domingo, 18 de maio de 2014

Romaria à Senhora da Orada

Mal entrava o Maio, com o cuco a cantar e a serra vestida de todas as cores, era uma alegria!
Quer fosse na ribeira, a bater a roupa no lavadouro; nos campos, na sementeira do milho, e na monda ou na sacha; por esses caminhos fora, com a cesta do jantar para o homem ou o molho de lenha à cabeça, toda a gente cantava:

Nossa Senhora da Orada,
Tem um sino no telhado,
Para chamar os pastores
Que andam na serra com o gado.

Nossa Senhora da Orada,
Tem um jardim na portela,
Mandai-o regar, senhora,
Por uma moça donzela.

Nossa Senhora da Orada,
Quem vos varreu o terreiro,
As moças de S. Vicente,
Com raminhos de loureiro.

Nossa Senhora da Orada,
Quem vos varreu a capela,
As moças de S. Vicente,
Com raminhos de marcela.

Os dias que antecediam a romaria eram vividos numa ânsia. Os mais velhos, levados pela fé, queriam agradecer à Senhora as graças recebidas ao longo do ano ou pedir ajuda para as muitas aflições que lhes consumiam as vidas:

Nossa Senhora da Orada,
Este ano lá hei de ir,
Não vos hei de levar nada,
Ainda vos hei de pedir.

Queria também ver a família toda à roda.
Os mais pequenos, antecipando o gozo da festa que era sobretudo o gosto das santinhas de açúcar penduradas ao pescoço, dos rebuçados de açúcar amarelo na roleta do Ti Viriato e as novidades das tendas que se estendiam ao longo do caminho, ao fundo do terreiro. 
Na véspera, as casas eram um burburinho. Começava-se logo de manhã a fazer a merenda, a contar com a família toda e mais alguém que aparecesse: ovos verdes, bolos de bacalhau, galo assado, o paio da tripa mais grossa, pão leve, pão trigo e vinho com fartura! Tirava-se a barriga da miséria de quase todos os outros dias do ano.
Ao outro dia era só acomodar os vivos, vestir o fato dos domingos e, antes que o sol começasse a apertar, lá ia tudo por aí a cima. Quanto mais cedo se chegasse, melhor. 
Os caminhos eram um mundo de gente vinda de todo o lado. Da Vila, da Charneca e de todas as terras das redondezas. Chegavam a vir até de longe, em excursões. Só de Lisboa eram pelo menos duas camionetas. Alguns iam a cavalo nos burros ou em carroças e carros de bois enfeitados com flores garridas. Mas de resto, era quase tudo a pé, com os cabazes da merenda e os açafates das ofertas à cabeça. E ninguém se calava:

Nossa Senhora da Orada
Para lá vou eu agora,
Meu coração cada dia,
Minha alma a toda a hora.

Nossa Senhora da Orada,
Vinde abaixo à ribeira,
Vinde ver a mocidade
De S. Vicente da Beira.

