terça-feira, 29 de novembro de 2016

As crianças devem sujar-se?

Muito se tem falado sobre a falta de contacto das crianças com as brincadeiras de rua. Médicos de família, nutricionistas e especialistas em psicomotricidade  alertam para a falta de mobilidade das crianças e para a obesidade infantil.
Habitualmente, desenvolvo um projeto sobre Horta Escolar e planto diversos legumes. Sempre que me é possível, dou um saltinho à horta e noto que inicialmente os miúdos sentem um grande constrangimento em mexer na terra. Os dias de rega são os favoritos, pois a mangueira verte alguma água e faz pequenas poças. Um dia, contei-lhes que quando era da idade deles brincava com a terra e fazia bolinhos. Incentivei-os a fazer a experiência e foram eufóricos para a sala a perguntar se para a próxima podiam repetir a brincadeira. Uns dias depois, voltámos à horta e uma aluna disse não poder ajudar; os pais tinham proibido por ter chegado a casa com os sapatos sujos de terra.
Fiquei perplexa por pensar nos pais atuais, com máquinas para tudo. A minha mãe criou oito filhos e nunca nos proibiu de brincar ou reclamou por nos sujarmos. Claro que o meu pensamento foi até à Tapada da minha infância. 

Aproveitávamos os dias em que a minha mãe ou a tia Stela despejavam as presas da Barroca, para regar as hortas ou armazenar água no tanque. As regueiras ficavam cheias de água límpida e nós começávamos a azáfama. Fazíamos um cone de terra e com o cotovelo uma cavidade na ponta. Deitávamo-nos ao lado do rego e com a boca, sorvíamos um gole de água que lançávamos na cova redondinha. Víamos a água a desaparecer e esperávamos um pouco. Com os dedos indicadores, íamos afastando a terra solta e com muito cuidado pegávamos na malguinha que colocávamos na palma da mão. Ficávamos encantadas por ver como tinha ficado perfeita! Era colocada, com muito jeitinho, nas saliências da rocha que servia de cozinha. Voltávamos ao rego e a brincadeira continuava pela tarde fora. Diversas sementes seriam o arroz que iria encher as malgas.
Entretanto, íamos vigiando o caudal do rego para sabermos o momento de irmos tapar as presas à Barroca. Pegávamos num sacho e íamos por uma vereda junto ao rego. Chegadas às presas, verificávamos se realmente estavam completamente despejadas. Colocávamos a tranca na parte exterior do alvanel e na parte de dentro colocávamos terra que era apertada coma as mãos e com o sacho, para não haver o perigo de vazar durante a noite. O mais difícil era tapar a mina. À entrada víamos um túnel cavado na rocha e ao fundo uma imensa escuridão. A água era escura, pois o desnível provocado pelas areias acumuladas, à boca da mina, fazia com que ela ficasse sempre com bastante água. Para a tapar por dentro, era preciso inclinar-me sobre a água e tatear até encontrar a cavidade que tinha que ser fechada com torrões para ficar completamente selada. Imaginava serpentes a enrolarem-se à volta do braço e, quando terminada a tarefa, suspirava de alívio. Regressávamos a casa felizes por termos cumprido bem a nossa missão. A nossa mãe perguntava sempre:
 - Então as presas ficaram bem tapadas? Vejam lá se amanhã, quando o dono da água as for despejar, não encontra lá nada!

