quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Santa Águeda (aqui tão perto...)

A lenda:
Águeda era italiana. Nasceu por volta do ano 230 na Catânia; pertencia a uma família nobre e rica. As suas riquezas, aliadas à sua beleza, chamaram a atenção do Cônsul Quinciano que a pediu em casamento. Mas, desde cedo ela tinha sentido um chamamento de Deus, consagrando a sua virgindade ao Senhor, seu amado esposo.
Neste tempo, o imperador Décio levantou uma forte perseguição ao cristianismo e os que não renunciassem a Cristo eram punidos com muitos sofrimentos, até à morte.
Com a recusa em casar-se, Águeda foi denunciada como cristã e submetida a um humilhante processo condenatório. Quando foi interrogada e disse que pertencia a uma nobre família e era serva de Jesus Cristo, o governador entregou-a a uma mulher de má fama com o objetivo de a corromper. Foi tudo em vão, porque a mulher foi vencida pela fé e pureza de Águeda.
Foi então submetida a torturas: despida, foi arrastada sobre cacos de vasos e brasas, e depois arrancaram-lhe os seios. Quanto a esta barbaridade, ela falou para o juiz: «Não te envergonhas de mutilar na mulher o que a tua mãe te ofereceu para te alimentar?». Uma tradição diz que naquela noite lhe apareceu o apóstolo S. Pedro que a curou daquela mutilação. As torturas continuaram num martírio que a levou até à morte, por volta do ano de 251.
No primeiro aniversário da sua morte, deu-se uma erupção do vulcão Etna. Cristãos e pagãos, temerosos, tomaram o véu que cobria o túmulo de Águeda e atiraram-no contra as lavas que imediatamente pararam, salvando a cidade de Catânia.

O culto:
Santa Águeda é invocada para proteger contra os vulcões e incêndios. É também invocada para proteger dos males da mama, por causa do seu martírio e cura milagrosa. É uma das santas mais veneradas em Itália; só em Roma tem 12 igrejas dedicadas a ela.

As cantigas:
Ó senhora Santa Águeda,
Quem vos varreu a capela
Foi o ranchinho da Póvoa
Com um raminho de macela.

Ó Senhora Santa Águeda,
Vosso caminho tem tojos
Bem podíeis vós senhora
Pô-lo de cravos cheirosos.

Ó Senhora Santa Águeda,
Minha roseirinha branca
Quando viestes ao mundo
Logo foi para ser santa.

Ó Senhora Santa Águeda,
Que lá estais ao pé do monte
Dá-me uma pinguinha de água
Senhora da vossa fonte.

Ó Senhora Santa Águeda,
Que estais lá ao pé da bica
Dai saúde aos que lá vão
E também aos que cá ficam.

A Senhora Santa Águeda
Tem um jardim na levada
Mandai-o regar, Senhora,
Por uma mulher casada.

A Senhora Santa Águeda
Tem um jardim na ribeira
Mandai-o regar, Senhora,
Por uma moça solteira.

Recolha feita numa sessão de leitura de textos e cantares alusivos a Santa Águeda, no Centro Cultural da Póvoa de Rio de Moinhos, no âmbito da comemoração do dia em que se venera a Santa: 5 de janeiro.

M. L. Ferreira 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

O alacrário (1)

