sábado, 16 de julho de 2016

No pinhal

No início de 1964, fui contratado para ir trabalhar para um pinhal, na zona de Casegas, de um senhor chamado Bernardo, que tinha doze filhos. Na hora da refeição, até parecia uma boda, tal era o tamanho da mesa. Um dia jantei lá e a comida era batata cozida com farinheira. Todos comiam a pele da farinheira, mas eu não fui capaz. Para não dar parte de fraco, meti a pele no bolso.
            No fim do jantar, o patrão falou comigo para ir à Barroca Grande carregar uma carrada de pranchas. Fiquei todo feliz e contente por ir andar de camioneta. Carregámos o material e depois o filho do patrão levou-me até uma localidade chamada Cebolas, que hoje é São Jorge da Beira. Aqui chegados, disse-me que regressasse a pé, porque ele tinha de ir para o Fundão e não ficava em caminho.
            Como não conhecia nada para aqueles lados, fiquei muito preocupado e com muito receio de fazer aquele percurso de noite. Ele disse-me para seguir em frente, passar o cruzamento da Panasqueira e depois o cruzamento da Pampilhosa em direção a Cambões. E depois sempre em frente, até era perto. Ao todo, mais ou menos catorze quilómetros.
          Meti-me ao caminho, sempre a rezar para que Deus me ajudasse a fazer aquele percurso. Com muita dificuldade, consegui chegar ao destino, por volta das duas horas da manhã. Como não havia luz, entrei de gatas no palheiro, para me deitar no meio da palha, porque mantas ou outra coisa para me cobrir era o que não havia. Reparei que estava lá outro homem a dormir, um carvoeiro que andava a fazer carvão de torga nas florestas do patrão. Como estava muito frio, o homem foi simpático e disse-me para eu me encostar a ele, para me aquecer. Mas como tive medo, logo que vi que ele estava a dormir, pus-me a caminho do pinhal, porque era lá que tinha a merenda e a fome já era muita.
           Alguns dias depois, vi uma rapariga que andava guardar as cabras e me disse que tinha uma telefonia em casa, o que para mim era um milagre. Pedi-lhe se podia ir lá ouvir um bocadinho a telefonia. Ela disse que sim. Mas havia um problema. No caminho para casa dela, havia um ribeiro que levava muita água e não o conseguia atravessar. Pensei então em fazer um pontão e lá consegui ir ouvir a telefonia a casa da rapariga e passar lá o serão. Já noite dentro, tive medo de regressar e cair no ribeiro.  A rapariga disse-me que podia ir dormir no palheiro dos bois e deu-me uma manta para me agasalhar. Só que o frio e a fome eram tantos que resolvi voltar, mas, quando cheguei ao ribeiro, o pontão tinha abalado numa enxurrada. Lá tive de voltar novamente para o meio da palha dos bois. Logo de manhã, tive de contornar o ribeiro, andando cerca de quatro ou cinco quilómetros. Voltas e voltas que dei, até chegar onde tinha as minhas coisas.
          Passados uns dias, recebi um telegrama a comunicar-me para ir trabalhar para Lisboa. Fiquei muito feliz e fui logo falar com o patrão, para me pagar a semana de trabalho que tinha feito, o que me permitiu receber 240$00, ou seja, 40$00 por dia.
          Quando o patrão me pagou, estava lá um cigano que andava a vender machos ou mulas. Viu-me receber aquele dinheiro todo e disse-me que tinha de lhe pagar uma ou duas cervejas e que à noite íamos dormir juntos. Fiquei muito preocupado, porque o cigano até me chegou a ameaçar que pagava a bem ou a mal. Percebi logo que ele queria era roubar-me o dinheiro e então acabei por me esconder numa garagem. Fiquei lá sentado, sem cama e sem sono. Como não tinha relógio, ouvia o sino da igreja todas as horas, desde as dez da noite às três da madrugada. Como estava bastante frio, resolvi por-me a caminho, com os meus pertences que eram uma manta, o machado, a panela de ferro, batatas, feijão, garfo, azeite, sal e outras coisas. Ao fim de duas horas de caminhada, cheguei à Barroca Grande, onde apanhei a camioneta até ao cruzamento do Castelejo e depois a que vinha do Fundão para Castelo Branco.  Cheguei a São Vicente da Beira às sete da manhã, são e salvo e com o meu dinheirinho.
            Segui então para Lisboa, no dia seguinte, que era véspera de Carnaval.


