segunda-feira, 30 de maio de 2016

Fonte Velha

Altar dourado ao sol do infinito,
Robustecido pelo açoite
Flagelador do tempo,
É por milagre que, de dentro desse granito, 
Pedra constante, firme e dura,
Quer de dia, quer de noite,
E a todo e qualquer momento,
Brota água tão fresca e pura?!

Suave no inverno, fresco no estio,
Cristal líquido que ali vamos beber,
Caudal de inextinguível rio,
Que não se inventa,
Que mágico algum pode prever,
Que não pode imaginar-se,
O que és tu, ventre desta fonte?
Choro de moura encantada que te alimenta,
Mais forte que uma catarse,
Mais infindo que o horizonte?!

Ou és, por acaso, o pranto dos deuses,
Que corre do Olimpo, no firmamento,
Inesgotável e intemporal,
Elixir balsâmico que a dor alivia, 
Que à terra dás sustento, 
Que reconforta e que sacia,
A sede ao corpo e o âmago imortal?!

Se calhar és esse lamento!
Mas foste também lugar de muitos amores,
Ponto de encontros discretos,
Encruzilhada de desejos,
De promessas, futuros secretos,
Bons augúrios e ensejos,
Pelo crepúsculo, à noitinha;
Testemunha das risadas altas e claras
Das raparigas da vila que iam procurar-te
A água perlífera, límpida e fresquinha,
Saída das tuas pedras brutas, ignaras.

Obra da nossa gente, da nossa arte,
Velha fonte quinhentista,
Nos bancos que te ladeiam, os rapazes,
Procurando uma conquista,
Prometiam infinitos amores, sentidos,
Vidas a dois, lares e remansos,
Imáculos, idílicos - não tanto carnais ou mundanos!
Porém, as moças, ariscas, risos furtivos, 
Fugiam – pese embora inebriadas! - a tais avanços,
Muitas vezes temerosas da lisura de tais planos!

Largo térreo de séculos, alindado já a tardar,
- Pelos idos de sessenta –
Das bicas ao chafariz,
Onde os bois presos ao carro, fatigados e contraídos,
Ao peso de uma jeira - um dia inteiro a lavrar! –
Com a canga p’la cerviz,  
Vêm, sôfregos, beber, ronceiros e condoídos.

Átrio que, em tardes de sol, por desfastio,
Tanto convidava à bachica,
Em correria, ao desafio,
Com as roupas encharcadas,
Entre a mocidade irrequieta, louca,
- Momentâneas disputas e emoções! - 
Saias, calças, camisas, blusas ensopadas,
Rapazes e raparigas, na refrega, em êxtase - a voz rouca!
No fim, o afeto tornava aos estouvados corações!

Fonte velha que me precedeste
E, decerto, me hás de suceder,
Como já sobreviveste a tantos vicentinos!
- A vida é tão frágil como a tenra erva do jardim! -
Quem pode prevenir destinos?
E, embora eu não saiba o que irá acontecer,
Vós, pedras desta fonte, sereis sempre para mim, 
- Como para os que a ti se encostaram e beberam da tu’ água -
Quando já não vos puder ver,
Minha saudade, minha mágoa!  


