Acorda com a voz da mãe a chamá-la e levanta-se rapidamente. Agora
a vida é diferente, tem outras responsabilidades. Lava-se, veste-se
e senta-se à mesa grande de madeira, que está encostada à parede de taipa que
divide a sala e os quartos da cozinha. Come as migas de pão com leite e café
que a mãe lhe preparou numa malga.
Pega na sacola de ganga que a mãe fez para o irmão: tinha uma alça comprida, à rapaz, que a mãe cortou e da qual fez duas pequenas, à menina. Lá dentro, leva uma pedra e um ponteiro. Por agora é suficiente. Lápis e cadernos só mais tarde.
Começa a descer a quelha. A meio, suspende a descida. Avistam-se os telhados das casas da vila e a torre da igreja, onde o sino toca as horas e outros acontecimentos do dia. É para ali que vai, e, sente-se importante com esta nova vida. Chega ao cimo de vila e desce as ruas com chão de terra batida e com as casinhas pequenas de pedra muito escuras. Na praça, as andorinhas voam em todas as direções e muitas já se vão alinhando nos fios dos telefones.
Continua pelas ruelas até à escola. Como é grande e bonita! Entra por um pequeno portão. O espaço exterior é dividido por um muro de granito que separa as meninas dos meninos, assim como o edifício da escola: do lado direito os meninos e do esquerdo as meninas. A sua sala é no piso de cima e tem que subir uma escadaria larga, com um corrimão. Que sorte! É uma correria escada acima e abaixo, ao toque da campainha.
Adora a hora do recreio: as corridas, as brincadeiras e os jogos com as amiguinhas. Num saltinho, corre à padaria da Senhê Céu. Ela é muito simpática e bonita, e, dá-lhe um papo-seco quentinho, com duas maminhas nas pontas. Que bem que lhe sabe!
Na sala de aula, a professora Nazaré vai escrevendo no quadro preto enorme, que está na parede. Por cima, duas fotos enormes de homens com um rosto sisudo e, ao centro, uma cruz com Jesus Cristo. Os dias vão passando: como é bom aprender! Adora quando é dia de prova escrita pois pode escrever com uma esferográfica naquelas folhas enormes e com muitas linhas. E não se pode enganar nem dar erros, para ficar tudo bonito!
Com o passar do tempo a responsabilidade aumenta: há que fazer bem os problemas de matemática. A professora tem uma régua grande, e, a cada erro, leva três reguadas. Ai! Ai! Já começa a esfregar a mão no vestido de lã: assim quente não dói tanto. Depois da reguada, para aliviar a dor, passa a mão na chapa metálica fria do suporte da mala.
Também há o dia das vacinas: vem a enfermeira, a menina Isaura. Ela trabalha no hospital da vila, onde também dá consultas o Dr. Alves, o médico, que também mora na vila. A menina Isaura sabe muito bem dar as injeções: só se sente a palmada.
Então, as meninas fazem uma fila sob o olhar vigilante da menina Ilda e da Senhê Zézita. As vacinas que custam mais são aquelas em que rasgam a pele com um aparo até fazer uma estrelinha. Doem mais, mas tem que aguentar senão as outras riem-se.
À hora do almoço, vai à cantina, que é por detrás da igreja. Desce um degrau: de um lado e do outro há várias mesas compridas de madeira com bancos corridos. Antes de comer vai para uma fila de crianças, que esperam para tomar a colher de óleo de fígado de bacalhau. Todos fazem caretas e riem. "Há por aí um gomito de tangerina?" É para tirar o mau gosto que fica na boca. Quem tem divide com as outras. Comem uma malga de sopa acompanhada de pão; outras vezes é uma malga de leite, feito de leite em pó.
Antes de regressar a casa ainda se atreve a jogar ao paspelho com as amigas, no largo da fonte velha. Mas não pode demorar-se, senão a mãe vai ralhar.
Sobe a quelha e, por vezes, vira-se para trás com medo, não vá algum lobo, uma bruxa ou a má-hora a segui-la, resultado de conversas ouvidas aos adultos, que a reportam para um mundo imaginário.