Relato de Joaquim Teodoro dos Santos, em pequena autobiografia, edição de autor, publicada pelo GEGA, em Janeiro de 2015.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Somos todos primos

Para quem é de fora, é difícil acreditar quando dizemos que, cá na terra, somos todos primos. Para nós, que crescemos com esta verdade, nem nos passa pela cabeça pô-la em causa.
Esta é a minha contribuição para provar que assim é. Recuei apenas à minha trisavó materna, Maria Castanheira, e, pelo número dos descendentes do seu segundo casamento até à minha geração, é fácil concluir que estaremos quase todos unidos por laços familiares mais ou menos próximos.    

Maria Castanheira nasceu no Souto da Casa no ano de 1844, filha de António Castanheira e Rosaria Maria da Costa Domingues.
Casou em 1865, com Lucas Martins, exposto na roda de Alpedrinha e dado a criar no Souto da Casa. Ela tinha vinte e um anos e ele quarenta e quatro.
Deviam ser boa gente e uma mulher e homem d’ armas, que pegaram na trouxa e vieram morar para S. Vicente. Viveram uns anos na Rua Nicolau Veloso, ela doméstica e ele criado, e aí lhes nasceram as duas primeiras filhas:

1 - Mariana (1865) que herdou o nome da madrinha, Mariana Robles Monteiro (é provável que o pai fosse criado daquela família). Casou com Joaquim António Craveiro e tiveram oito (?) filhos:

                        Francisco (1885)
                        Auta (?) (1887)
                        Álvaro (1888)
                        Patrocínia (1890)
                        António (1893)
                        Joaquim (1900)
                        Maria de Lurdes (1904)
                        Maria da Conceição (1905)

2 - Maria (1887) que terá morrido ainda criança.

Maria Castanheira e Lucas Martins mudaram-se para a Rua da Cruz e foi aí que lhes nasceu o terceiro filho:

3 - António (1872/1951) que casou no Souto da Casa com Josefa dos Santos.

(Deste ramo da família de Maria Castanheira descenderão os irmãos Craveiro, pelo que ficam aqui com muito trabalho para fazer...)

Maria Castanheira enviuvou de Lucas Martins em 1880 e casou com José Carvalho em Maio de 1881. José Carvalho, natural de Freixedo, Santa Comba Dão, tinha cinquenta anos e era também viúvo. Tiveram uma filha:

Maria da Conceição Carvalho, mais conhecida por Maria Carvalha (1882/1954). Foi uma das minhas bisavós e é a pessoa da família de quem tenho memórias mais remotas. Lembro-me dela na casa da rua Velha e a caminho da Oles, de saias rabudas e sempre de cesta enfiada no braço. Diz que era para apanhar as bostas com que estrumava a horta.
Casou aos dezassete anos com José Fernandes Trindade, de vinte e cinco, solteiro, cultivador, e tiveram cinco filhos:

Maria Carvalha (?) com alguns dos filhos e netos

1 - Maria do Rosário Carvalho (1901); diz que era parecida com a mãe no corpo, mas sobretudo no génio lutador e no amor pela sua Oles, onde via o dia a nascer e donde regressava já noite escura. No verão tinha a casa sempre cheia de netos, filhos e noras que todos os anos vinham passar férias, mas sobretudo ajudar nas hortas e na vindima.