Alcino dos Santos 

domingo, 29 de maio de 2016

Gente da nossa criação

Eu vivi na casa onde apanharam o Pistotira, antes do meu irmão Zé Maria lá morar. Na cozinha, havia um buraco na parede, ao lado do lume, que dava para a cozinha da tua tia Carlota. Quando precisávamos de alguma coisa, lume ou que uns tratassem dos filhos dos outros, era por lá que os dávamos. O buraco era pequeno, só lá cabia um bebé. A tua prima Celeste passou por lá muitas vezes, para a minha mulher tomar conta dela.
Assim me contou o senhor Luís da Tomásia, há anos, quando o entrevistei a propósito da prisão do Pistotira. É curiosa esta expressão Luís da Tomásia, que ouvi desde criança, tratando-se este Luís de um homem com uma personalidade forte, num tempo em que as mulheres ainda riscavam pouco.
Tenho refletido muito sobre esta expressão, por isso a demora. Ele é o Luís Rodrigues, também Luís Prata e ainda o Luís da Tomásia. Mas o que tinha ela para tamanho reconhecimento social? Acho que era um coração enorme, onde todos cabíamos.
A senhora Tomázia fazia parte do meu mundo de criança, prima da minha mãe por afinidade. Nunca fomos muito próximos, talvez por eu ser arredio, mas sentia-se um clima de carinho sempre que nos saudávamos.
Era ao alambique do Chão da Bica que nós da Tapada, a minha mãe e a minha tia Stela, íamos fazer a aguardente. Massa carregada em bacias, à cabeça, e depois longas horas noturnas de pouco trabalho e muita espera. A presença da senhora Tomásia era constante, nos intervalos dos seus afazeres domésticos. Às vezes aparecia-nos já noite dentro para uma conversa ou um conselho sobre a intensidade do fogo debaixo da caldeira e a temperatura da água no tanque.
As minhas irmãs eram muito amigas das filhas mais velhas dela, e praticamente da mesma idade. Num ano do final da minha infância, eu, a Eulália, o meu primo João e não sei se o Tó, fomos ajudar nos trabalhos outonais: vindima, apanha do feijão pequeno… Era um misto de trabalho e brincadeira, a de comer e ainda nos pagavam qualquer coisa. A senhora Tomásia recebia-nos na cozinha, a cada meio-dia. Lembro-me como se fosse hoje de um bacalhau com batatas e muito azeite. Ainda tenho o sabor na boca. Depois, à sobremesa, já na rua, a melancia que coubesse na barriga.
Nós com os olhos no infinito do universo, na esperança de uma ajuda dos santos e eles no meio de nós…


José Teodoro Prata

sexta-feira, 27 de maio de 2016

No choco




O choco da minha cocó já faz segunda-feira duas semanas. Depois, só falta uma semana.
Pôs nove ovos e chocou logo!
O macho anda baralhado, algo triste, sem saber bem o que fazer. 
Passa o tempo a olhar para dentro do púcaro, a ver se ela reage, mas nada.
Há dias levou-lhe até ao bico uma folha de couve, de uma distância de cerca de um metro. 
É bom ter estes animais que ainda conservam os instintos naturais.

José Teodoro Prata

Nota: Há novos comentários, na publicação anterior.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Os nossos professores

