domingo, 28 de maio de 2017

Romaria à Senhora da Orada


Prometia ser um rico dia de chuva, mas só caíram uns barrufos, durante a noite.
Na curva da estrada, os feirantes.


Os bombos que ouvia enquanto me aproximava da capela.


Na fonte, as filas do costume, para refrescar o corpo e o espírito.


A procissão já terminara. Havia mais dois cestos como este.


O GEGA animou a festa com uma exposição de fotografias de romarias passadas, 
algumas há uns bons anos.


A Senhora, linda como sempre!

José Teodoro Prata

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Ex votos

Todos nós somos de uma maneira ou outra, religiosos. Mais não seja crermos na ciência humana. Os partidários do agnosticismo não crêem naquilo que não vêm, o intangível. Apesar de aparentemente não acreditarem na existência de um Ser criador de todas as coisas, crêem na ciência. São Tomé só acreditou quando viu o Mestre.
         Ao contrário dos agnósticos, os ateus não seguem qualquer religião; para eles, Deus não existe, em contrapartida, há os que acreditam numa divindade.
Católicos, muçulmanos, judeus, adoram um Deus único. “Latria”. Há povos que aceitam vários deuses.
Os católicos muitas vezes “negoceiam” com a divindade oferecendo contrapartidas pela graça recebida; podem ser velas, dinheiro, ex votos…
Quem numa hora difícil nunca pronunciou a palavra Deus? Valha-me Deus, Deus nos valha, Deus nos acuda…
A igreja da Misericórdia, dedicada ao Senhor Santo Cristo, guarda umas largas dezenas de ex votos, formas de agradecimento por graças alcançadas. Nela figuram dois belos quadros: um oferecido pelo visconde de Tinalhas e o outro pela família Robles Monteiro.
A maioria representa órgãos do corpo humano feitos em cera: braços, pernas, corações… Cada figuração representa a cura daquele órgão figurado.
Também se encontram figurações humanas completas, representam crianças que foram curadas dos seus males. A criança manifesta a dor através do choro, mas não consegue dizer qual o órgão afectado, então os progenitores oferecem à divindade uma figura humana.
Seja na igreja do Senhor Santo Cristo ou no santuário da Senhora da Orada, todos os objectos ex votos estão dependurados nos locais mais nobres do templo.
Na igreja da Misericórdia existe um divisa militar oferta de alguém que foi para a guerra e voltou são e salvo. Também se exibe um grande cirio.
Esta fé em algo que nos transcende já acontecia nos santuários da antiga Grécia. Os nossos reis, em alturas de aflição, agradeciam a Deus, através da construção de grandes monumentos: Real Convento de Mafra, Mosteiro da Batalha… No nosso tempo, ainda há muitos crentes que continuam a oferecer à divindade da sua devoção peças votivas.
Em Santuários como Fátima, Aires, Senhora da Póvoa, existem expostos em lugar apropriado peças de roupa, fotografias, ourivesaria e todo o género de recordações.
         Nos grandes ou pequenos santuários, como da Senhora da Orada, em dias de romaria, os crentes exibem velas acesas como agradecimento. Não se perpetuam no tempo. Enquanto dura a cerimónia, a súplica, o pedido ou o agradecimento pela graça recebida, as velas alumiam, é a forma de pagamento pela graça que a divindade concedeu.
Tudo isto está enraizado nos cultos de raiz popular.    
O Homem, ser finito, pelas suas fragilidades e dores, é limitado. Por isso tem necessidade de recorrer à acção benevolente dos santos, eles são os mediadores entre Deus e o Homem. Estas situações acontecem quase sempre quando a esperança na ciência se esgotou, voltando-se a pessoa para o além, para conseguir o milagre, por intercessão do santo a que se recorre.
A principal razão da existência dos ex votos é a gratidão pela graça concedida, mas para isso o pedido tem que ser acompanhado de muita fé. Porque a fé, nas obras se vê.