Chegados lá acima, escolhiam a melhor sombra para estender a toalha. Era um instante enquanto as barreiras, à volta do terreiro, e os lameiros, rente à ribeira, se enchiam de gente. Pareciam enxames! Cachopitos, então, nem é bom falar!
Depois era a missa campal, sempre uma eternidade… O fôlego do Padre Leal, a lembrar o milagre da Senhora à rapariga escorraçada pelo pai ou os que tinham abalado, levados pela sorte e pela guerra, punha toda a gente chorar. A seguir, a procissão, na cadência da música e do tempo; velas que uma mão não abarcava (algumas da altura de um homem) para pagar as graças alcançadas; o andor aos ombros de soldados, orgulhosos, metidos nas fardas de embarque; o vestido da Senhora cravejado de notas. E os ganapos, enfadados, num desassossego para irem cobiçar as gulosices, os piões, as cornetas e os pífaros de barro ou as bonecas que reviravam os olhos. Os mais espigados sonhavam já com um chapéu de palha novo, um anel de plaquê ou uns óculos de sol, bem escuros, de plástico verde ou cor-de-rosa garrido. Um vistão de fazer pasmar toda a gente!... As cachopas namoradeiras, insinuantes, a medirem o tamanho do amor dos namorados: «Ai que lindo lenço ali está!....» Um ano, o namorado de uma das minhas tias também me comprou uma prenda: um cinto de argolas de plástico, verde alface. Mesmo lindo! Nunca percebi a razão de tal generosidade. Só se foi porque eu nunca disse à minha avó que, quando lhes guardava o namoro, aos domingos à tarde, eles às vezes davam a mão ou um beijinho, à socapa. O que é que isso me importava, se o que eu queria era andar na praça a jogar ao paspelho ou às escondidas…
Comida a merenda e gastos os tostões escondidos no fundo do bolso ou atados na ponta do lenço, ia toda a gente beber água à fonte e ver a música e os ranchos.
Lá mais para a tardinha armava-se o baile. Se não havia música bastava uma concertina ou um realejo para animar a mocidade. Ao princípio os de cada terra faziam a sua roda. O pior era quando as rodas se juntavam e algum cachopo da Partida ou do Casal da Serra se atrevia a tirar, para dançar, uma rapariga que andasse debaixo de olho de um dos da Vila. Armava-se logo ali tal chinfrim que os carros de bois depressa ficavam sem fogueiros. Os de fora pegavam nos paus que tinham trazido de casa, à cautela, e ia tudo pela frente. Depois de muita cabeça partida e lombos derreados, tanto dos do lado de lá como dos de cá, era ver os outros a fugir, corridos à pedrada: «Anda cá, seu filha da p…! Se cá te apanho outra vez, parto-te os cornos!» Não se voltavam, nem para apanhar o chapéu, se calhava a ficar para trás… E era assim, sempre que se encontravam os da Vila e os da Charneca. Ódios antigos… Os de cá, manientos, a fazerem-se mais que os outros; os da charneca, orgulhosos, a quererem fazer ver que eram tão homens como os demais. E o vinho a empolar ainda mais todas as rivalidades…
Voltava-se a casa já rente ao sol posto. A alma cheia, mas o coração apertado pela nostalgia do fim da festa e a espera de um ano que, naquele tempo, era uma eternidade…
Mesmo assim, ainda a cantar:

Nossa Senhora da Orada,
As costas vos vou voltando,
Minha boca se vai rindo,
Os meus olhos vão chorando.


M. L. Ferreira

quinta-feira, 15 de maio de 2014

A caqueira

Não é fácil separar a Céu Parrita da comadre Aurélia. Apesar de serem muito diferentes, mas, em certos aspetos,  completavam-se uma à outra. Nos cantos religiosos e profanos da nossa terra, estavam sempre as duas. Nos antigos teatros, nos passeios e até na  "marouva" que era e ainda é o roubo de frutas da época, lá estavam elas.
A Aurélia, de seu nome Aurélia Augusta Gama, tinha aquilo a que eu chamo "velhacaria boa" que no fundo é o sal que faz com que a nossa vida não seja uma coisa insípida, mas pelo contrário algo que vale a pena.
Já de pequena, no tempo em que se faziam teatros em S.  Vicente, ela lá estava.  Contava-me o meu pai que um dos teatros que cá se fizeram teve tanto êxito que tiveram um convite para ir representar às Minas da Panasqueira e lá foram. No fim da sessão, a pequenina Aurélia veio ao palco agradecer e disse:
- Vivam as Minas da Panasqueira!!! Vivam os Panascas todos!!!

Lembro-me de, muito novo, ainda ter tido o privilégio de cantar os Martírios, no grupo dela, fazendo eu a segunda voz.

Mas, porém, todavia, contudo, havia a parte da velhacaria:
Num tempo em que as festividades eram vividas com muita intensidade, o Carnaval não era exceção. Uma das atividades ou jogos desses dias era "a caqueira". Tenho que explicar aos mais novos que a caqueira era duas coisas:
 1º: Um jogo de Carnaval:  Roubava-se um cântaro de barro, enchia-se de palha seca e ateava-se o fogo. O barro aquecia e o jogo consistia em atirar o cântaro de uns para os outros, sem se queimar e sem o deixar cair. Quando alguém deixava cair o cântaro que naturalmente se partia, tinha que ir roubar outro para o jogo continuar. Era um tempo bom para os oleiros!
2º: Uma partida de Carnaval: Enchia-se uma lata velha com todo o tipo de lixo, muitas vezes com excrementos e pequenos animais mortos e, aproveitando a calada da noite e o facto de as chaves estarem sempre nas fechaduras das portas, lançava-se a lata para as escadas de modo a cair por elas abaixo e espalhar toda aquela porcaria.