Com a Reforma de Rodrigo da Fonseca de 7 de Setembro de 1835, Portugal foi um dos primeiros países europeus a instituir a escolaridade obrigatória. Apesar disso, e porque a legislação nunca foi cumprida, a escolarização das populações permaneceu muito baixa, comparativamente ao que se passava no resto da Europa. Em 1900 cerca de 66% dos homens e 82% das mulheres não sabia ler nem escrever. Esta situação, que se manteve quase inalterada até meados do século vinte, era ainda mais grave nas zonas rurais, como é o caso da nossa terra.
Há tempos, a propósito duma pesquisa que nada tinha a ver com este tema, chamou-me a atenção o facto de na maioria dos registos de batismo de meados do século XIX (1860) constar a assinatura do padrinho da criança (em 76 batizados, apenas 21 não assinaram). Quanto às madrinhas, o número é bem menor: nos 76 registos consta a assinatura de apenas cinco, sendo que, pelos nomes, seriam quase todas da mesma família e pertenceriam a famílias ilustres da terra: D. Antónia Henriqueta Almeida de Brito, Maria Margarida Almeida de Brito, Maria Augusta de Brito Coelho Faria, Ana Balbina de Brito e Teodora Rita Xavier.
Durante a mesma pesquisa deparei com o nome de Manuel Marques Leite, professor do ensino primário. Manuel Marques Leite era casado com Clara Augusta e eram ambos naturais de Castelo Branco. Terão vivido por cá alguns anos, pelo menos entre 1860 e 1867, primeiro na rua Velha onde lhes nasceram três filhos, e depois na rua das Lajes, onde tiveram outra criança. Os padrinhos deste último filho foram dois irmãos mais velhos dos quais não encontrei o registo de batismo, talvez porque não tivessem nascido em S. Vicente (já nessa altura os professores teriam vidas errantes…).
É pouco provável que este Manuel Marques Leite fosse o único professor na terra, porque, mesmo que a escola fosse apenas para os rapazes, havia tantos nessa altura que um professor seria insuficiente. De qualquer forma a situação piorou nos anos seguintes.
Em 1880, dos oitenta e nove registos de batismo, só seis continuavam a ter a assinatura da madrinha. Quanto aos padrinhos, a situação era bem pior que vinte anos antes: cinquenta e três não sabiam assinar.
Em 1900 a situação continuava pouco animadora, mas os números eram mais equilibrados entre homens e mulheres: dos 99 registos de batismo, apenas 23 tinham a assinatura das madrinhas e 33 a dos padrinhos.
Estes números não podem ser lidos de forma simplista, mas são um indicador importante do estado de iliteracia na nossa terra, naqueles tempos.
Não encontrei referência a mais professores, mas deve ter havido outros depois de Manuel Marques Leite. Entre o final do século dezanove e o princípio do século vinte o Padre José Antunes, para além de padre, foi também professor de muitos rapazes durante aquele período. Devia ser pessoa de cultura vasta porque parece que, para além de ensinar a ler e escrever, ensinava também outras disciplinas aos alunos. Morreu em 1940 e está sepultado no nosso cemitério.
Deve ter havido outros antes deles, mas muitos já nos lembramos do professor Couto e da mulher. Ele era professor dos rapazes e ela das raparigas. Sobre este período, moí o juízo a uma das minhas tias para me contar porque é que não tinha andado na escola. A explicação dela:
 «Sabes, isto d’agente querer aprender é uma coisa que já nasce connosco. A tua mãe era muito inteligente, que nunca foi à escola, mas sabia ajuntar as letras e assinar o nome. Eu ainda lá andei aquase um ano, mas era burra e não aprendi uma letra. A professora também não ajudava, que mal entrava na sala, assentava-se na cadeira, amouchava a cabeça em cima da mesa e começava a dormir. Não sei lá o que é que ela andava a fazer de noite… Mandava era a filha do doutor Alves, a mai velha, fazer uns riscos na pedra de cada uma e dizia para a gente copiarmos. Eu sabia lá agora fazer aqueles riscos! De modos que quando chegou a altura, fui mas é a regar e a sachar o milho e os feijões, que era aquilo que nos enchia a barriga, e nunca mais pus os pés na escola».
Depois destes, vieram as nossas professoras: a Dona Susana, a Dona Teresinha, a Dona Natália, a Dona Nazaré, a Dona Maria do Carmo, e outras que já não são do meu tempo, mas a quem, cada um de nós, deve um pouco do que é hoje.
Penso que neste exercício de memória seria injusto esquecer o Padre Branco. Para além de ser o responsável maior pela implementação da Telescola (um marco histórico na democratização do ensino em Portugal) na nossa terra, foi também um professor empenhado e competente para muitos dos alunos que a frequentaram. Incluo-me nesse número.


M. L. Ferreira

domingo, 22 de maio de 2016

Festa na Orada


As encostas da Gardunha estão pintadas de amarelo. 
A serra vestiu-se da cor das giestas para a festa da Senhora.



Os bombos VICENTINOS são um caso muito sério de sucesso!


Ia a escrever que a Senhora está de jaja nova, mas talvez não seja deste ano.
Em todo o caso, está linda!

 

O Rancho VICENTINO foi o sucesso do costume.
Um acumular de sabedoria e experiência.


As autoridades autárquicas, locais e concelhias, estiveram presentes
e inauguraram as instalações de apoio à ermida.
O nosso bem-haja!

Nota: Cheguei tarde e por isso não tenho imagens da parte religiosa. Agradeço a quem puder completar esta informação visual.