J.M.S





M. L. Ferreira

domingo, 21 de maio de 2017

Béjar

Na passada quinta-feira, fui de visita de estudo a Espanha. A manhã foi passada em Moraleja, num intercâmbio escolar, e depois rumámos a Salamanca. Logo a seguir a Plasencia, surgiu-me aquela que eu conhecia apenas dos registos paroquiais: Béjar. Ao contar a história da vinda dos antepassados do Robles Monteiro para a Covilhã, esqueci-me de fotografar, mas esta é a paisagem vista da autoestrada.



O percurso aqui marcado passa na fronteira de Marvão (Galegos), mas nós (SVB) atravessaríamos nas Termas de Monfortinho e dali diretos a Plasencia. É perto.
Béjar é uma cidade de montanha. Ainda havia neve, não tanta como na foto. A abundância de água e de gado ovino fizeram surgir uma forte indústria de lanifícios, daí a contratação do João António Robles (roble é carvalho, em castelhano) para vir ensinar os operários portugueses, no tempo do Marquês de Pombal.
O meu colega, professor de Espanhol, contou-me que ali se situa a praça de touros mais antiga de Espanha, ainda de planta retangular. A meia encosta, existe uma aldeia de montanha com uma arquitetura tradicional, muito bonita (vê-se da autoestrada). Anualmente, realiza-se em Béjar um importante festival de blues.


Este registo refere o batismo de Josefa, nascida a 28.10.1812, filha de Bernardo Ribeiro Robles, da Covilhã, e Antónia Raimunda Ribeira, de São Vicente da Beira, neta paterna de João António Robles e Belchior Gomes, naturais de Béjar, Espanha, e neta materna de José Custódio Ribeiro, de SVB, e Maria Hipólita Cassiana, de Zalamea, Espanha.
Acima referi que este Robles e a sua esposa eram os antepassados do Robles Monteiro. Mas sê-lo-ão também de pessoas ainda a viver em São Vicente.