A Aurélia adorava escrever cartas de Carnaval! Eram cartas muito engraçadas que eram dirigidas a alguém de quem se queria fazer troça. Metiam alguns palavrões, algumas cenas picarescas, alguns desenhos maliciosos, etc.
Naquele ano, a pessoa escolhida para destinatário dessas cartas fui eu. Veio a primeira, veio a segunda e eu sem saber a proveniência. Quando uma noite me preparava para sair de casa, vejo uma terceira carta a ser metida por debaixo da porta. Abro de repente e vejo a Ermelinda a escapar à esquina, a caminho do café da Janja. A Ermelinda já era quase nora da Aurélia e daí eu fiquei a saber quem era a autora das cartas: Era a Aurélia!!
Urgia uma vingança ou eu não fosse "Escorpião" de gema.

Eu e os meus amigos, dos quais destaco o Zé Barroso, costumávamos reunir  à noite, à volta da braseira do café da Janja, e foi aí que foi delineado o  plano de ataque.
Arranjei uma lata de tinta vazia, roubei meia dúzia de malaguetas (caralhetos) secas à minha mãe e passámos pela casa do Zé Barroso que naquele tempo vivia na Rua da Costa e onde o lume estava sempre aceso. Enchemos a lata de brasas e fomos direitos à casa da Aurélia.
Chave na porta é porta aberta! Foi só por a lata no lumiar, por as malaguetas dentro e fugir.

No 1.º andar da casa estava a Aurélia, a Céu Parrita e a Ermelinda, já que o namorado, o meu amigo Elias, trabalhava de noite, por ser padeiro. Estavam todas a ver televisão, mas a dormir no rés do chão estava o Sr. José Roque, marido da Aurélia, que, além de ser um santo homem, sofria de doença pulmonar crónica. Tínhamos esquecido o Ti Zé Roque!!!
Quando, mais tarde, fomos espreitar à esquina, o quadro que vimos foi o seguinte:
Três mulheres com o rabo voltado umas para as outras, a tossir convulsivamente e uma delas (a Aurélia ) a gritar:
- Foi aquele cabrão daquele Arnesto!!!
Como é que ela adivinhou?

Dêmos graças a Deus por não termos morto o Ti Zé Roque!


EH

domingo, 11 de maio de 2014

Uma centelha de afeto

RABOMOLE

I

Esta Páscoa, após as festas, deu-me, mais uma vez, para dar uma volta pelas proximidades da Vila. Ao mesmo tempo que tentava ler (ou reler) dois livros. Um, a ‘Aparição’ do Vergílio Ferreira; outro, ‘O Arranca Corações’ do Boris Vian.

Já tinha tentado essa leitura. As férias são curtas para tanto. E mais uma vez me fiquei pela tentativa. Ao todo, de um e outro, li apenas uns capítulos.

Deixei de parte essa tarefa. E, como há muito me interesso pela disciplina da Arqueologia, de vez em quando vou ver o que ainda resta dos antigos Romanos; ou à procura de alguma linda moura que, por obra de bom feitiço, se encontre encantada algures numa gruta da Gardunha.  

Primeiro, a sul.

Estaciono o carro junto à estrada, ao fundo do alto da Fábrica, do lado de lá. Sigo, a pé, até às Vinhas do Poço, local onde parece que os nossos antepassados Romanos assentaram arraiais.

É aí que parece existir a maioria dos elementos arqueológicos de superfície, até agora conhecidos. Desde moedas com a efígie, designadamente, do imperador Constantino (séc. IV); cerâmica (telha, (tegula), pedaços de potes, tijolos; e, eventualmente, azulejaria romana de pavimento (existem lá fundações de casas da época) … Um mundo a descobrir!

Vim depois para cima, até à fonte de mergulho da Portela, a sul, onde persistem afloramentos de calçada antiga, talvez romana, talvez árabe ou mesmo medieval.