Chega a casa e a mãe já não está nada contente, pois há tarefas para fazer. Pega outra vez na sacola e conduz a cabrita até à barreira: caminha à sua frente, sempre a mordiscar o mato nos rebentos mais tenrinhos. Ao fundo avista-se o lameiro verdinho e a reluzir de água cristalina. Há roupa estendida sobre a relva, a corar. A roupa é lavada no ribeiro que corre abundantemente sobre as lajes de granito. Por vezes acompanha a mãe e as irmãs na lavagem da roupa. Aproveita ainda para chapinhar com as irmãs naquele caudal abundante, onde crescem plantinhas com flores lindas, amarelas e azuis, e onde veem as libelinhas, os peixes cabeçudos e as freirinhas. Mais abaixo, o caudal precipita-se pelas pedras muito inclinadas, formando uma grande cascata. Quando o caudal baixa e as pedras ficam a descoberto, as mesmas servem de escorrega. Então, a criançada é um ver se te avias, a escorregar pedra abaixo uns atrás dos outros, e aquele lugar enche-se de vida com as suas gargalhadas.
A cabrita lá continua, comendo as ervas tenrinhas pela regueira adiante, que leva a água da regadia até às Lages e às Tapadas de Baixo. Atravessa o ribeiro para o outro lado da barreira e sobe à pessera grande, que tem muitas saliências e para onde vai brincar às vezes com as irmãs. Tem uma saliência tão grande que até dá para se abrigarem da chuva. Senta-se lá e faz os trabalhos de casa. A cabrita continua a remoer, com os olhos por vezes postos na dona.
O sol começa a declinar e a cabrita inicia o percurso de regresso, lentamente, ainda mordiscando aqui e ali. A barriga já vai redondinha e as tetas tesas de leite. A cabrita dirige-se para a loja. Vai buscar a cafeteira para a ordenhar e enche-a de leitinho morno a espumar. Está a ficar fresco e a chaminé já fumega: a mãe está a preparar o jantar.
Corre a buscar a sua bola saltitona e vai para a quelha. Atira-a contra a parede da casa, apanha-a no ar e vai saltitando e cantarolando: "Ao ar, sem lugar, sem mexer, sem me rir, sem falar, uma mão, à outra, um pé, ao outro, à frente, atrás, cruzar e bailar".
A mãe chama todos os rebentos para dentro. Sentam-se à volta do lume com o prato do jantar ao colo. A seguir todos rezam o terço com os olhos postos no braseiro. Vai ao balcão e espreita a rua: a noite está fria e escura como breu. Olha o céu, cheio de estrelinhas a cintilar e volta para dentro. “A sua bênção mãe.” A mãe estende-lhe a mão e sorri. “Que Deus te abençoe e faça de ti uma santa!” Depois vem o sono reparador, aconchegada na cama com as suas irmãs.
T.T.
Pega na sacola de ganga que a mãe fez para o irmão: tinha uma alça comprida, à rapaz, que a mãe cortou e da qual fez duas pequenas, à menina. Lá dentro, leva uma pedra e um ponteiro. Por agora é suficiente. Lápis e cadernos só mais tarde.
Começa a descer a quelha. A meio, suspende a descida. Avistam-se os telhados das casas da vila e a torre da igreja, onde o sino toca as horas e outros acontecimentos do dia. É para ali que vai, e, sente-se importante com esta nova vida. Chega ao cimo de vila e desce as ruas com chão de terra batida e com as casinhas pequenas de pedra muito escuras. Na praça, as andorinhas voam em todas as direções e muitas já se vão alinhando nos fios dos telefones.
Continua pelas ruelas até à escola. Como é grande e bonita! Entra por um pequeno portão. O espaço exterior é dividido por um muro de granito que separa as meninas dos meninos, assim como o edifício da escola: do lado direito os meninos e do esquerdo as meninas. A sua sala é no piso de cima e tem que subir uma escadaria larga, com um corrimão. Que sorte! É uma correria escada acima e abaixo, ao toque da campainha.
Adora a hora do recreio: as corridas, as brincadeiras e os jogos com as amiguinhas. Num saltinho, corre à padaria da Senhê Céu. Ela é muito simpática e bonita, e, dá-lhe um papo-seco quentinho, com duas maminhas nas pontas. Que bem que lhe sabe!
Na sala de aula, a professora Nazaré vai escrevendo no quadro preto enorme, que está na parede. Por cima, duas fotos enormes de homens com um rosto sisudo e, ao centro, uma cruz com Jesus Cristo. Os dias vão passando: como é bom aprender! Adora quando é dia de prova escrita pois pode escrever com uma esferográfica naquelas folhas enormes e com muitas linhas. E não se pode enganar nem dar erros, para ficar tudo bonito!
