Uma
cortina enegrecida dividia a cozinha da enxerga. O ganhão levantava-se mais
cedo que as galinhas. Era uma casita pequena, o reboco há muito tinha
desaparecido, grossos pregos de caibro espetados na parede seguravam os poucos
utensílios existentes. Um tacho esmaltado, a candeia, um púcaro, panela de
barro, trempes… a panela de ferro ficava junto ao borralho, assim como um
púcaro onde havia sempre café.
Ao
levantar-se do catre, o ganhão vestiu as calças de burel, calçou as botas
cardadas, tirou do bolso do colete a onça de tabaco, e o livro de papel; sacou
uma mortalha, nela colocou um pouco de tabaco. Com os lábios humedeceu-a,
enrolou-a e acendeu o cigarro. Deu uma fumaça, pigarreou, “para sair o catarro”;
de seguida pegou na garrafa da aguardente e matou o bicho.
Tirou
uma malga da cantareira onde migou pão e encheu-a de café que estava dentro do
púcaro de barro. Sentou-se no tropeço, mastigava e fumava ao mesmo tempo.
O
galo cantou no galinheiro da dona Cidália, a alva sonolenta dormitava ainda.
Foi
à gaveta da mesa, cortou uma fatia de broa e um naco de queijo das ovelhas da
Casa Conde e embrulhou-o numa folha de couve; do bolso do casaco de burel tirou
uma bolsa onde meteu a pitança.
Nova
fungadela, desceu as escadas com algum cuidado, algumas já acusam o peso dos
anos. Tirou a tranca à porta, levantou a cravelha e saiu para a rua.
Elevou
os olhos para o céu estrelado, não bulia uma palha. Àquela hora da manhã, o ar
já era quente. Dirigiu-se ao cabanão onde se situava a abegoaria.
Ao
passar em frente à igreja da Misericórdia, tirou o chapéu e cumprimentou o
Senhor Santo Cristo:
-Bons
dias, Senhor Santo Cristo, já cá vou.
Homem
rude, simples, trabalhador, aquela era a sua reza, não recitava o pai-nosso; se
calhar nem o sabia. Com a sua rusticidade e humildade, rezava mais que muito
boa gente que passava o dia a debitar pai-nossos e ave-marias. Era a sua
jaculatória.
-Bom
dia, Senhor Santo Cristo.
No
cabanão, subiu as escadas, trouxe uma faixa de caneirões, abriu a cancela e espalhou-os
na manjedoura; fez umas festas à Amarela e à Malhada.
Enquanto
comiam a ração, o ganhão preparou o carro, foi buscar o aguilhão, atou a
lanterna a um fugueiro, enrolou um cigarro, colocou a canga às vacas,
atrelou-as e saiu. A camisa fraldejava. Desceu a rua da Igreja, a jeira ficava
longe, ia preparar a terra para semear milho basto.
A
aurora tinha acabado de se levantar, aos poucos o sol inundava com sua luz toda
a terra, em cima do carro ia a charrua e um calabre. À noite tinha que passar
pelo corte e carregar uma carrada de pernadas para o forno.
Quando
chegou, desatrelou as vacas do carro, engatou a charrua e começou a lavrar. As
leivas faziam-se com uma certa dificuldade, o terreno tinha muita erva, com o
aguilhão destorroava os montes de terra que se iam agarrando à charrua.
Entardecia,
tirou a charrua às vacas, voltou a atrelar o carro, o corte ainda ficava longe;
era noite quando chegou à porta do forno.
No
cabanão, desatrelou o carro, acendeu a lanterna e levou as vacas ao chafariz; enquanto
bebiam, matou a sede numa das bicas da fonte velha.
Àquela
hora havia mais de uma dúzia de mulheres à espera de vez para encherem os
cântaros.
Os
animais continuavam bebendo. De repente, duas vacas engalfinharam-se e
começaram a marrar, os ganhões aflitos tentavam com seus aguilhões separá-las,
parecia que tinham o diabo no corpo. A certa altura, o chavelho de uma das
vacas partiu-se, os ganhões finalmente conseguiram acalmar as alimárias. O
sangue escorria, as pessoas que estavam sentadas nos cais e a encher seus
cântaros fugiram, não ganharam para o susto.
O
dono da vaca que tinha ficado sem o chifre, no outro dia de manhã foi ao posto fazer queixa. O ganhão foi notificado para se dirigir ao tribunal de Castelo
Branco. Antes de entrar na sala de audiências, alguém lhe disse o que devia dizer
quando estivesse a ser interrogado.
À
hora marcada, apresentou-se rubicundo e a tremer, perante o magistrado:
-Conte
lá o que se passou. - pediu o juiz.
-Senhor
doutor juiz, as vacas estavam a beber água no chafariz, de repente começaram a
marrar. Faz de conta que eu sou um boi, o senhor é outro boi, vamos os dois a
marrar, eu parto-lhe um corno, que culpa tem o ganhão?
-Tirem
este homem daqui!
E
assim ganhou a contenda.
-
Bom dia, Senhor Santo Cristo…
JMS