José Teodoro Prata

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Aos domingos

O domingo era o dia do descanso das lides do campo e da confraternização com a família. Era sobretudo religioso: ir à missa era um compromisso a que ninguém se atrevia a faltar. Envergava-se o melhor fato. As mulheres cobriam a cabeça com um véu arrendado. A igreja enchia-se: os homens ao fundo, no coro e nos camarins, as mulheres nos bancos e à frente as crianças, nos primeiros bancos e nos degraus de madeira dos altares, sob o olhar vigilante das catequistas, a Menina Amélia, a Menina Graça a tia Estela Passaraça e a Menina Maria de Jesus. As meninas ficavam todas juntas, com os seus vestidinhos engomados e com o lencinho de assoar bordado, preso na mão. A missa demorava, algumas pessoas adormeciam, no abandono do corpo enfim repousado e aconchegado pelo calor e pelo já longo sermão, previamente elaborado, do pároco.
À saída da missa todas as pessoas se concentravam em redor da igreja, agrupando-se para cumprimentar os familiares e para por a conversa em dia. Lembro-me de ser muito pequena e olhar em redor e ver um mar de saias compridas e já não saber qual era a da minha mãe. Cumprimentavam-se os familiares, reviam-se tios e tias, avós e netos, recebiam-se carinhos e palavras calorosas. Os homens dirigiam-se para a taberna, com os filhos ainda rapazitos a reboque e confraternizavam, acompanhados de um copito de vinho, onde por vezes se perdiam, até tarde.
No muro da praça, alguns agricultores vendiam fruta da época. A mãe comprava-nos um dióspiro ou uma romã a cada um que sabiam a pouco e nos ajudava à subida da quelha, no regresso a casa. E no tempo das melancias, era com cada uma, enormes, vermelhinhas e suculentas. Estas, era o pai que as comprava e carregava ao ombro, quelha acima.
Da parte da tarde, por vezes, íamos visitar os avós maternos à Oriana. Fazenda enorme soalheira e fértil situada na parte sul da vila. A casa ficava situada mesmo junto à estrada nova, pelas traseiras e a frente virada para sul, com uma varanda corrida de madeiras cruzadas em losangos, entrelaçadas por trepadeiras, cravos e cravinas bem cheirosas. As flores preenchiam também parte dos muros que dividiam os leirões e que em certas alturas do ano se enchiam de cores.
Juntávamo-nos aos tios e tias, que ficavam a conversar, enquanto os miúdos se entretinham nas brincadeiras. Às tantas, o avô João Prata pedia à avó para ir ao forro buscar fruta para dar aos netos. A avó Doroteia subia os degraus largos de madeira da escadaria que levava ao forro. Lá em cima no soalho, estendiam-se as maçãs sobre a palha que assim se conservavam nos meses de inverno. Encostadas à parede, arcas enormes de madeira onde eram guardados os cereais. Ao lado, as bilhas de zinco com o azeite. Então a avó descia a escada com uma abada de fruta e distribuía pelos pequenos. Mas estes, rebeldes e ainda insatisfeitos, corriam pelos leirões abaixo que se estendiam desde a casa até ao ribeiro, férteis, salpicados de cores, transformados em pomares onde as laranjeiras, carregadinhas de laranjas, abundavam.
No lameiro, altos arbustos em flor, como o noveleiro, carapeteiro e roseiras, ladeavam a represa que ligava o ribeiro ao tanque a transbordar de água límpida, para a rega. Era ali também que as mulheres da casa lavavam a roupa, por vezes na companhia de amigas mais próximas, tempo também aproveitado para conviverem e trocarem confidências.
Os pequenos assaltavam as laranjeiras e tiravam a barriga de misérias e iam atirando algumas aos mais pequenos, que ficavam em baixo, à espera. A avó Doroteia perseguia-os, gritava com eles e punha-os em fuga.
A avó era uma mulher que vivia no seu mundo silencioso, habituada ao trabalho e à obediência ao marido. O avô era um homem inteligente e trabalhador, mas firme no carácter. Deu o seu melhor aos filhos, trabalho e também a educação possível para a época e permitiu-lhes crescer trabalhando no amanho das terras, que eram o sustento da família, ou aprendendo um ofício.
Noutros domingos íamos visitar os avós paternos, no Casal da Fraga: o avô Francisco e a avó Maria do Rosário. Eram pessoas humildes e com um enorme coração. Havia sempre uma fatia de pão com queijo fresco para os netinhos.
Em cada família das tias do Casal e na nossa, havia um domingo por ano que era o dia da matação. Toda a família se juntava: logo de manhã, os homens chegavam para matar e pendurar o porco, mais tarde chegavam as mulheres que, após um farto almoço com toda a família, iam lavar as tripas ao ribeiro, cortar as carnes, temperá-las e tratar dos enchidos. Após uns dias era ver o fumeiro junto ao tecto da cozinha por cima da lareira, com as morcelas, as chouriças, os chouriços e as farinheiras, que emanavam um cheirinho de fazer crescer água na boca.
Também havia o domingo de Páscoa, da Ressurreição. As famílias limpavam cuidadosamente as casas e enfeitavam-nas com flores. O padre Branco com as suas vestes brancas levava a água benta. O Sacristão, o sr. António Maria, com a sua batina vermelha, levava a Cruz de Cristo, toda enfeitada com flores. Os donos da casa mais os familiares próximos faziam um círculo à volta da sala e era-lhes dado o Cristo a beijar. A casa era abençoada pelo Padre, com a água benta. Os pequenos corriam de casa em casa a beijar Nosso Senhor e iam comendo e enchendo os bolsos com os doces e tremoços, que cobriam as mesas.
E no domingo da Senhora da Orada? Era uma alegria. Na véspera tratava-se da merenda, onde não faltava o frango frito e os ovos verdes. Na manhã de domingo, todas as veredas, caminhos e estradas, desde São Vicente e povoações dos arredores, se enchiam de peregrinos, carregados com as cestas do almoço, na mão ou à cabeça, cantarolando, em direcção à ermida. Ao aproximarem-se, já se ouvia o padre e os fiéis a rezarem o terço. Toda a zona envolvente se enchia de barraquinhas, onde se vendiam guloseimas e brinquedos para regalo da pequenada. As mães não podiam deixar de comprar aos pequenos a Nossa Senhora de Açúcar, que era pendurada ao pescoço por uma fita e depois comida no regresso a casa. As pessoas enchiam o terreiro da capela, para ouvir a missa, sob a sombra das grandes amoreiras, no chão, um tapete de flores branquinhas. A seguir à procissão, as famílias procuravam-se e juntavam-se para almoçar: estendia-se uma manta de trapos no chão, à sombra de pinheiros ou amieiros, no meio de mato florido ou relva, o barulho da água a cantarolar no ribeiro e dos passarinhos a cantar. Por cima estendia-se a toalha, onde se colocava a merenda. As famílias sentavam-se em redor, comia-se com vontade e convivia-se.
Quando já era mais crescida, nos domingos à tarde e com a difícil e conseguida permissão dos pais e com a promessa de regressar antes de se fazer noite, ia sair com as minhas amigas. As conversas aconteciam na Praça, na Fonte Velha e por vezes no café da beira da estrada, onde bebíamos uma coca-cola, uma Pepsi ou uma Seven-Up, acompanhada com um prato de amendoins. Quantos namoros começaram assim!
Dávamos passeios na estrada nova, por vezes com alguns rapazes no encalço, uns metros atrás. Mandavam olhares comprometedores e piropos. Havia risos entre os grupos, por vezes trocistas. Nas árvores da estrada eram gravados nomes, corações, juras de amor.
Sentávamo-nos na Praça e jogávamos ao anel e ao lenço, com os rapazes. Era o ponto de partida para uma aproximação entre rapazes e raparigas.
À tardinha quase ao por do sol com o tempo bom, havia baile na Praça, no cantinho, ao pé do café da tia Janja. O César montava a aparelhagem que ligava ao café e punha o funil na árvore do canto da Praça que se enchia com músicas e alegria.
As raparigas sentavam-se de um lado e os rapazes do outro, dançávamos Rock and Roll em grupo, slows e corridinhos. Quando a música era para dançar a dois, os rapazes faziam sinal à rapariga ao longe, ou iam busca-la, se se sentissem seguros. Dançáva-se ao som dos ABBA e outras músicas então em voga. Era então o tempo do despertar de novas emoções, de incendiar as paixões, dos encontros e desencontros.
Quando estava muito frio e chuva, o baile fazia-se num salão ao pé da capela de São Sebastião. Este era também utilizado para teatro e projecção de filmes, o cinema ambulante. As bancadas eram feitas com tábuas de madeira corridas, o filme era projectado num grande papel branco ou um pano a cobrir o palco. Lembro-me do filme que me impressionou e vi naquela sala: O Tubarão. Uma delícia e uma saudade enorme daqueles domingos.