Casou com José Fernandes Candeias, também ele um bom homem, trabalhador e amigo da família. Contam que um verão, só de imaginar que os filhos podiam estar a comer pão seco, passou o tempo todo a olhar para uma chouriça que a mulher lhe tinha posto na merenda que levou para o quinto, sem coragem de a comer. Quando voltou trazia-a inteira e comeram-na todos à ceia, uma talhadinha para cada um.

Maria do Rosário com o marido, no dia em que festejaram as Bodas de Ouro

Maria do Rosário e José Candeias tiveram sete filhos:

            João de Deus - Casou em primeiras núpcias com Deolinda Torres, com quem teve dois filhos: Teresa Candeias e Luís Candeias. Depois de enviuvar casou com Edite Pinto. Deste casamento não teve filhos. 

            Joaquim Fernandes Candeias - Casou com Ilda Saraiva, com quem teve três filhas: Luísa Maria Saraiva Fernandes Candeias (Alves) ;  Teresa Maria Saraiva Candeias (Rodrigues)  e Anabela Saraiva Candeias (de Assunção);
           
            Guilhermino Candeias - Casou com Maria de Jesus Candeias e tiveram tês filhos: João Manuel dos Santos Candeias, José Carlos dos Santos Candeias e Ana Paula dos Santos Candeias;
           
            Luís Candeias - Casou com Maria da Conceição e tiveram duas filhas; Filomena Candeias e Maria José Candeias;

            António Maria Candeias - Casou com Maria Augusta Vide  e tiveram dois filhos: Nuno Filipe Vide  Candeias e Maria Margarida Vide Candeias;

            Francisco Candeias - Casou com Lúcia Moura e tiveram dois filhos: Paulo José Moura Candeias e Carla Alexandra Moura Candeias;

            Maria José Candeias - Casou com José Afonso Reis e tiveram dois filhos. Ana Cristina Candeias Reis e Bruno Candeias Reis.
           
2 - Guilhermino Fernandes (1902) Um lindo homem, com um coração que não lhe cabia no peito. Quem queria, era vê-lo de charrua na mão ou à frente do carro de bois, sempre dum lado para o outro. Mas aos domingos, depois da missa, passava as tardes na sociedade com os amigos, e quando chegava a casa, noite alta e a cantar, tinha que ser algum dos filhos ou dos netos a descalçar-lhe as botas. A tocar os pratos, na banda, ninguém o igualava, sobretudo na alegria e gosto que tinha pela música.
Casou com Maria José dos Santos, uma santa mulher. Ouvi muitas vezes dizer que no tempo da guerra ajudou a dar de comer a muita gente; e no verão não era só o homem e os filhos que espreitavam a ver se já lá vinha ao fundo do caminho com o cesto da merenda à cabeça: havia sempre uma malga de sopa ou um prato de batatas ou feijões a mais para alguém que andasse ali por perto com fome. Para além dos muitos filhos que teve, ajudou também a criar alguns dos mais de trinta netos.

Guilhermino com o filho Joaquim

Guilhermino e Maria José tiveram nove filhos:

            Joaquim Fernandes - Casou com Maria Angelina e tiveram cinco filhos: Maria da Luz Fernandes, Maria José Fernandes, João Fernandes, José Manuel Fernandes e Maria do Carmo Fernandes;

            Maria da Luz dos Santos - Casou com Luís Moreira e tiveram quatro filhos: Maria Libânia S. Moreira, António S. Moreira, José Manuel S. Moreira e Maria José da Luz Moreira;

            Albertino Fernandes - Casou com Maria Ascensão Moreira e tiveram cinco filhos: José M. Fernandes, Luís M. Fernandes, Guilhermino M. Fernandes, Maria da Nazaré M. Fernandes Maria de Fátima M. Fernandes

            Maria Esmeralda Fernandes - Casou com Luís pinheiro e tiveram quatro filhos: Maria Manuela F. Pinheiro, José F. Pinheiro, Maria de Fátima F. Pinheiro e Cristina F. Pinheiro;

            Maria Libânia Fernandes (morreu ainda jovem);