José Teodoro Prata

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Andava o deus Pã apascentando seus rebanhos na campanha de Trans Serre, tocando com sua flauta mágica músicas campestres. Impulsivo, lascivo, sua cabeça cornuda, barbicha hirsuta e patas de bode percorria montes e vales. À medida que guardava o seu rebanho, cantava e tocava. O Eco imitava-o, ele ficava danado e continuava a tocar músicas simples do campo.
De vez em quando, corria em perseguição de uma ninfa ou pastora, pudera; lascivo e folgazão como ele era!
Algumas ninfas não iam na sua conversa, nem se deixavam cativar pelas músicas campestres.
Foi o caso da Siringe que se transformou numa cana por não ter cedido ao seu apetite sexual. Aproveitou-a e fez com ela uma flauta que o passou a acompanhar para todo o lado, desta maneira tinha sempre a sua amada nos lábios.
Certo dia, tendo-se afastado um pouco mais das pastagens habituais “embora andasse por todo o lado”, foi dar a uma pequena aldeia moura, teve sede, dirigiu-se à Fonte da Portela para se saciar.
Quando chegou, estava enchendo sua bilha uma linda moura; faces rosadas, olhos pretos brilhantes como o sol, sorriso arrebatador.
Lascivo, luxurioso como sempre foi, não se conteve e agarrou a linda moura. Ela esbracejou, gritou, por fim conseguiu libertar-se das manápulas de Pã e fugiu em direcção à sua cabana.
Com seus pés de cabra, Pã lançou-se numa correria desenfreada para apanhar a linda moça.
Já não estava muito longe de casa, mas, ao olhar para trás, não teve dúvida nenhuma, estava prestes a ser agarrada. Gritou com todas as forças, mas ninguém apareceu. A solução foi transformar-se numa cobra que por sua vez se metamorfoseou.
Desde essa altura a moura continua enfeitiçada, transformada numa pedra à espera que alguém a desencante.
Cuidado, ela é enganadora. Pela manhã mostra melhor a sua bocarra, nem todos os locais em seu redor servem para a admirar. É preciso saber escolher o sítio para que se deixe ver.
Quem sabe se numa manhã de São João algum príncipe afagando o penedo não a desencante!


J.M.S

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Mineiro, nome José

Era Maio. Seguíamos em grupo, meia centena de pessoas silenciosas e tristes. De vez em quando o cortejo detinha-se: subiam da vereda algumas preces encomendadas pelo cura. Nem um farrapo de nuvem no céu. Nem asa de vento a agitar o horizonte.

Nas terras lavradas, junto ao cemitério, comecei o ver as lavandeiras, saltando de leira em leira. Com elas vieram as rolas e uma que outra cotovia no pinhal em redor. Senti, então, como quem pode sentir distintamente, que o canto dos pássaros crescia para fazer coro, a última vez, com o teu assobio: como naqueles dias em que, na galeria da Mina, com o fôlego derradeiro dos teus pulmões cansados avisavas os companheiros da chegada do capataz.

«Não somos patrões, somos trabalhadores», respondias ao chefe, quando te repreendia por não impores a ordem dele aos companheiros de que te nomeara vigilante. O pico atirado longe, violentamente marcou a tua recusa definitiva, devolveu-te à condição de mineiro, simples mineiro, que sempre foste.

Mas tinhas razão. Não somos patrões, somos trabalhadores. E este livro pretende dizer-te que a voz dos patrões na Panasqueira é hoje menos arrogante. Quero também informar-te  - talvez as novas cheguem a esse mundo distorcidas - que um ano depois daquele Maio, Abril libertou a voz e o gesto dos teus companheiros na Mina.

Fiz com eles esta viagem. É para eles este livro e para ti também, mineiro José, atalhado pela silicose a meio do caminho, antes desse Abril nascer. Fossem estas páginas tão vivas como as papoilas, que juntos colhíamos nas estevas agrestes das nossas terras altas, e eu desfolhá-las-ia, uma a uma, sobre a campa lá em Bogas, mineiro meu pai.

Lisboa, Verão de 78.
DANIEL REIS

In A GUERRA DA MINA e os mineiros da Panasqueira, Daniel Reis e Fernando Paulouro Neves, Regra do Jogo, Edições, 1799

José Teodoro Prata