Conceição Teodoro

sábado, 26 de novembro de 2016

Canja de cobra

O sacristão Manuel subiu as escadas da torre e encostou-se à varanda voltada para o cimo da vila, a saborear o ar fresco da manhã. De seguida pegou nos badalos e começou a badalar as ave-marias. O sol ainda se escondia por detrás da Oles, mas aos poucos inundou toda a vila e campos em redor. Camponeses, jornaleiros e proprietários iam a caminho das hortas para iniciarem mais uma jornada de labor.
O portão do quintal da casa do César abriu-se e o ganhão Dionísio à frente do carro de bois seguiu pela rua das Laranjeiras, em direção à Fonte Velha, a caminho da Tapada do João Gago. Todos os ganhões; “e eram muitos” seguiam cada um sua vida. Alguns dirigiam-se aos pinhais carregar lenha para os fornos comunitários…
Jornaleiros trabalhavam de sol a sol.
Antes de partirem para os trabalhos campestres muitas pessoas assistiam à missa da manhã.
Quando os homens trabalhavam perto da vila as mulheres levavam-lhes o café “por volta das dez da manhã fazia-se uma pausa”. À uma hora, ao toque das trindades, jornaleiros paravam os trabalhos, jantavam e dormiam a cesta. À tarde, nova paragem para se merendar: Um naco de pão com umas azeitonas, uma fatia de queijo…
Naquela época um novo prior tinha chegado há poucos meses à vila, depressa granjeou a simpatia do povo, sempre bem-disposto, comunicativo, mestre-escola…
Ao novel hospital chegavam doentes de toda a freguesia e das freguesias vizinhas para encontrarem a cura dos seus males. Em frente situava-se o tronco do senhor Bonifácio, quando não havia alimária para ferrar ele e o seu ajudante Joaquim da “burra” faziam ferraduras e canelos. Joaquim da “burra” de vez em quando gritava, rebolava no chão cheio de dores.
Meu pai dizia que lhe saiam as tripas “mais tarde soube que era quebrado”.
Ciganos acampavam detrás da capela de São Sebastião e o mestre Ventura juntamente com seus filhos fazia carros de bois na oficina que ficava por baixo da sua casa. Certa vez; eu ia a passar, encaro com uma cigana a esfolar uma cobra, uma panela de ferro aquecia água na fogueira, cortou-a em vários pedaços e meteu-a na panela. Assustado, segui caminho com a cesta na mão onde ia o jantar do meu pai. Quando cheguei à Oles, contei-lhe e respondeu-me:
- As cobras fazem uma canja tão boa ou melhor que a canja de galinha
Não fiquei convencido…
Era o tempo das malhas, ganhões transportavam faixas de centeio, trigo, para as eiras.
A eira da dona Luz estava cheia de rolheiros.
Malhadores desatavam os nagalhos, estendiam as faixas, ouviam-se os manguais com cadência ritmada debulharem as espigas, a palha ia sendo retirada ficando a semente misturada com as praganas, à tardinha aproveitando a nortada, procediam à sua limpeza enchiam um meio alqueire que levantavam no ar e iam lançando a semente para a eira, o vento empurrava as praganas e as rabeiras. A semente caia em cima de umas giestas, aos poucos o monte crescia, os catxiços eram retirados e juntavam-se a um canto. A palha de centeio aproveitava-se para as enxergas, a trigueira não prestava, desfazia-se, dava-se aos animais.
O ar fresco dava lugar ao calor que se tinha feito sentir durante o dia, os notáveis, remediados e os ricos da vila reuniam-se em São Sebastião, sentavam-se nos cais que cercam a capela, cavaqueavam sobre os mais diversos temas.
Uma das pessoas habituais nas tertúlias estivais daquela época era o padre José David.
Conversa puxa conversa “são como as cerejas”; a certa altura diz:
- Meus amigos; quando cheguei a São Vicente a primeira pessoa que confessei foi uma mulher; disse-me que era bruxa, fiquei sem saber o que lhe havia de dizer, não contava com tal segredo. Absolvi-a e, como penitência mandei-a rezar cinco pai-nossos e cinco ave-marias.
Eis senão quando na estrada passa uma mulher com um cesto à cabeça cheio de hortaliças:
- Boa tarde; saiba vossa reverência que tenho a consolação de ser a primeira pessoa que vossa reverência confessou na nossa terra.
O padre ficou sem pinta de sangue, todos os presentes ficaram a saber quem era a bruxa.
Anoitecia, sacristão tocava as ave-marias. À vila chegavam os camponeses, jornaleiros… na Fonte Velha sentavam-se nos cais com a enxada ao lado, as mulheres esperavam a sua vez para encher cântaros, regadores… algumas passavam com o tabuleiro à cabeça deixando um rasto cheiroso e agradável a pão acabadinho de cozer.
Outros, entravam na taberna do João coxo e emborcavam um cajeirão.
Fiquem bem.

J.M.S 

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O livro dos enxidros

Após as sessões com os alunos do 1.º ciclo de Alcains, há oito dias, achei que devia prestar contas a quem nos pagou o livro. Por isso enviei, via e-mail, ao sr. presidente da Câmara, a mensagem que se segue:

Senhor presidente:
Na passada quinta-feira, concluímos as apresentações do livro "Dos Enxidros aos casais: histórias e gentes de São Vicente da Beira". Eventualmente, faremos mais uma sessão em São Vicente e a Dr.ª Adelaide Salvado pediu-me que fosse à USALBI falar sobre este projeto, mas não marcámos data.
Como coordenador do projeto, cabe-me fazer um primeiro balanço:
·  O livro foi apresentado em São Vicente (uma sessão para a população em geral e outra no Lar), Partida, Castelo Branco e escolas de São Vicente e Alcains (aqui em 5 sessões, para os alunos do 6.º ano que haviam ilustrado o livro e para todos os alunos do 1.º Ciclo). Totalizam 10 sessões em que o público aderiu entusiasticamente ao livro. 
·  As sessões no Lar de São Vicente, em Castelo Branco e na Partida contaram com a animação do coro do Rancho Folclórico Vicentino, que cantou canções inseridas em algumas histórias.
·  O sucesso deste projeto ultrapassou largamente as melhores expetativas dos autores e tal facto deve-se sobretudo à estreita relação entre as histórias do livro e as vivências das pessoas. Diria que o livro aborda o património cultural das populações.
·  O número de vendas terá já ultrapassado as duas centenas.


Eu e a Libânia, na biblioteca da escola do 1.º ciclo, em Alcains.

O senhor presidente da Câmara respondeu de imediato, 
agradecendo a gentileza deste gesto, 
dando-nos os parabéns pelo sucesso do livro, que acompanhara pelo vereador da cultura e pela comunicação social, 
e disponibilizando-se para nos apoiar em novos projetos.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Fontes: Barbaído



No dia 13 de setembro de 1713, casaram Manoel Gonçalves e Izabel Fernandes.
Como podem ver no pormenor, o noivo era 
«...do Casal do Barbaído desta freguesia de Nossa Senhora da Assumpçaõ...».
Já sabia que era a Câmara de São Vicente que nomeava anualmente o juiz do Barbaído, em vez de ser escolhido pelos moradores do Freixial e do Barbaído, como acontecia com a Torre do Louriçal.
E também que era o Vigário de São Vicente e não o cura do Freixial quem ia anualmente fazer a festa de São Brás, recebendo por isso o respetivo pagamento.
Agora, este registo de casamento vem informar que, em 1713, o Barbaído ainda pertencia à freguesia (paróquia) de São Vicente.

José Teodoro Prata

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

D. João de Deus Ramalho


Nasceu em 8-1-1890, em São Vicente da Beira, sendo filho de João José Ramalho e de Antónia do Carmo Ramalho. Ingressou nos jesuítas a 7-9-1906, no Colégio do Barro, Lisboa; em 1910, foi preso em Caxias com outros jesuítas; dali seguiu para Gibraltar e depois para Exaten, no Holanda, e a seguir para a ilha de Jersey, continuando sempre a estudar. No Hospital dos Irmãos Hospitaleiros de São João de Deus de Paris, fez 6 operações quase seguidas devido à intoxificação na masmorra de Caxias; seu irmão Inácio, também jesuíta, fez 14 e morreu.
De Paris passou a Davos, na Suíça, a Bolengo, na Itália e depois a Genebra, onde tirou um curso de enfermagem; depois, a Turim, ao Colégio de Placeres, em Espanha, a La Guardia (1916-1917), a Ernani, perto de San Sebastian e a Oña, onde se ordenou a 30-7-1921. A 14-12-1923, embarcou em Marselha para a China, aportando a Hong Kong, a 17-1-1924, e a Shiu-Hing, a 22 desse mês. Em 1926, foi colocado como missionário no distrito de Shui-Hang, onde trabalhou até à sua elevação ao episcopado. Em Janeiro de 1925, fundou a revista mensal “Ecos da Missão de Shiu-Hing” que durou até Julho de 1946 e onde publicou interessantes trabalhos sobre os antigos jesuítas na China.
A 13-6-1940, foi nomeado superior e Vigário Geral da Missão de Shiu-Hing e, a 26-9-1942, bispo de Macau, sendo sagrado em Shui-Hang, a 6-11-1942, dia em que tomou posse da diocese por procuração. Chegou a Macau, a 23-2-1943.