Tina Teodoro

domingo, 14 de maio de 2017

O Espírito Santo

Publiquei, a 3 de abril de 2011, um artigo intitulado Os franciscanos em São Vicente. Recupero a parte inicial:

«A presença franciscana remonta, na nossa terra, possivelmente, ao século XV ou XVI. Quase todos os templos da Vila são desses finais dos tempos medievais e inícios da Idade Moderna, exceto a Igreja Matriz (erigida na época da fundação da povoação) e a Orada (é muito mais antiga que a Matriz, mas a atual capela também foi construída naquele período).
Nesses fins da Idade Média, São Vicente terá alcançou o seu máximo desenvolvimento económico e social. Houve então riqueza para levantar templos, palácios e equipamentos públicos, como a Câmara Municipal e o Pelourinho.
A capela de São Francisco não foge a esta regra. O grande arco de volta perfeita, no seu interior, com a aresta cortada, é, na nossa Beira, tipicamente quinhentista. Esteve, até há poucos anos, pintado de azul.
Mas o templo não foi, desde o início, de devoção a São Francisco, mas sim a Santo António, ele próprio franciscano e contemporâneo do fundador da Ordem Franciscana, com quem ainda se encontrou, na Itália que depois o adotou como seu e onde se tornou um dos santos maiores da Cristandade.
Foi, pois, a capela dedicada a Santo António, até 1744. Nesse ano, veio a São Vicente um grupo de frades franciscanos pregar uma missão. E sementeira foi de tal modo fecunda que, nos anos seguintes, a capela deixou de pertencer apenas a Santo António para a ser, sobretudo, dedicada a São Francisco. Nela teve sede, logo de seguida, a Irmandade da Ordem Terceira…»