Calçada que, na sua continuidade, ia entrar na Vila, passava pela Rua da Corredoura, no topo do povoado e se dirigia ao alto da Portela, a norte, no cimo da Senhora da Orada. Daí, descia a encosta norte da Gardunha para o Fundão, com a Estrela à vista.

Uma espécie de ‘CREL’ (Circular Rodoviária Externa de Lisboa), da época, mas da Lisboa … Pequena.

O intuito que, desta vez, me trouxe a esta aventura era simples: percorrer, a pé, toda essa estrada antiga, das Vinhas até ao alto da Senhora da Orada e localizar os afloramentos de calçada, onde eles ainda existem.

Com a mobilização de pessoas, a colaboração dos Escuteiros e a ajuda de algum técnico especializado, talvez se possa conservar e limpar um pouco o caminho. Finalmente, poder fazer desse percurso um itinerário para passeios pedestres, com sinalética adequada, paragens estratégicas de descanso e compensação do estômago e mini palestras de esclarecimento sobre o património.   

Porém, poupei-me ao esforço de percorrer, a pé, toda essa calçada desde as Vinhas até à Portela, a norte. Nem tinha tempo para isso. Peguei no carro e segui pela estrada habitual, até à Senhora da Orada.

Tinha, inevitavelmente, que ir beber água à fonte. Li ali uns versos dedicados à santa. Olhei para a capela e vi mais uns versos, num azulejo, na parede traseira e várias ofertas de flores na fachada da frente. Fui parar o carro, já à saída, na curva, fora da estrada, perto do ribeiro, no local onde a tal estrada antiga de pedra continua, serra acima, até ao alto da Portela. Passando ali ao lado da exploração das águas da ‘Fonte da Fraga’, onde se vê jorrar água em vários respiradouros da conduta.

II

Aí iniciei a subida.

Levo comigo um porta-documentos com bolsa e correia de 60 cm, contendo um molho de chaves, 2 telemóveis, carteira com vários cartões, um comando elétrico, uma pen, um porta-moedas, tabaco, isqueiro. Tem algum peso.

E logo dei por um cão pequeno que por ali vagueava. Como não apresentava um estado de escanzelado ou de magreza, concluí que pertenceria a alguma das pessoas que por aquele sítio tem animais. Ainda agora não sei se isso corresponde à realidade. Sei apenas que o cãozito, tal como apareceu, repentinamente, voltou a desaparecer, sorrateiramente, entre o mato que bordeja o caminho.

Nem eu, nem ele proferimos qualquer som. Mal o tinha visto. Mas, naqueles breves segundos, pude reparar que pouco abanou o rabo, sempre descaído. E logo me deu para o batizar de ‘Rabomole’.

Deixei de o ver. Prossegui.

O tempo estava bom para andar porque não fazia muito calor. Estava até um pouco fresco. Mas o sol, quando aparecia, frequentemente, entre as clareiras de nuvens, picava a pele. O que valia era que essas nuvens me iam sempre protegendo, a intervalos, com a sua sombra reparadora.   

Caminhava sozinho, absorto, num bom passo, apesar de a subida ser acentuada. Tinha muito que andar!

Além do bulir do mundo, com o cantar das aves e o zumbido dos insetos a libar e a polinizar muitas flores que já estão abertas ao sol e ao ar, compondo o quadro da primavera, nada mais se ouvia, a não ser os meus sapatos a chuçar as pedras soltas do caminho.

Apenas uma aragem agitava as giestas cujas flores amarelas e brancas, um pouco mais atrasadas, querem agora desabrochar.

E lá prosseguia, serra acima, à descoberta dos afloramentos de calçada. Tão compenetrado ia em chegar à Portela, que não dava por nada!

Já me tinha esquecido do cãozito que encontrara ao fundo da ravina.

III

Subitamente, ouço do lado direito, mas atrás mim, um arfar de respiração que me assustou um pouco, pois não tinha dado por alguém ou algum animal se ter aproximado. O que quer que fosse, que se veio ali postar à minha ilharga não tinha feito qualquer barulho.