Obras

Comprou o edifício da Escola Normal do Colégio de S. José. Acolheu em Macau todas as Ordens Religiosas que aqui se vieram refugiar durante e após a guerra civil na China. Os padres de PIME (Missões Estrangeiras de Milão) instalaram-se no Seminário e em São Agostinho, ficando encarregados desta igreja, que serviu de paróquia aos refugiados de Hong Kong; os jesuítas da Província Irlandesa de Hong Kong da Companhia de Jesus instalaram-se na Vila Flor e no Colégio de S. Luís Gonzaga, fundado por eles a 4-1-1943, para a educação dos refugiados; as irmãs de São Paulo de Chartres abriram na Penha, em Janeiro de 1950, um pensionato para as crianças de menos de 4 anos; os Maristas alojaram-se em 1950 com os seus alunos na Casa de Campo do Seminário na Ilha Verde; os Franciscanos, em 1949, na Vila Flora; os Salvatorianos, na Estrada da Vitória; os Carmelitas de Pequim, a 21-11-1948, no Seminário de S. José; os Lazaristas no Orfanato da Imaculada Conceição; os Redentoristas, em S. Agostinho; as Irmãs do Precioso Sangue, no n. º 3 da R. da Praia Grande. D. João Ramalho construiu em 1954 o externato, a sala de estudo e o teatro do Seminário e restaurou a igreja em 1953. Resignou em 1954 e retirou-se para Portugal. Morreu em Vilar do Paraíso a 26-2-1958.



Estátua de Nossa Sra. de Fátima no antigo destacamento militar de Mong Há.
“Desde o dia 13 de Novembro está exposta à adoração dos fiéis, no Aquartelamento de Mong Há, uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, que foi confiada pelo Bispo de Leiria ao Destacamento Expedicionário quando da partida da Força Expedicionária para Macau. Cavada na rocha, uma gruta de aspecto propositadamente rude, concebida pelo talento artístico de Osseo Acconci, serve como de engaste para um pequeno retábulo, donde emerge a Imagem na sua esplêndida beleza. Uma pequena grade de bronze, a meia altura, e alguns lavrados junto ao tecto, onde se distingue o emblema da Artilharia, dão com a sua singeleza um timbre branco de boas-vindas a quem se aproxima. Num dístico à porta lê-se: "Portugal, terra de Fé" e, à esquerda, um lampadário sempre acesso que foi oferecido pelo Bispo de Macau, D. João de Deus Ramalho, simboliza a crença viva de quantos militares vivem naquele quartel, onde se encontram quatro unidades expedicionárias de Artilharia e Infantaria. A inauguração da gruta que se deu a 13 de Novembro, teve a assistência de Governo, das restantes autoridades e de todas as pessoas qualificadas da Colónia além de muito povo.
in revista Mosaico em 1950

Em:
Nota: O meu Avô Jaime Craveiro era primo em 4.º grau de Dom João de Deus Ramalho.