São Francisco recebendo a bula da criação da Ordem Terceira das mãos do Papa Inocêncio III. 
Procissão dos Terceiros, 2010 ou 2011.

Ando a ler o livro FRANCISCO, Desafios à Igreja e ao Mundo, do Pe. Anselmo Borges, e ontem encontrei algo que diz diretamente respeito a São Vicente da Beira. Cito uma parte do capítulo “As «sopas» do Espírito Santo”, páginas 242 e 243:

            A propósito das festas do Divino Espírito Santo, nos Açores, escreveu o Pe. Anselmo Borges:
            «Se formos à procura da origem destas festas, encontramos um monge célebre do século XII, Joaquim de Fiore, que deu o joaquinismo. Segundo ele, a História do mundo está dividida em três idades: a Idade do Pai ou da Lei, que é a idade da servidão e do medo; a Idade do Filho, que é a idade da submissão filial; a Idade do Espírito Santo, na qual se ia entrar, e que é a idade do Amor, da Liberdade e da Fraternidade.
[Segue-se um parágrafo em que se refere o eterno conflito no seio da Igreja entre o lado institucional e hierárquico e o lado espiritual e fraternal; a esta nova mensagem revolucionária tinham aderido os franciscanos espirituais, desgostosos com os papas que abafavam o Espírito. Os franciscanos espirituais viriam a abrir um convento na serra da Arrábida.]
            Em 1282, D. Dinis casa com D. Isabel de Aragão, a futura Rainha Santa. (…) Toda a família da nova rainha de Portugal era partidária dos frades espirituais e a própria rainha possuía um conceito franciscano de vida: simplicidade, despego dos bens terrenos, amor aos pobres e fracos. Santa Isabel protegia os franciscanos, e foi por seu intermédio que entrou um culto especial ao Espírito Santo. Fundaram-se confrarias do Espírito Santo, irmandades de socorro mútuo, e instauraram-se as Festas do Império do Espírito Santo, nas quais se celebrava o Pentecostes, comemorando a descida do Espírito santo sobre os Apóstolos.

            Ora São Vicente da Beira, embora nos últimos séculos não tenha nenhum culto ao Espírito Santo, teve-o na Idade Média, precisamente na sequência da difusão do joaquinismo em Portugal, pelos franciscanos protegidos da Rainha Santa. É que, em 1362, menos de 100 anos após a chegada de Isabel de Aragão a Portugal, existia na Vila a albergaria do Espírito Santo, certamente gerida por uma confraria do Espírito Santo. Pensa-se que foi esta irmandade que deu origem à nossa irmandade da Misericórdia, na sequência de nova dinâmica fraternal criada por uma outra rainha, D. Leonor, nos finais do século XV. Os fins eram os mesmos e talvez até a albergaria da Misericórdia, situada no início da Rua da Misericórdia, fosse a mesma antes chamada do Espírito Santo.

José Teodoro Prata

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Tempo de milagres

Os autores têm tentado, ao longo dos séculos, explicar o nosso mundo, quer material e físico, quer espiritual. A matéria, de certa forma, impõe-se-nos aos sentidos. O que não acontece com o mundo espiritual. Pese embora tudo não seja assim tão simples, vamos supor que é! E, assim, nada espanta que seja mais fácil explicar o primeiro que o segundo. Acreditar no mundo espiritual é mesmo, para muitos, uma impossibilidade. E essa é a maior razão, por que, talvez, metade da humanidade se diz descrente, ateia ou agnóstica. Mas vejamos: o que dizemos nós acerca do Amor, da Justiça, da Paixão ou da Beleza?! A nossa vida está carregada dessas vivências, desses sentimentos! E todos eles fazem parte do nosso mundo afetivo, emocional, irracional, numa palavra, espiritual. À nossa razão, mesmo com a sua dura lâmina e finíssimo corte, é vedado penetrar na Alma.