Mas numa fração de segundo, veio-me à cabeça a única conclusão possível: só pode ser um animal. E, a avaliar pelo cavo ofegar, talvez um grande cão, guardador de rebanhos ali na serra. Assustou-me, sobretudo, o pressentimento (e isso era real) de que, estando de costas, me encontrava ao alcance do animal, caso este formasse um salto para me atingir, sem que eu pudesse defender-me.

Virei-me, então, instintivamente e agarrei o porta-documentos pela correia, com todas as coisas que levava dentro (algumas metálicas) e fiz menção de dispará-lo contra o focinho do animal, o que sempre teria o efeito de o afastar dos seus intentos.

Mas, ao virar-me, para agredir o intruso, que eu sentia estar ali mesmo muito perto, não era senão o cão que tinha visto no início da subida da encosta. Descansei.

Após aquele meio gesto de ameaça, o cão afastou-se com medo. Pregara-me um pequeno arrepio. Não lhe dei confiança. Ele percebeu e ficou para trás. Deixei de o ver novamente. Deve ter feito a mesma manobra que fez da primeira vez. Saiu do caminho e meteu-se de novo pelo mato, silencioso. Continuei na minha senda.

Ao fazer cada curva da estrada, olhava à retaguarda, a tentar perceber a sua estratégia de caçador como é toda a condição de cão. E lá estava ele ao fundo do caminho, sentado sobre as patas traseiras, a medir os meus movimentos e a avaliar cada gesto meu, guardando uma distância defensiva. Depois, uma e outra vez, voltava a meter-se mato dentro até aparecer de novo.  

Chegado ao alto da Portela, de lá divisei, para sul, a vastidão da Beira Baixa com montes e planícies; para norte, a imponente Estrela, ainda com as neves da época, a derreterem-se para o mar, pelos vales do Zêzere e Mondego.  

Entretive-me a tirar umas fotos. E o que é que vejo, ao virar-me para trás, mesmo no cruzamento do alto da Portela? O cão, o Rabomole, de novo, a observar-me. Tinha-me acompanhado até ao fim da etapa. E até parece que sabia que era ali o fim do caminho que me propusera percorrer.

Então chamei-o: “Rabomole, anda cá, botcho! E fazia aquele som que se obtém quando se unem os lábios, inspirando o ar como quando se dá um beijo repenicado na face de alguém. Até hoje ainda não compreendi por que é que os cães percebem que isso é um sinal de afeto dos humanos para com eles!

Rabomole abanava então mais intensamente a cauda, de satisfação. Mas sem nunca a levantar muito. Acercou-se de mim e veio mesmo deitar-se perto das minhas pernas. Fiz-lhe umas festas. Mas nada levava comigo que se comesse para lhe poder dar. Não me abandonou mais. Tinha feito um amigo!

Lá no alto, uma pequena nascente das que, nesta época, atravessam o caminho, tinha acumulado água numa poça e já ele se tinha metido no lamaceiro, para arrefecer. O esforço da subida fora grande! Ficou todo enlameado.        

Repentinamente, tocou o meu telemóvel. Alguém me telefonava. Atendi. Falei, falei. Rabomole não arredava pé. Procurava compreender, no seu entendimento de cão, que aparelho seria aquele que tocava. Rádios já ele teria visto muitos! Mas aquilo…

O desconhecido é como inimigo, diz-se. Por isso, orelhas sempre alerta! Olhos vivos! Movendo-se a cada trejeito meu, enquanto falava ao telefone! Rápido como a sombra!

E talvez até se interrogasse: “Se não está a falar para mim - o que ele com toda a certeza perceberia – por que é que este indivíduo está para ali a falar alto, se não está aqui ninguém para lhe responder?” Não percebia. Que créditos lhe mereceria eu, então, no mundo dos cães

IV

Mas, bem, após demorar-me uns minutos, lá no alto, iniciei a descida, que estava a passar da hora do almoço, na Vila. E ele sempre comigo, logo atrás, ao lado ou à frente. Agora já tinha confiança em mim.

Mas o seu instinto de caçador levava-o, por vezes, a perscrutar, de focinho em riste, algum movimento impercetível para mim de algum animalzinho terrestre ou ave a saltitar nas giestas; outras vezes, parecia que ia cheirar algum arbusto, pedra ou cômoro, marcando o seu terreno com urina. Mas logo voltava, de novo, a sua atenção para mim, vindo no meu encalço, mantendo-se à distância regulamentar.