            Maria Patrocínia Fernandes - Casou com António Tomé; não tiveram filhos;
            
Maria José Fernandes - Casou com João Jacinto e tiveram cinco filhos: António F. Jacinto, José F. Jacinto, Maria de Fátima F. Jacinto, Maia Teresa F. Jacinto e Manuel F. Jacinto;

            Maria Leonor Fernandes - Casou com João Caio e tiveram seis filhos: João F. Caio, José F. Caio, Maria de Fátima F. Caio, Luís F. Caio e Cristina F. Caio;

            Maria Adelaide Fernandes - Casou com Jaime Silva e tiveram três filhos: Isabel F. Silva, Pedro F. Silva e Cláudia F. Silva.

3 - Benevides Fernandes (1904) Um excelente homem, trabalhador e amigo de ajudar quem precisava. Dado à paródia, tinha sempre uma graça para tudo.
Em novo, ainda solteiro, trabalhou na agricultura e depois na construção dos caminhos de ferro. Casou com Maria Sabina Ramalho e abalaram para Lisboa onde a fama de artista como jardineiro o levou a trabalhar na casa de muita gente influente da sociedade lisboeta daquele tempo.

Benevides Fernandes

Benevides e Sabina tiveram um filho:

            João Fernandes - Casou com   Maria da Conceição Azevedo  e   tiveram um filho: João Fernandes.

4 - Maria de Jesus - Mulher meiga, generosa e sempre de sorriso nos lábio, mas também uma mulher de armas. Contam que numa noite de invernia lhe bateu à porta um homem a pedir alguma coisa de comer. Depois de lhe ter aconchegado a barriga e aquecido a roupa ensopada, reparou-lhe na falta de dedos numa das mãos; viu logo que era o Pistotira, que por aqueles tempos era o terror das gentes da Vila e arredores. Mandou um dos filhos, ainda criança, a chamar o pai à taberna do Arbotes, e foi assim que prenderam o malfeitor. Casou com José Maria Prata, primo direito, e tiveram seis filhos:

            António  Miguel Rodrigues - Casou com Maria Manuela Duarte e tiveram um filho-João Manuel  Duarte Rodrigues;

            João Maria Rodrigues - Casou com Maria Leonor  Duarte e tiveram dois filhos: Maria Fernanda Duarte Rodrigues e João Francisco Duarte Rodrigues;

            Maria Fernanda Rodrigues - Casou com Arnaldo Coutinho e tiveram duas filhas: Ana Cristina Rodrigues Coutinho e Carla Alexandra Rodrigues Coutinho;

            José Carvalho Prata – Não casou nem teve filhos


            Maria de Jesus  Prata - Casou com Miguel Hipólito Jerónimo e tiveram duas filhas: Carla Prata Jerónimo e Ana Margarida Prata Jerónimo;

            Miguel Carvalho Prata – Casou com Maria José Lourenço Prata e tiveram um filho: Luís Miguel Lourenço Prata.

5 - Maria dos Anjos (1907) - uma das pessoas mais generosas que conheci. Abalou cedo a servir para Lisboa, e por lá casou e ficou a viver. Na casa dela, pequenina, a porta estava sempre aberta e havia sempre lugar para mais uma cama ou um prato à mesa para quem precisasse. Raros foram os irmãos ou sobrinhos que não lhe tivessem batido à porta. E contava histórias como ninguém. Foi com ela que aprendi a Formiga Rabiga e a Cabra Cabrez.
Casou com Francisco Martins que com ela partilhava a generosidade e o amor à terra que adotou como sua. Nos últimos anos de vida já pouco cá vinham, mas, sempre que encontravam portador, mandavam visitas para toda a gente. Tiveram duas filhas:

            Liliana Martins - Casou com José  Rodrigues e tiveram dois filhos: José Rodrigues  e António Rodrigues; 

        Maria José Martins - Casou com António Pinheiro e tiveram dois filhos: Joana Martins Pinheiro e Gonçalo Marins Pinheiro.
           