Tem isto a ver com uma pergunta que se julga oportuna e atual: que fenómeno, afinal, se terá passado em Fátima? Ou nada se terá passado, a não ser uma espetacular manifestação popular, sedenta de um unguento para a suas feridas corporais e espirituais? Não podemos negar as experiências pessoais destes casos, se relatadas por pessoas idóneas e de boa fé, tomando-as como fantasias. A questão é saber como podem tais fenómenos ser entendidos pela generalidade da população, se só os que os vivenciaram os puderam conhecer? Percebe-se por que os três pequenos pastores de Fátima, pediram à visão, a qual diziam ser Nossa Senhora (Mãe Terrena do Jesus histórico), que fizesse um milagre que seria o sinal para que todos acreditassem no que eles próprios vivenciaram.

Esse terá sido o chamado milagre do sol, a 17 de outubro de 1917. Já lá iremos. Mas sobre Fátima há explicações para todos os gostos! Uns dizem que foram extraterrestres. Entre teólogos e padres católicos, uns dizem que foram aparições, outros, visões. O padre Mário de Oliveira (católico dissidente), nega o caso de Fátima. Frei Bento Domingues parece que também tem dúvidas quanto à narrativa das chamadas aparições. O atual bispo de Leiria-Fátima, compara a visão dos videntes com o Crucificado. Isto é, quem morre fisicamente não pode mais aparecer aos nossos olhos com a sua dimensão material. Outros se pronunciaram. De entre todos, Ratzinger, iminente teólogo, atual papa emérito, Bento XVI. O antropólogo Moisés Espírito Santo entende que Fátima é uma manifestação do Islão (com base na ocupação do território português pelos Mouros). Fátima é a filha do Profeta Maomé, sendo, por isso, um topónimo árabe, etc., etc. Um ponto, porém, parece impor-se como convergência de muitos dos autores e estudiosos do fenómeno. Dizem que algo se passou em Fátima, especialmente, naquele dia 13 de outubro de 1917! O único milagre relacionado com o sol é descrito no Antigo Testamento, quando se diz que Deus parou aquele astro para dar tempo a que Josué pudesse desbaratar o inimigo de Israel, com quem travava uma batalha, tarefa que não poderia levar a cabo, caso entretanto anoitecesse! Trata-se, certamente, de mais uma descrição simbólica de que está pejada a Bíblia!

Como crente, ressalvo a ideia de que a Deus nada é impossível. Uma premissa irredutível! Mas como curioso destes acontecimentos e ser racional, admito que será lícito assentar no seguinte: não é admissível que o sol físico, o astro sol, se tenha deslocado um centímetro que fosse do seu lugar! Porque isso seria uma hecatombe universal com consequências inimagináveis para a vida do sistema solar e, particularmente, da Terra! Por outro lado, se se tratasse de um fenómeno dessa magnitude, tal teria que ser visto em cerca de metade da Terra. Quer dizer, em todos os locais onde, àquela hora, o sol fosse visível, caso não houvesse nuvens! Atenta, obviamente, a hora e o fuso horário de Portugal. Com efeito, sabendo nós que Terra é redonda, ela está permanentemente iluminada de um lado, onde é dia, enquanto no outro é noite.

Ora, parece que não existe notícia de qualquer registo em observatórios astronómicos por esse mundo fora, relativamente aos acontecimentos desse dia em Portugal. Se assim for, o caso leva-nos, forçosamente, à conclusão (como dizem algumas fontes) que o fenómeno terá tido lugar no céu de Fátima apenas a cerca de 500 metros de altura (numa avaliação grosseira), a calcular a partir do local mais distante do epicentro onde terá sido observado (e de que há notícia), que foi a casa do poeta Afonso Lopes Vieira, situada a cerca de 40 Km de Fátima, que disse tê-lo testemunhado.