Os meus passos eram agora mais rápidos porque a descer todos os santos ajudam. A umas boas dezenas de metros do local onde tinha ficado o carro, lá em baixo deixei, surpreendentemente, de o ver. Mas quando cheguei, lá estava ele, fiel, a arquejar, língua de fora, deitado ao lado do carro, à sombra, que o sol, no seu pino, queimava, se as nuvens, momentaneamente, se afastassem.

Chamei-o mais uma vez e fiz-lhe mais umas festas. Ao despedir-me, sentia já saudades daqueles momentos, daquela pequena caminhada que tínhamos feito, irmanados, eu, no esforço de alcançar um objetivo ele na perseverança de me acompanhar, com a expectativa de algum afeto. Era apenas isso que, naquelas circunstâncias, lhe podia dispensar.

Pus o motor a trabalhar e disse-lhe adeus. Correu atrás do veículo enquanto pôde, a boca a resfolegar! A última vez que o vi, pelo retrovisor, ainda vinha a correr, até que desapareceu na curva, pulmões a queimar, ao rubro, na tentativa inglória de me alcançar. Acelerei com a emoção contida. Queria sair dali. E afastei-me, definitivamente, na estrada.

Mesmo não podendo vencer a máquina, o querer daquele pequeno cão é enorme, não tem limites.  

E dei comigo a pensar: “O engenho do homem nada pode, afinal, contra a centelha de afeto criado na Natureza.”

Resta-me a falsa tranquilidade de pensar que Rabomole terá o conforto de se sentar, hoje, à ceia, ao colo do dono, no aconchego de um lar.

José Barroso

A propósito de um comentário



Libânia, é este o cão?
(Oxalá não seja!)

José Teodoro, a pedido do José Barroso



Olhem p’ra mim, tão lindo!
Infelizmente, parece que é mesmo o Rabomole! É muito triste que façam isto aos animais, mas se até o fazem às pessoas…
Mas ele continua com bom aspeto e sem fome; e pode ser que tenha a sorte de outros que por aqui têm aparecido. Ainda há pouco tempo a Adriana e o Dário “adotaram” um que também por aqui andava abandonado.
Já há quem diga que no Casal até os cães têm sorte. O Rabomole também vai ter a dele!
Espero dar boas notícias em breve…

M. L. Ferreira

sábado, 10 de maio de 2014

Urzes

No final do inverno, a Libânia publicou uma foto de urze, da espécie que cria torga.
Eu disse que não, a da torga era de um rosa mais forte.
Mas estava enganado.


Urze de flor rosa, a que cria torga na raiz. 
A da Libãnia era mais esbranquiçada, pois era ainda inverno e estava à sombra de eucaliptos.


Urze de flor branca, abundante nas zonas húmidas (ribeiros...)
José Teodoro Prata



Esta torga (ainda não percebi bem se a torga é apenas a raiz da urze ou se é a planta completa) foi encontrada na Gardunha, no sítio onde houve o fogo há uns anos. É grande, mas quem ma deu disse que ainda as lá há muito maiores. Pesa quase três quilos. Que bom tição daria!

M. L. Ferreira

terça-feira, 6 de maio de 2014

Barbas de chibo

O período revolucionário 74/76,  que afinal foi o tempo em que eu estive na tropa, não ficou a dever nada à disciplina. Como exemplo, posso dizer que cheguei a entrar à Porta de Armas da Escola Prática de Artilharia, com sapatos, meias amarelas, calças de trabalho, camisa de saída, cabelo pelos ombros e barba.
Com vinte anos, se não há disciplina, a coisa descamba e eu não fui exceção. Deixei crescer a barba, não uma barba como se usa agora, curtinha, mas uma barba grande, à Fidel Castro, que me ficava ridiculamente ridícula. Era a idade do quanto mais estranho melhor.
Numa das minhas vindas à terra, encontrei a Céu Parrita acompanhada da comadre Aurélia. Quando me viu com aquelas barbas, começou a fingir que chorava. Eu, farto de conhecer a Céu Parrita, perguntei-lhe o que é que ela tinha e ela, sempre a choramingar, dá-me a seguinte resposta:
- Sabe meu senhor?, É que eu tinha um chibo que me morreu que tinha umas barbas iguais às do senhor e eu, quando o vi com essas barbas, lembrei-me do meu chibo. Eu gostava muito do meu chibo, porque ele cobria muito bem as cabras!!!
Se pensam que eu cortei logo as barbas, enganam-se. Daí para cá, sempre que encontrava a Céu Parrita, o cumprimento que ela me fazia era:
 - Sabe? Eu tinha um chibo!
No ano passado deixou de me fazer este cumprimento.
Paz à sua alma.