Maria da Conceição Carvalho enviuvou de José Fernandes e casou com Joaquim Marques, do Louriçal do Campo, em 1914. Tiveram três filhos:

       Leonor de Jesus -  Casou com José Ramalho e tiveram um filho: João Ramalho – Teve dois filhos.

           Ana Marques - Casou com José (?) e tiveram  um filho: Vítor Carvalho que não teve filhos.

           João Marques – Lembro-me de o ver a subir a rua Nicolau Veloso, ao fim do dia, com as ferramentas de resineiro às costas. Lembro-me também que vivia em frente do Convento, numa casa que era o meu limite no avanço pelo Cimo de Vila. À janela estava sempre uma das filhas, com olhar estranho, os cabelos que nem palha, a balançar-se. O medo que aquilo me metia, a mim e às outras cachopitas da minha idade. Mesmo assim subíamos muitas vezes a rua e púnhamo-nos cá de baixo a fazer-lhe caretas. Ela ficava ainda mais agitada e arrepelava os cabelos, e nós fugíamos pela rua abaixo.
Ao longo da vida lembrei-me muitas vezes desta e doutras cenas, motivadas pelo medo, pela ignorância e por alguma crueldade própria da infância. Não lhes serviu de nada, mas muitas vezes dei comigo a abraçar os meus alunos e a pensar no mal que fiz a esta minha prima, ao Chalim, à Dita e a outras pessoas da nossa terra que nasceram diferentes, num tempo em que a deficiência era ainda entendida como qualquer coisa de demoníaco, da qual tínhamos que nos proteger. 
João Marques casou com Maria do Rosário e tiveram quatro filhos: Maria do Rosário Marques, Luís Marques, Isabel Marques e Maria da Luz Marques.
João Marques enviuvou e voltou a casar com Maria da Luz. Tiveram quatro filhos: Maria João Santos, Paula Marques, Maria dos Anjos Marques e Nuno Marques.

Maria Castanheira enviuvou de José Carvalho e casou com António Prata em 1884 (Este ramo da família de Maria Castanheira está referido em Prata 2 – Os avós mais novos). Contam que no dia do casamento, durante a troca de alianças, ela se terá atrapalhado por não saber em que dedo havia de a enfiar. Depois, para se desculpar, terá dito: «Também não é todos os dias que uma pessoa se casa…», ela que se tinha casado três vezes! O mais provável é nenhum dos noivos anteriores lhe ter oferecido uma aliança e ter usado uma emprestada no dia do casamento, como era vulgar naquele tempo.
Para além dos muitos filhos que teve, Maria Castanheira foi parteira e ajudou a nascer muitas crianças. Foi também ela que acareou e criou alguns dos meninos expostos na roda da Vila, ao cimo da rua da Cruz, onde morava.
Mulher de vida cheia e coração grande, terá sido dela que muitos dos filhos e netos herdaram as qualidades de que tantos de nós, seus descendentes, pudemos beneficiar.  

Nota: Esta pesquisa está em aberto, aguardando a contribuição de quem possa ajudar a corrigir alguma informação que não esteja correta, ou a acrescentar dados e documentos a que complementem. 

M. L. Ferreira

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Naturezas


O inseto era muito maior, mas, enquanto fui e voltei, ele partiu e chegou este.


Uma espécie de insetos fez ninho (casulo) numa caixa de persina.


Cocós: o resto da história.
O macho cuidou da fêmea, durante o choco, e dos primeiros filhos, ensinando-os a comer.
Depois, a cocó assumiu a educação dos filhos e ele entrou em depressão, 
sem saber o seu lugar na família.
Mas depressa recuperou e voltou a ser o machão de sempre: canta sem parar e pica nos filhos, arrogando-se no direito de ser o primeiro a comer.
Entretanto, a cocó recuperou as penas.
Durante o choco, esteve numa quase hibernação
e só uma semana depois é que as penas eclodiram.
Está toda bonita, já não parece o ET!

