domingo, 22 de março de 2015

Vai passando a procissão



Não, não é a ”Procissão” que cantava o João Villaret,  escrita pelo António Lopes Ribeiro. Estou a falar da Procissão dos Terceiros que se realizou no dia 8 de Março, em S. Vicente da Beira.
O Zé Teodoro, nosso mentor, não costuma falhar nestas coisas de dar notícias sobre os grandes eventos que se realizam na Vila, mas desta vez nem ele nem ninguém se  lembrou de dar a notícia ou pôr uma fotografia.
Cabe-me a mim, certamente o menos indicado, e porque já passou tanto tempo e nada, a dar notícias sobre esta procissão. Digo isto porque não me posso esquecer (e dizer Mea Culpa) que há tempos não achei resposta quando o meu filho me perguntou para que servia a Ordem Terceira. Esqueci-me da procissão.

Esta procissão é sempre lindíssima, tanto pela quantidade de andores que envolve como pela beleza das imagens, o número de figurantes e a grande multidão que atrai. Como é costume, a Banda Filarmónica Vicentina vem abrilhantar ainda mais esta procissão.
O grande número de andores sai da capela por uma ordem pré estabelecida, desde sempre que é assim, e o frade Franciscano, que sempre ou quase sempre acode a este evento, vai contando a história de cada personagem, sendo que todas, tirando Adão e Eva e o Senhor  Santo Cristo (desculpem se não está correto), pertenceram à Ordem Terceira de São Francisco.
Seguidamente, as imagens em procissão  dão a volta à Vila e regressam à capela de São Francisco, onde o frade faz uma última leitura sobre os santos, antes de entrarem na capela. Este ano, o frade teve que improvisar, porque, estranhamente, os seus apontamentos desapareceram do púlpito, durante a procissão.
Claro que organizar uma procissão desta envergadura requer muito trabalho e a Sra. Ministra, a Dona Dulce, que é uma das que exige muito dela e espera pouco dos outros, anda nestes dias numa dobadoura. Pequenina, mas com uma genica enorme, está em todo o lado; fazer vestimentas, arranjar andores, limpar, orientar e até pôr na ordem as ovelhas do seu rebanho que a todo o custo tentam livrar-se das suas responsabilidades.
Parabéns à Ordem Terceira.

E.H.



Nota: As fotos são da procissão de há dois anos e já foram publicadas neste blogue. Na altura, ainda não estavam concluídas as obras na casa do antigo convento, mas agora está bonito.

quinta-feira, 19 de março de 2015

A primeira vez



A minha primeira viagem num automóvel foi bastante atribulada, eu explico.
Na década de cinquenta do passado século, os dedos de uma mão chegavam para contar todos os automóveis que existiam na nossa vila.
A estrada nova ficava fora de portas, mas exercia uma atração enorme sobre os garotos. Os aterros serviam de escorrega (ficavam no local onde se encontra a casa do Victor), as cerejas...
Nossas mães não simpatizavam muito com a estrada (podiam aparecer os estrangeiros e levarem-nos). Carro avistado, todos fugíamos barreira do hospital acima ou em direção à eira (onde fica a casa da senhora Zezita) e saltava-se o muro (as casas do bairro ainda não existiam). Perigo passado, a brincadeira recomeçava.
A ruralidade, a rudeza das pessoas, a escassa informação (televisão ainda não havia, eletricidade, nem pensar), de vez em quando funcionários estatais projetavam, na parede da sacristia, um filme de acordo com o regime vigente e o povo, sentado no chão, via embebecido.
Comediantes rufavam seus tambores pelas ruas da vila, a anunciar o evento, montavam trapézio na praça, o povo fazia roda para ver a comédia. No intervalo do espetáculo, andava uma senhora de braço estendido com um chapéu na mão e os paroquianos lançavam algumas moedas. Tempos difíceis, mas para nós, maravilhosos.
A emigração em massa só apareceu nos anos sessenta, a guerra ainda estava "fresca" na memória das pessoas (da guerra vos livro eu, agora da fome...), as comunidades viviam à sua maneira, fechadas ao exterior.
As portas de muitas habitações estavam abertas dia e noite, a solidariedade e o espírito de entreajuda era notório. Um desconhecido era olhado com algum cuidado, não fosse ele um "estrangeiro".
Certa tarde de verão, o meu pai disse à minha mãe para vestir roupa lavada a mim e ao meu irmão João Maria. Andávamos na brincadeira no quintal, eu a brincar com a máquina de tirar fotografias do meu avô Manuel da Cadeia.
Entrámos na salita, lavou-nos, vestiu-nos e calçou-nos; lá vamos nós com o pai.
Eu ia vestido com traje domingueiro. Na praça, encontrava-se o carro de aluguer, grande, preto, forte e feio, que pertencia ao senhor Domingos Matias. O pai abriu a porta detrás para entrarmos. O meu irmão entrou sem cerimónias, mas eu fui um problema: não queria por nada deste mundo entrar, tinha medo. Berrei, estrebuchei, levei e à força lá entrei.
Automóvel arrancou e eu a fungar. No hospital, já não chorava, à saída da vila, calei-me completamente e comecei a saborear aquele momento. Afinal era bom andar de automóvel, as árvores moviam-se, parecia que o automóvel estava parado e as coisas é que se deslocavam.
Foi a minha primeira viagem, sabem onde? Alcains.
Meu pai foi à estação buscar o tio Padre João. Com um tiro, matei dois coelhos: andar de automóvel e ver o comboio.
Moral da história: as coisas têm mais sabor quando são conseguidas com sacrifício, trabalho... o meu medo inicial depressa se transformou em alegria. Quando chegámos à vila, já não me importava nada  de voltar para trás e fazer o mesmo percurso.
A praça era o nosso mundo, a torre, a igreja, o pelourinho, a casa da Câmara, eram as nossas referências, igual não podia haver.
Aos onze anos, parti para o seminário. "Vila Viçosa", afinal a nossa praça, a nossa torre... eram tão pequeninas.
Apesar disso, a praça da minha vila é a maior de todas e a mais bela.