Com o passar do tempo a responsabilidade aumenta: há que fazer bem os problemas de matemática. A professora tem uma régua grande, e, a cada erro, leva três reguadas. Ai! Ai! Já começa a esfregar a mão no vestido de lã: assim quente não dói tanto. Depois da reguada, para aliviar a dor, passa a mão na chapa metálica fria do suporte da mala.
Também há o dia das vacinas: vem a enfermeira, a menina Isaura. Ela trabalha no hospital da vila, onde também dá consultas o Dr. Alves, o médico, que também mora na vila. A menina Isaura sabe muito bem dar as injeções: só se sente a palmada.
Então, as meninas fazem uma fila sob o olhar vigilante da menina Ilda e da Senhê Zézita. As vacinas que custam mais são aquelas em que rasgam a pele com um aparo até fazer uma estrelinha. Doem mais, mas tem que aguentar senão as outras riem-se.
À hora do almoço, vai à cantina, que é por detrás da igreja. Desce um degrau: de um lado e do outro há várias mesas compridas de madeira com bancos corridos. Antes de comer vai para uma fila de crianças, que esperam para tomar a colher de óleo de fígado de bacalhau. Todos fazem caretas e riem. "Há por aí um gomito de tangerina?" É para tirar o mau gosto que fica na boca. Quem tem divide com as outras. Comem uma malga de sopa acompanhada de pão; outras vezes é uma malga de leite, feito de leite em pó.
Antes de regressar a casa ainda se atreve a jogar ao paspelho com as amigas, no largo da fonte velha. Mas não pode demorar-se, senão a mãe vai ralhar.
Sobe a quelha e, por vezes, vira-se para trás com medo, não vá algum lobo, uma bruxa ou a má-hora a segui-la, resultado de conversas ouvidas aos adultos, que a reportam para um mundo imaginário.
Chega a casa e a mãe já não está nada contente, pois há tarefas para fazer. Pega outra vez na sacola e conduz a cabrita até à barreira: caminha à sua frente, sempre a mordiscar o mato nos rebentos mais tenrinhos. Ao fundo avista-se o lameiro verdinho e a reluzir de água cristalina. Há roupa estendida sobre a relva, a corar. A roupa é lavada no ribeiro que corre abundantemente sobre as lajes de granito. Por vezes acompanha a mãe e as irmãs na lavagem da roupa. Aproveita ainda para chapinhar com as irmãs naquele caudal abundante, onde crescem plantinhas com flores lindas, amarelas e azuis, e onde veem as libelinhas, os peixes cabeçudos e as freirinhas. Mais abaixo, o caudal precipita-se pelas pedras muito inclinadas, formando uma grande cascata. Quando o caudal baixa e as pedras ficam a descoberto, as mesmas servem de escorrega. Então, a criançada é um ver se te avias, a escorregar pedra abaixo uns atrás dos outros, e aquele lugar enche-se de vida com as suas gargalhadas.
A cabrita lá continua, comendo as ervas tenrinhas pela regueira adiante, que leva a água da regadia até às Lages e às Tapadas de Baixo. Atravessa o ribeiro para o outro lado da barreira e sobe à pessera grande, que tem muitas saliências e para onde vai brincar às vezes com as irmãs. Tem uma saliência tão grande que até dá para se abrigarem da chuva. Senta-se lá e faz os trabalhos de casa. A cabrita continua a remoer, com os olhos por vezes postos na dona.
O sol começa a declinar e a cabrita inicia o percurso de regresso, lentamente, ainda mordiscando aqui e ali. A barriga já vai redondinha e as tetas tesas de leite. A cabrita dirige-se para a loja. Vai buscar a cafeteira para a ordenhar e enche-a de leitinho morno a espumar. Está a ficar fresco e a chaminé já fumega: a mãe está a preparar o jantar.
Corre a buscar a sua bola saltitona e vai para a quelha. Atira-a contra a parede da casa, apanha-a no ar e vai saltitando e cantarolando: "Ao ar, sem lugar, sem mexer, sem me rir, sem falar, uma mão, à outra, um pé, ao outro, à frente, atrás, cruzar e bailar".
A mãe chama todos os rebentos para dentro. Sentam-se à volta do lume com o prato do jantar ao colo. A seguir todos rezam o terço com os olhos postos no braseiro. Vai ao balcão e espreita a rua: a noite está fria e escura como breu. Olha o céu, cheio de estrelinhas a cintilar e volta para dentro. “A sua bênção mãe.” A mãe estende-lhe a mão e sorri. “Que Deus te abençoe e faça de ti uma santa!” Depois vem o sono reparador, aconchegada na cama com as suas irmãs.
T.T.