Jaime Gama

sábado, 19 de novembro de 2016

A infância

Acorda com a voz da mãe a chamá-la e levanta-se rapidamente. Agora a vida é diferente, tem outras responsabilidades. Lava-se, veste-se e senta-se à mesa grande de madeira, que está encostada à parede de taipa que divide a sala e os quartos da cozinha. Come as migas de pão com leite e café que a mãe lhe preparou numa malga.
Pega na sacola de ganga que a mãe fez para o irmão: tinha uma alça comprida, à rapaz, que a mãe cortou e da qual fez duas pequenas, à menina. Lá dentro, leva uma pedra e um ponteiro. Por agora é suficiente. Lápis e cadernos só mais tarde.
Começa a descer a quelha. A meio, suspende a descida. Avistam-se os telhados das casas da vila e a torre da igreja, onde o sino toca as horas e outros acontecimentos do dia. É para ali que vai, e, sente-se importante com esta nova vida. Chega ao cimo de vila e desce as ruas com chão de terra batida e com as casinhas pequenas de pedra muito escuras. Na praça, as andorinhas voam em todas as  direções e muitas já se vão alinhando nos fios dos telefones.
Continua pelas ruelas até à escola. Como é grande e bonita! Entra por um pequeno portão. O espaço exterior é dividido por um muro de granito que separa as meninas dos meninos, assim como o edifício da escola: do lado direito os meninos e do esquerdo as meninas. A sua sala é no piso de cima e tem que subir uma escadaria larga, com um corrimão. Que sorte! É uma correria escada acima e abaixo, ao toque da campainha.
Adora a hora do recreio: as corridas, as brincadeiras e os jogos com as amiguinhas. Num saltinho, corre à padaria da Senhê Céu. Ela é muito simpática e bonita, e, dá-lhe um papo-seco quentinho, com duas maminhas nas pontas. Que bem que lhe sabe!
Na sala de aula, a professora Nazaré vai escrevendo no quadro preto enorme, que está na parede. Por cima, duas fotos enormes de homens com um rosto sisudo e, ao centro, uma cruz com Jesus Cristo. Os dias vão passando: como é bom aprender! Adora quando é dia de prova escrita pois pode escrever com uma esferográfica naquelas folhas enormes e com muitas linhas. E não se pode enganar nem dar erros, para ficar tudo bonito!
Com o passar do tempo a responsabilidade aumenta: há que fazer bem os problemas de matemática. A professora tem uma régua grande, e, a cada erro, leva três reguadas. Ai! Ai! Já começa a esfregar a mão no vestido de lã: assim quente não dói tanto. Depois da reguada, para aliviar a dor, passa a mão na chapa metálica fria do suporte da mala.
Também há o dia das vacinas: vem a enfermeira, a menina Isaura. Ela trabalha no hospital da vila, onde também dá consultas o Dr. Alves, o médico, que também mora na vila. A menina Isaura sabe muito bem dar as injeções: só se sente a palmada.
Então, as meninas fazem uma fila sob o olhar vigilante da menina Ilda e da Senhê Zézita. As vacinas que custam mais são aquelas em que rasgam a pele com um aparo até fazer uma estrelinha. Doem mais, mas tem que aguentar senão as outras riem-se.
À hora do almoço, vai à cantina, que é por detrás da igreja. Desce um degrau: de um lado e do outro há várias mesas compridas de madeira com bancos corridos. Antes de comer vai para uma fila de crianças, que esperam para tomar a colher de óleo de fígado de bacalhau. Todos fazem caretas e riem. "Há por aí um gomito de tangerina?" É para tirar o mau gosto que fica na boca. Quem tem divide com as outras. Comem uma malga de sopa acompanhada de pão; outras vezes é uma malga de leite, feito de leite em pó.
Antes de regressar a casa ainda se atreve a jogar ao paspelho com as amigas, no largo da fonte velha. Mas não pode demorar-se, senão a mãe vai ralhar.
Sobe a quelha e, por vezes, vira-se para trás com medo, não vá algum lobo, uma bruxa ou a má-hora a segui-la, resultado de conversas ouvidas aos adultos, que a reportam para um mundo imaginário.
Chega a casa e a mãe já não está nada contente, pois há tarefas para fazer. Pega outra vez na sacola e conduz a cabrita até à barreira: caminha à sua frente, sempre a mordiscar o mato nos rebentos mais tenrinhos. Ao fundo avista-se o lameiro verdinho e a reluzir de água cristalina. Há roupa estendida sobre a relva, a corar. A roupa é lavada no ribeiro que corre abundantemente sobre as lajes de granito. Por vezes acompanha a mãe e as irmãs na lavagem da roupa. Aproveita ainda para chapinhar com as irmãs naquele caudal abundante, onde crescem plantinhas com flores lindas, amarelas e azuis, e onde veem as libelinhas, os peixes cabeçudos e as freirinhas. Mais abaixo, o caudal precipita-se pelas pedras muito inclinadas, formando uma grande cascata. Quando o caudal baixa e as pedras ficam a descoberto, as mesmas servem de escorrega. Então, a criançada é um ver se te avias, a escorregar pedra abaixo uns atrás dos outros, e aquele lugar enche-se de vida com as suas gargalhadas.
A cabrita lá continua, comendo as ervas tenrinhas pela regueira adiante, que leva a água da regadia até às Lages e às Tapadas de Baixo. Atravessa o ribeiro para o outro lado da barreira e sobe à pessera grande, que tem muitas saliências e para onde vai brincar às vezes com as irmãs. Tem uma saliência tão grande que até dá para se abrigarem da chuva. Senta-se lá e faz os trabalhos de casa. A cabrita continua a remoer, com os olhos por vezes postos na dona.
O sol começa a declinar e a cabrita inicia o percurso de regresso, lentamente, ainda mordiscando aqui e ali. A barriga já vai redondinha e as tetas tesas de leite. A cabrita dirige-se para a loja. Vai buscar a cafeteira para a ordenhar e enche-a de leitinho morno a espumar. Está a ficar fresco e a chaminé já fumega: a mãe está a preparar o jantar.
Corre a buscar a sua bola saltitona e vai para a quelha. Atira-a contra a parede da casa, apanha-a no ar e vai saltitando e cantarolando: "Ao ar, sem lugar, sem mexer, sem me rir, sem falar, uma mão, à outra, um pé, ao outro, à frente, atrás, cruzar e bailar".
A mãe chama todos os rebentos para dentro. Sentam-se à volta do lume com o prato do jantar ao colo. A seguir todos rezam o terço com os olhos postos no braseiro. Vai ao balcão e espreita a rua: a noite está fria e escura como breu. Olha o céu, cheio de estrelinhas a cintilar e volta para dentro. “A sua bênção mãe.” A mãe estende-lhe a mão e sorri. “Que Deus te abençoe e faça de ti uma santa!” Depois vem o sono reparador, aconchegada na cama com as suas irmãs.


