenhum médico deu com o mal.
Amato Lusitano, o médico: Eu é que lhe agradeço a Vossa Excelência, Senhor Embaixador, por ter oferecido à corte pontifícia os meus humildes serviços médicos. É para mim uma grande honra contribuir para a cura do chefe da Igreja Católica.
Embaixador de Portugal: E é também um enorme prestígio para o reino de Portugal! Vamos, eu guio-o à ala dos aposentos de Sua Eminência.
(Saem os dois e depois o poeta, o pintor e os músicos, se houver.)
Amato Lusitano, o doente: Felizmente, tive sucesso na cura do papa Júlio III e tornámo-nos grandes amigos. Infelizmente, sucedeu-lhe um papa intolerante com os judeus e vi-me obrigado a fugir de Itália.
Mulher muçulmana (Dando-lhe uma colher de xarope.): O senhor doutor descobriu tantas curas para as doenças! Qual acha que foi a sua maior descoberta?
Amato Lusitano, o doente: Na Universidade de Ferrara, também na Itália, trabalhei com o médico Canano e juntos descobrimos as válvulas da veia ázigos. Foi uma descoberta muito importante, pois permitiu que, alguns anos mais tarde, o meu colega André Vesálio explicasse toda a circulação do sangue.
(Entra em cena um grupo de crianças vestidas de vermelho. Algumas crianças formam em coração, dilatando-se e contraindo-se. A cada contração, sai uma criança, a simular a saída do sangue por uma artéria. Do outro lado, entra no coração uma criança, a simular a reentrada do sangue por uma veia. Nesta encenação, deve tapar-se da vista do público Amato Lusitano, o doente, que não volta a parecer.)
Mulher muçulmana (Olhando Amato Lusitano, o doente, prostrado no cadeirão.): E assim foi a vida deste homem sábio e bom. Nunca lhe conheci mulher ou filhos. Dizia que os seus filhos eram os seus discípulos aprendizes. Nasceu numa terra longínqua e percorreu toda a Europa. Foi médico de reis e papas, senhores e comerciantes, mas nunca recusou tratamento aos mais humildes, cobrando a cada um segundo as suas posses. Morreu sozinho e saudoso da sua pátria natal, ele que foi tão grande entre os homens. Amato Lusitano deixou o seu exemplo, a sua sabedoria e a sua marca na história da Medicina.
(Entram em palco as personagens, vestidas de médico, pela ordem que se segue. Vão ler trechos do Juramento Médico de Amato, escrito em Salónica, nos últimos anos da sua vida. Depois das falas, permanecem no palco, para o aplauso final.)
Amato Lusitano, o médico: «Juro perante Deus imortal e pelos seus dez santíssimos sacramentos, dados no Monte Sinai ao Povo Hebreu, por intermédio de Moisés, após o cativeiro no Egipto, que na minha clínica nunca tive mais a peito do que promover que a Fé intacta das coisas chegasse ao conhecimento dos vindouros.»
Camponesa: «Quanto aos honorários que se costumam dar aos médicos, fui sempre moderado no pedir, tendo tratado muita gente com mediana recompensa e muita outra gratuitamente.»
A outra amponesa: «Muitas vezes rejeitei firmemente grandes salários, tendo sempre mais em vista que os doentes por minha intervenção recuperassem a saúde do que tornar-me mais rico pela sua liberalidade ou pelos seus dinheiros.»
Mãe da rapariga com fenda palatina: «Nunca divulguei um segredo a mim confiado; nunca a ninguém receitei poção venenosa; com a minha intervenção, nunca foi provocado o aborto; nas minhas consultas e visitas médicas femininas, nunca pratiquei a menor torpeza; em suma, jamais fiz coisa de que se envergonhasse um médico ilustre.»
Erasmo de Roterdão: «Para tratar os doentes, jamais cuidei de saber se eram hebreus, cristãos, ou sequazes da Lei Maometana.»
Damião de Góis: «Sempre tive diante dos olhos, para os imitar, os exemplos de Hipócrates e Galeno, os Pais da Medicina, não desprezando as Obras Monumentais de alguns outros excelentes Mestres na Arte Médica.»
Amato Lusitano, a criança: «Fui sempre diligente no estudo e, por tal forma, que nenhuma ocupação ou circunstância, por mais urgente que fosse, me desviou da leitura dos bons autores.»
Embaixador de Portugal: «Nem o prejuízo dos interesses particulares, nem as viagens por mar, nem as minhas pequenas deambulações por terra, nem por fim o próprio exílio, me abalaram a alma, como convém ao Homem Sábio.»
Mulher muçulmana: «Os discípulos que até hoje tenho tido, em grande número e que, em lugar dos filhos, tenho educado, sempre os ensinei muito sinceramente a que se inspirassem no exemplo dos bons.»
Amato Lusitano, o doente (Trazido pelos dois outros personagens Amato Lusitano): «Os meus livros de Medicina nunca os publiquei com outra ambição que não fosse o contribuir de qualquer modo para a saúde da Humanidade. Se o consegui, deixo a resposta ao julgamento dos outros, na certeza de que tal foi sempre a minha intenção e o maior dos meus desejos.»

FIM

Notas:
1. Este texto dramático foi elaborado com objectivos educativos (pedagógico-didáticos).
2. Na realidade, Amato Lusitano inventou uma prótese para a fenda palatina de um rapaz e não de uma rapariga. Mas esta peça de teatro foi escrita à medida e o Clube de Teatro da minha escola (Escola Cidade de Castelo Branco) tem muito mais raparigas do que rapazes. A prótese era uma folha de ouro em forma do céu da boca, com uma haste envolta em espuma que encaixava na fenda.
3. Na encenação, a minha colega Carla Salgueiro dividiu o palco em três espaços: na boca de cena decorreram as animações (embora também nos outros planos), em segundo plano estava Amato Lusitano deitado numa cama e imediatamente atrás havia uma estrutura alta onde foram encenadas as recordações de Amato. As animações estiveram a cargo do Clube de Ginástica Acrobática da minha colega Magda Rocha.