Fiquem-se com mais este pensamento:
“Exige muito de ti e espera pouco dos outros.” (Confúcio).

E este nosso falar:
- Ó catchopos, ontem andava na Oles à caruma, ali prós lados do Lorcel começou a aparecer uma nuvem negra, caté metia medo... De repente, começou a cair uma pedresqueda tam grande em cima de mim, aparecia o fim do mundo. (Céu Parrita)

J.M.S

segunda-feira, 16 de março de 2015

LUGARES AONDE SE TORNA – 2

Reveladora ascensão

Vem esta lauda a propósito do que, parecendo uma coisa, às vezes é outra.
Um tal Stefan Bolmann, conhecido provocador, publicou em Munique, um livrinho chamado As mulheres que lêem são perigosas, título que a casa editora Quetzal e o Círculo de Leitores mantiveram nas edições em vernáculo. Em França, a editora Flammarion, carregou as cores do título, dando-o como (tradução minha) As mulheres que lêem são ainda mais perigosas. Lá teriam as suas razões, os franceses. Mas, em qualquer dos casos, o título, sendo forte e chamativo, é enganador, pois é do gosto pela leitura que o livro trata, afinal.
Escrito isto, vamos lá ao da “reveladora ascensão”, Manuel de Lima, para os amigos “o careca evidente”. A obra deste senhor, cheia de humor e non sense, é um dos lugares aonde torno com frequência, entre outras razões para revisitar o episódio em que um certo Nicolau, às voltas com um regedor (podia ser de São Vicente, já se vê), subido à torre da igreja em trajes de dormir, de lá salta, dando aos braços, como se fosse um pássaro – e voando! – quando os paroquianos saíam da missa de domingo.
Por vício de formação ou pelo que seja, nunca leio toda a obra dos autores que aprecio – como este; fica sempre algo por ler, a modo de pretexto para manter em aberto a curiosidade da descoberta do escritor. Coisas!
Um destes dias pus-me à estrada, na pista de outros escritos do Manuel de Lima. Vinte passos à frente, dou comigo no Almocreve das Petas, um respeitado e fiável blogue sobre livros – “para ledoras viçosas e cavalheiros imprudentes” é o lema do sítio. E pela mão do almocreve lá fui passando em revista os títulos conhecidos do “careca evidente”, com uma surpresa no fim. Eu explico: além de Um homem de barbas, Malaquias, ou a história de um homem barbaramente agredido, O Clube dos Antropófagos e A pata do pássaro desenhou uma nova paisagem; a fechar a prosa, uma obra que desconhecia, de todo, uma prometedora surpresa intitulada O Rebelde, uma autobiografia que levava por subtítulo obra póstuma de Manuel de Lima.
Encontrar o livro, publicado há uns cinco anos por uma editora obscura, passou a ser uma das prioridades da semana; não era fácil, mas fez-se. Fui-o buscar numa sexta-feira, a uma também obscura biblioteca pública na rua do Saco, a de São Lázaro, na parte de cima do Hospital de São José. Ainda no local, folheei o volume e passei os olhos pela contracapa – era um escrito autobiográfico, o que me agradou.
Já em casa, a coisa complicou-se – o Manuel de Lima da autobiografia era uma decepção, pois nada tinha a ver com o que eu já tinha lido: prosa sem fulgor, uma lúgubre história de vida, um desconsolo sem a chama, a ironia e o humor negro subversivo do “meu ficcionista”. Um tiro póstumo, era o que me dava o Lima.
Apesar das evidências, não me conformava. Voltei por isso ao caminho das pedras: refazer o trajecto, lateralizar a análise, confrontar datas, desconfiar de quem não erra – quase um dia nisto. No domingo de manhã, a paz voltava ao acampamento, se é que me entendem. Em definitivo, o autor de O Rebelde não é o Manuel de Lima, mas um seu homónimo com outros talentos e predicados. Não deu por isso o homem das petas, que foi no engodo do nome, fiou-se no que parecia, não leu o livro e fez asneira – pôs na internet uma mentira de que se assinalará em Junho o sexto aniversário. Uma nódoa no melhor pano, já se vê.
Deste lado, voltou ao que era a imagem do Lima, o autor de A reveladora ascensão de Nicolau, a tal história (de Um homem de barbas) que o Martinho, o dos livros, me garante como provável ter-se passado em São Vicente. Pode ser, meu amigo, pode ser.