Alucinação coletiva da multidão, como a Psicologia procura explicar? Esta tese não colhe juntos dos estudiosos (ou pelo menos da maioria), porquanto o acontecimento foi visto por muitos: crentes, descrentes, ateus ou agnósticos. E se os nossos olhos só veem o que querem ver, só os crentes estariam imbuídos de uma predisposição interior para aceitar o fenómeno como uma ilusão. Como explicar que uns tenham visto e outros não? Dois exemplos para ilustrar: algumas fontes dizem que o poeta e ensaísta português, António Sérgio, estava lá acompanhar a esposa e nada viu. Mas há outra testemunha ocular que atesta o contrário. Trata-se de um professor de Ciência Naturais da Universidade de Coimbra que nunca tinha visto um fenómeno como o que presenciou. E não conseguia explicar o que tinha acontecido, com o sol a rodar e a mudar de cor.
        
E aconteceram todas aquelas coisas descritas como maravilhosas por milhares de testemunhas. Coisas sobejamente conhecidas em Portugal e em todo o mundo! Em face do que a Igreja Católica acabou por aceitar tudo como manifestação sobrenatural e divina, oficializando o culto mariano de Fátima. O que foi, definitivamente, confirmado com a vinda, pela primeira vez, de um papa a Fátima, Paulo VI, em 1967 (por ocasião do 50.º aniversário das aparições). Já vimos que, sobre estas coisas, cada um diz o que sente ou o que lhe parece, com mais ou menos informação.  

Já foi publicado neste blogue o seguinte texto: «E, quando já não imaginava que via alguma coisa mais impressionante do que essa rumorosa mas pacífica multidão animada pela mesma obcessiva ideia e movida pelo mesmo poderoso anceio, que vi eu ainda de verdadeiramente estranho na charneca de Fátima? A chuva, á hora prenunciada deixar de cair; a densa massa de nuvens romper-se e o astro rei - disco de prata fosca - em pleno zenith aparecer e começar dançando n'um bailado violento e convulso, que grande numero de pessoas imaginava ser uma dança serpentina, tão belas e rutilantes côres revestiu sucessivamente a superfície solar…
Milagre, como gritava o povo; fenomeno natural, como dizem sábios? Não curo agora de sabel-o, mas apenas de te afirmar o que vi...O resto é com a Ciência e com a Egreja...» AVELINO DE ALMEIDA 
(in Jornal “O Século”, de 17/10/1917). A grafia é da época).

Perante um testemunho tão claro evidente, creio que não foi tanto a história dos três meninos, nem foram os textos da Lúcia, embora em coerência com os acontecimentos históricos posteriores, que lograram levar tanta gente a acreditar em Fátima! Também não foi a revelação do terceiro segredo, no ano 2000, que ficou muito aquém das expectativas. E que se baseia apenas numa interpretação peculiar daqueles textos pelo papa João Paulo II. O que, verdadeiramente, pôde levar a acreditar que algo de extraordinário se passou em Fátima, em 1917, foi este texto desse desconhecido e obscuro jornalista d’ “O Século”, Avelino de Almeida, publicado naquele jornal alguns dias depois do sucedido. Um insuspeito antigo seminarista do seminário de Santarém, ateu e anticlericalista.

Na verdade, nunca saberemos o que terá acontecido naqueles dias na Cova da Iria. E ainda menos conheceremos a sua verdadeira natureza. Porém, continuamos a ver passar essa impressionante multidão de peregrinos! Já não são 50 ou 60 mil, mas 1 milhão! Massa de gente, consciente da sua inexorável finitude! Sôfrega de curar as maleitas próprias da sua condição! Pedindo um bálsamo para as dores e um momento de paz! Como há dias dizia um frade anónimo na televisão: “Talvez seja esse o maior milagre de Fátima”!

A fé é isso mesmo. É acreditar. Apesar das dúvidas, que sempre teremos. Porque acreditar, está para além de toda e qualquer compreensão. O tempo é, pois, de milagres!

José Barroso