José Teodoro Prata

domingo, 10 de julho de 2016

A Justiça: sanções e controlo social

Dispõe a comunidade (Partida) de várias sanções sociais que influenciam e controlam o comportamento dos seus membros.
Há uma escala de valores socialmente aceite que cada indivíduo procura respeitar. Sempre que o não faz, a comunidade reage por diversos modos, exercendo uma censura por vezes bastante eficaz.
Um dos meios de que a comunidade se serve é a negação da salvação. Esta espécie de sanção só é, porém, praticada pela generalidade dos habitantes, para uma pessoa cuja reputação tenha descido muito baixo no conceito geral. É que o seu uso repugna a muitas pessoas que entendem que não devem negá-la nem aos próprios inimigos, desde que estes correspondam.
Contudo, ao nível de famílias ou de grupos, ela é algumas vezes usada e não há dúvidas de que exerce uma certa pressão sobre as pessoas visadas. Estas são constantemente obrigadas a uma reflexão dos motivos que a determinam e não raro tendem a eliminá-los.
Outra espécie de sanção é a que consiste na atribuição de alcunhas, traduzindo o comportamento vulgar de certos indivíduos ou até por motivo de uma única acção menos conforme com os padrões socialmente aceites.
«Aqui, como em todas as povoações da Beira Baixa, é corrente designarem-se as pessoas pelas alcunhas por que são conhecidas» - Dias, Jaime Lopes; «Etnografia da Beira Baixa», Vol. III, Lisboa, 1948.
Nem sempre, porém, as alcunhas são motivadas por comportamentos censuráveis. Por vezes derivam até do exercício de uma certa profissão e são aceites pacificamente pelos alcunhados. Mas geralmente representam uma crítica social. Não são chamadas directamente às pessoas a quem são atribuídas, senão em caso de desentendimento, mas as pessoas, sabedoras da alcunha por que são conhecidas, procuram corrigir o seu comportamento ou não voltar a praticar a acção que lhe deu origem.
(…)
Também o choro do entrudo representa uma sanção social «Não obstante estarem em declínio os folguedos do Carnaval, ainda hoje, na maioria dos povos do nosso distrito, noite alta, nos três dias consagrados à folia, continua a chorar-se o Entrudo… É uma sátira alegre que por vezes torna públicos acontecimentos íntimos, desconhecidos de muitos moradores» - Dias, Jaime Lopes; «Etnografia da Beira Baixa», Vol. I, Lisboa, 1926.
Assim acontece de facto na Partida e não apenas nos três dias consagrados à folia, mas durante uma semana ou mesmo mais, antes do Carnaval.
Ao longo do ano, vão os rapazes tomando nota dos comportamentos mais invulgares, para nos dias que antecedem o Carnaval os irem referir e comentar, durante a noite, às portas dos referidos moradores. Certos comportamentos ou acções mais íntimas é por este meio que chegam ao conhecimento público. Se as pessoas visadas reagem ou tentam, por qualquer modo, afugentar os «entrudos», estes voltam uma, duas e mais vezes a importuná-los.
           
Retirado de «PARTIDA  -  COMUNIDADE DA ZONA DO PINHAL NA BEIRA BAIXA», de Luís Leitão -  Composto e impresso nas Oficinas Gráficas do Jornal do Fundão, 1991.