E H

domingo, 4 de maio de 2014

MÃE


José Teodoro Prata

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Especialidade: Apontador de Morteiro

Como todos repararam, a minha recruta foi  “uma mão cheia de nada outra de coisa nenhuma", mas, na especialidade, as coisas correram muito melhor.
Em finais de Julho de 74, fui,  tal como Camões, desterrado para o Alentejo. Fui para a Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas fazer a especialidade: Apontador de Morteiro 120  mm, uma arma terrível!
Ainda hoje me pergunto o que é que eles acharam em mim para me por como apontador de morteiro. A única resposta que encontro é sempre ter gostado de relâmpagos e trovões! Estava no meu elemento.
Nesse tempo, as Festas de Verão ainda eram em Setembro e eu vim às festas.
Quando, ao fim de uma longa viajem, cheguei a Castelo Branco, fui ter com o Zé Manel (Mosca), para matar saudades. Comemos, bebemos e fomos direitos à sede do Partido Comunista Português  (quem diria!), ali por cima da agora pastelaria Colmeia. Ao cimo das escadas, estava um bebé num pequeno berço, a dormir. Era o Vladimir Vale. O pai Carlos ofereceu-nos uma quantidade de cartazes com grandes foices e martelos, para nós colarmos em São Vicente. Era gente tão eficiente (ainda são) que até a cola nos ofereceram. Nessa altura, no Sábado de Festa, não havia festa. A festa era Domingo, Segunda e Terça e mai nada!
Na noite de Sábado para Domingo, eu e o Zé Manel roubámos a escada ao Silva de Tinalhas, que era o homem da aparelhagem, e fomos colar cartazes vermelhos por toda a Vila, mas principalmente na Praça, na fachada da casa do Zé Coné,  primo do João Prata, que na altura era onde ficava a latoaria  do Sr. Fernando.
No Domingo de Festa, à hora da Missa, lá estávamos nós que nem cães a ver a reação dos velhotes àqueles  cartazes.
Foi um pratinho!!!
Quem saiu mal deste episódio foram as nossas mães que, sem saberem como nem porquê, passaram na boca destes “religiosos” de honradas domésticas a praticantes da mais velha profissão do mundo.

Em Vendas Novas, deram-me uma espingarda G3  (malucos) e duas caixas de munições (balas para o Zé Teodoro). Não nos deram um morteiro, porque não cabia no armário!
O mais giro daquilo é que a G3 disparava. Punham uns papéis brancos com círculos pretos lá muito longe e a gente disparava. E não é que eu acertava naquilo?!
Acabada a especialidade, fiquei por Vendas Novas, porque a minha mobilização para a Guiné ficou sem efeito, por causa da Revolução. Fiz a minha inscrição no Colégio dos Salesianos, para acabar o antigo 5.º Ano, pois ali não havia mais nada para fazer.
No dia 11 de Março de 1975, quando nos preparávamos para almoçar carne guisada com batatas, o oficial de dia em vez de dizer “Meus senhores podem sentar-se e bom apetite”, disse “Todos para as casernas armarem-se que está a acontecer um golpe!”
Lembro-me que o prato que naquele dia não comemos ficou conhecido como “carne à 11 de Março”. Recordo-me também de vários aviões de guerra a sobrevoar o quartel. Não vos posso dizer se nós éramos a favor ou contra.
Duma coisa tenho a certeza: A primeira pessoa a colar cartazes do Partido Comunista  Português em S. Vicente da Beira não foi o José Teodoro Prata.

E.H