José Miguel Teodoro

quinta-feira, 12 de março de 2015

Património



Dizem-me que esta imagem tem os dias contados. O último piso da casa à esquerda ameaça ruir e a Câmara vai demoli-la (a casa do Coronel) e as que estão encostadas a ela, a norte (onde moraram os Jerónimos, pais e irmãos da Menina Ilda) e a oeste (na Rua da Misericórdia), todas propriedade da Igreja.
No seu lugar, toda a lateral da Igreja da Misericórdia e toda a frente do adro da Igreja Matriz, vai nascer um parque de estacionamento. Esta tem sido uma prática corrente da Câmara, em Castelo Branco, e com ótimos resultados (adquire-se uma zona degradada, faz-se a demolição e usa-se o espaço para estacionamento).
Agora pretende-se aplicar o modelo à zona histórica da Vila. Fiquei de boca aberta. Não sou um fundamentalista do património, nem me arvoro em seu defensor oficial, mas:
- Vamos alterar definitivamente o coração de uma povoação que desde a fundação da nacionalidade tem a configuração atual. Há até um estudo que aponta para uma origem romana de São Vicente da Beira, pois a nossa praça, como centro geográfico, político, religioso, comercial e de convívio, e todo o traçado das ruas refletem o modelo romano de construção de cidades.
- Por outro lado, a recente requalificação da Praça e do espaço envolvente respeitou esse património urbanístico; tem-se tentado preservar esse património por toda a povoação; e a Rua da Misericórdia, que agora se quer alterar, é a artéria mais medieval da nossa terra (quase ninguém por lá passa, experimentem).
Cerca de 1970, um grupo de notáveis repensou a nossa praça e decidiu pela demolição do coreto, em mau espaço e a tirar espaço livre à praça, e a fonte de São João de Brito (cujo tanque vazava por todo o lado), construída menos de 30 anos antes, mas que se tornara o centro dos festejos do São João e ganhara grande simbolismo na nossa cultura local. Foi um deus nos acuda, com toda a gente a protestar e a atirar as culpas para o Pe. Branco, talvez por ser o que, na altura, tinha as costas mais largas. Ainda hoje há lamentos e discordâncias. Queremos criar mais um caso, para termos do que falar nas próximas décadas?
Tenho grande estima, pessoal e como cidadão, por todos os envolvidos neste processo: presidente da Câmara e vereadores, membros da Junta de Freguesia e toda a Comissão Paroquial. E tenho a certeza de que todos estão com as melhores intenções. Mas penso que se devia repensar a questão, nem que seja para depois concluir que a esmagadora maioria das pessoas quer um parque de estacionamento no centro da Vila, em vez de um património arquitetónico e histórico que “não serve para nada”. Embora tenha dúvidas sobre o direito de uma geração alterar o que dezenas e dezenas de gerações anteriores nos legaram, ao longo de tantos séculos.
Sei que falta estacionamento no centro da nossa terra, mas a tendência atual é a de tirar os carros dos centros urbanos e não metê-los lá. Lisboa é a nossa tragédia que confirma o que aqui defendo. Altos níveis de poluição e um trânsito que não flui, porque não há capacidade, nem discernimento, para parar os veículos que vêm de fora em grandes parques exteriores à cidade, levando depois as pessoas em transportes públicos. Isto já se faz em muitas cidades europeias.
Por outro lado, penso que São Vicente tem falta de espaços construídos, nomeadamente:
- Um centro paroquial que centralize a catequese, encontros religiosos e outras atividades da Igreja.
 - Um museu de arte sacra que centralize toda a arte religiosa das várias instituições, num espaço seguro, com condições adequadas de luz e humidade e com pessoal habilitado para o preservar e o explicar aos visitantes. Temos de assumir que o museu da Misericórdia falhou e que temos de atuar noutros moldes.
Qualquer destas hipóteses é válida, embora me incline para a segunda, pois sempre disse que a arte sacra é a nossa galinha dos ovos de ouro e porque a estamos a deixar degradar.
Claro que nem a Igreja, nem a Junta têm posses para tal. E sei que é mais fácil falar (neste caso, escrever) do que arranjar soluções, sem ter dinheiro. Mas vale a pena repensar tudo, nem que seja para depois concluir que queremos mesmo um parque de estacionamento. Mas então teremos de assumir a opção e deixar de encher a boca com o valor e a defesa do nosso património.

José Teodoro Prata