M. L. Ferreira

quinta-feira, 7 de julho de 2016

O Homem

As características físicas dos habitantes da Partida são semelhantes às da generalidade dos portugueses, sem qualquer particularidade digna de registo.
Quanto à sua atitude mental é difícil reduzi-la a uma fórmula única. Orlando Ribeiro no «Guia de Portugal», III Volume, «Beira Baixa», afirma que o temperamento dos habitantes é por toda a parte afável, confiável e acolhedor. Por longas caminhadas ao sol ardente, pode o viajante entrar às casas, beber água do asado e quedar-se à fresca, no paleio com o lavrador que descansa do jantar ou a moça ou mulher sentada ao tear. Se não comeu, repartem com ele de boa vontade, e se no caminho topa com um homem ou mulher trazendo cesto de fruta logo o põem no chão e, com simplicidade e nobreza, oferecem do que levam. O camponês da Arraia ou do Campo, ou até o pequeno lavrador que arrenda coutos e semeia folhas de trigo, conserva o essencial destas virtudes antigas. Onde, porém, elas se deparam na maior pureza é nos charnecos e ratinhos das pobres terras de xisto, gente de proverbial honradez, que não mente, que não toca no molho de lenha ajuntado por outro à beira do caminho solitário, que ousa deixar a chave da adega ou do celeiro escondida num buraco da porta a que todos conhecem o sítio».
 A franqueza parece ser de facto uma característica da gente da Partida, que é expansiva e aprecia sobremaneira a convivência social.
Os homens, sempre que podem, juntam-se nas tabernas, onde conversam e bebem, juntando-se em «sociedades» de ocasião. É criticado um homem que entre numa taberna e beba só. O normal é juntarem-se vários, havendo o hábito de cada um pagar pelo menos uma «rodada», isto é, um copo de bebida para cada um dos que fazem parte da «sociedade». É até talvez este o motivo por que alguns homens bebem frequentemente demais: integrar-se numa «sociedade» grande é o primeiro passo para se beber em excesso.
A esta sociabilidade parece associar-se, contudo, uma certa independência que se manifesta em certos modos de comportamentos habituais e ocasionais. Assim, por exemplo, não há notícia de alguém da Partida ter feito vida de mendigo. As poucas pessoas que têm tido necessidade de viver da caridade pública, são espontaneamente auxiliadas pelos vizinhos da terra, de modo a não terem que mendigar aqui e muito menos noutras terras.
Um acontecimento revelador da atitude mental que acabamos de referir verificou-se há pouco tempo, quando o Reverendo Padre Manuel de Oliveira Campos que aqui esteve a residir durante alguns anos, foi transferido para outra paróquia e a Partida ficou novamente entregue ao pároco da freguesia. Como protesto da transferência daquele sacerdote, que foi sentida como um recuo no processo de emancipação em relação à sede de freguesia, a população da Partida, em massa, recusou a assistência religiosa que o pároco quis prestar-lhe, não assistindo uma única pessoa às missas que ele aqui veio celebrar aos domingos, durante alguns meses, e pedindo a assistência de sacerdotes de outras freguesias para casamentos, enterros, baptizados, etc. Houve até enterros sem a assistência dum padre, o que representa um enorme sacrifício para os familiares dos falecidos. Esta espécie de greve religiosa manteve-se durante mais de dois anos e só terminou quando aqui ficou colocado outro sacerdote, que ainda cá se encontra.
Por outro lado desdenha-se dos habitantes das aldeias vizinhas, havendo alcunhas a alusões zombeteiras para quase todos eles: os de S. Vicente são «piolhosos»; os dos Pereiros são «quadrasanhos»; os da Paradanta é «onde a fome se canta»; Alcains é a «terra dos cães»; diz-se «se vais ao Castelejo vens de lá andarejo», «se vais ao Souto da Casa , partem-te lá uma asa»; «se vais à Enxabarda põem-te lá uma albarda»; etc.
Sobretudo em relação aos habitantes da sede de freguesia, é manifesto o desdém com que se lhe referem que é, aliás, comum a outras terras da região. «Cães da Vila, chamam os do Louriçal do Campo aos de S. Vicente da Beira» (Dias, Jaime Lopes - «Etnografia da Beira» Vol. V, Lisboa, 1929, p. 192). Este sentimento da generalidade dos habitantes da região para com os de S. Vicente da Beira é muito antigo, pois vem do tempo em que esta aldeia era sede de concelho, que foi extinto nos fins do século passado, precisamente devido a um levantamento geral da população das anexas e freguesias da sua jurisdição, que convergiram para a vila num dia e hora previamente combinada e queimaram todos os papéis da Repartição da Fazenda. Já neste levantamento a Partida desempenhou um papel muito activo.
Embora não seja talvez tão rígida como em outras comunidades rurais, também aqui se verifica uma divisão sexual do trabalho.  Cada sexo tem os seus trabalhos tradicionais. Assim, por exemplo, o homem lavra, cava, roça mato, colhe azeitona, poda oliveiras e outras árvores, mata e abre o porco, etc. e a mulher executa os vários serviços domésticos e algumas tarefas agrícolas mais leves, tais como sachar, regar, plantar e semear hortaliças, etc. (…) A criação de porcos à pia é também uma tarefa das mulheres, que ainda executa todas as operações de fabrico do enchido e lava das tripas. O homem mata, abre e salga os porcos.
A mulher da Partida não lavra. Também não entra numa taberna para beber e, se alguma vez tem de lá ir chamar o marido, não se detém (…).
Ao contrário do que poderia esperar-se dum certo sentimento de superioridade da população da Partida, a integração de elementos estranhos, por motivo de casamento ou outro, é geralmente fácil. Em pouco tempo estes elementos passam a ser tratados como se fossem naturais daqui, não sendo alvo de quaisquer atitudes segregacionistas.
A íntima relação que existe entre as actividades agrícolas a que se dedicam e o ritmo da natureza, obriga os habitantes da Partida a dedicarem uma atenção especial ao tempo. Se bem que sejam conhecidas e muitas vezes mencionadas as estações do ano, também é frequente a designação dum determinado período do ano pelo nome dum Santo que nele se venere ou festa que se celebre, como é o caso do «S. Miguel» que designa a primeira metade do Outono. Outras vezes é associada a época do ano com os principais trabalhos durante ela realizados, dizendo-se no «tempo das sementeiras, «no tempo das malhas», etc.
Os fenómenos meteorológicos, sobretudo, são alvo de uma particular atenção. As suas causas não são geralmente conhecidas, como é óbvio, mas as condições em que ocorrem encontram-se muito bem catalogadas, como se verifica até pelos ditados populares que pudemos recolher sobre o assunto:

«Pastor, pastorão,
Nem de Inverno nem de Verão,
Nunca se larga o gavão (capote com capuz e mangas)»;

«Geada na lama, água na cama»;

«Circo na lua, água na rua»;

«Janeiro quente traz o diabo no ventre»;

«Manhã de nevoeiro, ou muita água ou bom solheiro»;

«Entrudo borralhudo, Páscoa em casa, Natal na praça»;

«São Miguel erveiro, guarda o palheiro»;

«Em Abril ainda a velha queimou o carro e o carril, e o maior bocado ainda o deixou para o mês de Maio»;

«Se a candieirola chora (2 de Fevereiro, dia de Nossa Senhora das Candeias) está o frio fora, se se ri, está o frio para vir».


Retirado de «PARTIDA  -  COMUNIDADE DA ZONA DO PINHAL NA BEIRA BAIXA», de Luís Leitão -  Composto e impresso nas Oficinas Gráficas do Jornal do Fundão, 1991.

Nota: O livro de onde foi retirado este texto foi escrito a partir de um trabalho académico realizado pelo autor, em colaboração com Ruy Faria, durante o ano letivo de 1970/1971. Só isso justifica algumas das posições mais extremadas referidas pelo autor, que naquela altura ainda existiam entre as gentes das várias localidades à volta de São Vicente. Felizmente que hoje tudo é bastante melhor; não porque tenha passado o tempo suficiente para produzir grandes mudanças, mas sobretudo porque o contexto sociocultural do País se alterou significativamente nas últimas quatro décadas, potenciando também mudanças em termos das atitudes e comportamentos das pessoas.


M. L. Ferreira

domingo, 3 de julho de 2016

A caminho da Orada


Jornal Reconquista, 30 de junho de 2016

José Teodoro Prata