T.T.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Ir à marouva

Andávamos de noite e éramos sempre uns poucos, que enquanto uns trepavam às árvores, os outros ficavam à espreita, a ver se lá vinha a Guarda ou o dono.
 Uma vez, já rente ao sol-posto, era eu, o Chico Vaca, o Albertino da Lusitana, o Jorge Gato e o Justino Escavaterra. Estávamos todos sentados na Fonte Velha à espera das cachopas que vinham à fonte, e às duas por três diz o Justino assim:
- O meu avô é que lá tem umas laranjas boas! São doces que nem mel! Mas onde elas estão ninguém lá chega, que a laranjeira está mesmo defronte da janela da cozinha.
Ninguém lá chega? Ai não que não chega! Olha para quem ele o estava a dizer! Fizemos logo sinal uns aos outros e assim que ele se levantou para se ir embora, levantámo-nos logo todos também e abalámos cada um para seu lado, como se fôssemos para casa. Não tardou muito, estávamos outra vez todos juntos, na Estrada Nova, ao pé da quelha. Todos menos ele, que não deu conta de nada.
Saltámos a parede do Pomar, que era onde havia a tal laranjeira, espreitámos pela janela e vimos que a candeia ainda estava acesa e o ti Tomás e a mulher ainda levantados, mas cada um com a cabeça já a cambalear para seu lado. Só o gato é que parece que deu razão de qualquer coisa e pôs-se coca, mas como não viu nada, tornou a enroscar-se aos pés do dono.
Saltámos para cima da laranjeira e toca a colher e a encher a camisa por dentro, que a tínhamos atado com a correia das calças. Só deixámos as que não víamos ou aquelas aonde não chegávamos.
Quando foi ao outro dia, ajuntámo-nos outra vez na Fonte Velha e chega lá o Justino, que até parecia que nos havia de comer:
- Seus cabrões, que fosteis às laranjas do meu avô e não deixasteis nem uma!
- Nós? Atão não nos vistes abalar também aquando tu? Alguém lá terá ido a elas, mas nós não fomos…
Ele calou-se e lá ficou na dele; nunca teve a certeza de quem tinham sido os ladrões.
Doutra vez, era no tempo das ameixas. Havia uma ameixoeira numa horta para lá do Marzelo, carregadinha delas; grandes e tão encarnadinhas que metiam cobiça. Até faziam água na boca, só de olhar pra elas. Um dia lá vamos nós, pela calada da noite, prontos para uma barrigada.
Assim que lá chegámos o Chico Vaca saltou logo para cima dum ramo tão carregadinho que até amochava; mas teve tanto azar que o ramo esnocou-se e ele foi parar ao leirão de baixo, mesmo por cima dum poço que lá havia. A noite estava como breu, e só o ouvíamos a berrar.
- Tirem-me daqui! Tirem-me daqui, que eu morro!
Fomos à horta e arrancámos uma empa dum tomateiro, e foi assim que o conseguimos tirar de lá; ele agarrado ao pau e nós a puxar pra cima. Vinha todo esfarrapado e a escorrer tanto sangue que até parecia um Cristo. E a sorte dele foi que o poço estava tapado com um basculho de silvas e o ramo tinha-o amparado, senão tinha morrido, que o poço era fundo como o diabo.
Jurou pra nunca mais, mas foi sol de pouca dura, que não tardou muito tempo e já andávamos todos aos gachos naquilo da dona Judite. Era cada um, dos brancos, mais doces que o mel! Mas dessa vez íamos sendo apanhados pela Guarda. O que nos valeu foi que demos conta da patrulha pelas passadas das botas e tivemos tempo de nos agachar atrás duma parede. Passaram mesmo à nossa frente, com a arma às costas, mas assim que deixámos de os ouvir, ó gachos duma figa! Foi até não podermos mais!
E estava aqui até à noite só a contar partes destas. Naquele tempo não havia a fartura da fruta que há agora, que até a deixam apodrecer, caída ao tronco da árvore. Se queríamos comer alguma coisa que nos consolasse, tínhamos que ir a ela, aonde a havia, naquilo dos ricos. Raras vezes éramos descobertos, mas mesmo que fôssemos, tínhamos as pernas leves e era difícil sermos apanhados.
Belos tempos! Quem me dera lá neles!...

M. L. Ferreira