Naquela época, para regar, minavam-se os morros ou as barrocas próximas das hortas, a fim de procurar a tão preciosa água para a fertilização dos solos. Se a fazenda fosse do próprio. Se não fosse, e a trouxesse de renda ou ao terço, a tarefa competiria ao dono. Às vezes, a água era repartida pelos dias da semana, conforme os usos, com os vizinhos dos terrenos contíguos.
Na Beira predominava o minifúndio. À roda da vila, de acordo com a orografia, a maioria das terras de cultivo dispunha-se em socalcos. Que se sustentavam por paredes suficientemente altas e grossas de pedra de granito ou xisto, conforme a que mais abundasse no local. Por forma a compor os leirões. Se fosse para a serra, a descambar para nascente, era o granito. Já, na vertente norte e a poente, para a Devesa, a caminhar para a Charneca, o xisto é que punha lei.  
Surribavam-se na horizontal, oito ou dez metros ou mais. A boca da mina ficava à face do cômoro do cerro ou da parede que segurava o terreno. Fazia-se aí, até meio, um muro de retenção da água. Por baixo, passava um bueiro, onde era colocada, na parte de dentro, uma tranca para o despejo.
O regime pluvioso era, na altura, rico. E a profundidade da escavação variava, conforme a proximidade da nascente, de acordo com a veia de água e humidade do terreno! Tanto podia estar à babugem, como a metros de distância. Era preciso procurá-la!
— Ó Manel! Ó Alfredo! Cavem aí nesse cabeço, para lá, sempre a direito, até dar água! — dizia ti’ Fecisco Abelha para os filhos, depois de escolher um local que lá lhe parecia adequado.
O nome “Abelha” circulava, somente, entre alguns dos membros da família, como uma mangação inocente. O ti’ Fecisco, por vezes, exasperava-se, por uma qualquer razão, mais ou menos tangível. O que acontecia, não por razões de caráter iroso, que, esse, não era o seu. Mas apenas por simples excessos de impaciência, repentinos e curtos. Soltava, nessas ocasiões, uns silvos, “zzii, zzii”, semelhantes ao zumbido de uma abelha ou de uma vespa, se algum destes insetos nos passava a rasar as orelhas! Não se dava muito pelas exaltações do bom do homem. Pois não produzia sons audíveis. Percebiam-se apenas aquelas sibilações. E um nadinha de gaguez que lhe provocava, nessas ocasiões, a desordem mental! Mas, rapidamente, ti’ Fecisco retornava ao seu equilíbrio e normalidade. No mais, era boa pessoa, magnânimo, e de muita convivência com o seu semelhante.
A ordem que dera aos filhos para escavarem no local que lhes indicara, fora o ponto de partida para começar a mina do Cerro Velho. Um pequeno escolho de terreno pedregoso, de rocha negra e miúda, na sua fazenda do Monte do Gaio. Esta mina possibilitava o alargamento da regadia aos leirões cimeiros. Dela também se abastecia a casa, para beber e cozinhar. A água que dava, porém, não era suficiente para tudo! Mais abaixo, havia outras minas. Que, com o auxílio de chaboucos, irrigavam os terrenos inferiores.  
Já tinha entrado o verão. Os seus filhos do meio, jovens já maduros, peitos para fora, embezerrados de suor, ao timbre da voz forte do pai atiravam-se à labuta que nem gato toirão a coelho! Não se discutia a ordem de um pai, como não se discutia a de um juiz!
— Eh! Meu pai, não se enfade! Vamos já começar a cavar, a ver se aí dá nascente! — diziam eles, solícitos, mesmo que, por dentro, não lhes quadrasse lá muito bem aquela imposição paterna.
Se calhar, aquilo era demais!
— Que diabo de vida esta! — comentavam, baixinho, entre si. — Não há meio de chegarmos ao domingo para podermos ir beber meio quartilho na taberna do Manco. Ou dar um bate-pé no bailarico, à esquina do Largo Grande, a toque de realejo!
Além daquela mina já tinham feito outras. E alguns poços. Nesta fazenda do Monte do Gaio e noutras que os pais tinham de seu! Eram serviçais e obedientes, mas aquele trabalho era violento! Às vezes desanimavam!
Faziam-se muitos outros trabalhos nas terras. Lavravam-se as leiras com a junta de bois. Colhia-se a azeitona. Vindimava-se. Podavam-se as árvores. Semeavam-se as batatas, as hortícolas e os cereais de trigo, milho e centeio. Apascentava-se o gado. Ceifava-se. Faziam-se os rolheiros, com molhos de palha e feno, para o inverno. Regava-se a horta e o milho no verão. Ia-se à lenha. Metia-se mato na cama do gado. Tirava-se o estrume!
Mas lá trabalhar nas minas e nos poços, essa era uma empreitada levada do diabo! Chegava a haver contendas, porque, a uns, os mais novos, o pai mandava a regar ou a guardar as cabras e a outros a escavar a mina ou abrir o poço! Até parece que tinha preferências entre os filhos, condenando uns e premiando outros!
— Eh! Meu pai, porque é que o nosso Jaquim e o nosso João, vão sempre a regar ou guardar as cabras e nunca vêm trabalhar para a mina?! Quando é que nos calha a nós ir regar e pastorear e a eles virem para aqui surribar?! — reclamavam.
E é verdade que aqueles a quem encarregava de regar ou guardar gado era como se os mandasse para o Albergue da Mitra. Eram trabalhos muito mais leves! Nada semelhantes em cansaço e esforço! 
O que ia regar era só abanar a tranca da presa, com um solavanco. E deixar correr a água pelo bueiro, a meio rego, para que a levada não fosse muito vigorosa. Pois, se o fosse, levava, à frente, os tornadouros! Ficava, depois, em pé, encostado ao sacho, de costa direita, a vigiar a água a marear no renovo. E punha-se, depois, a assobiar ou trautear uma canção!
O outro, o que ia apascentar, soltava o gado. Limitava-se a segui-lo e a vigiá-lo até ao mato ou ao pasto. Entretinha-se, depois, a fazer um pífaro de cana. Ou a gravar uns desenhos no cajado, com a navalha que trazia sempre no bolso. E que manejava muito bem. Fosse para cortar o toucinho em cima da broa, à merenda. Fosse para fazer aqueles artefactos. 
Guardar gado e regar, esses é que eram dois trabalhinhos que nem duas minas! Mas de oiro! De boa vida!
— Calem-se, rapazes, que esses vossos irmãos ainda não têm corpo e ossos bem formados para aguentar esse trabalho! Há de chegar a vez deles! Haja concórdia e boa razão! E quem não tem olhos que os abra!
Tinham que se calar! As coisas eram assim, até se tornarem autónomos e casarem! Se vinham da tropa e eram mais serôdios e não casavam logo, continuavam a trabalhar na casa paterna. Que os laços daquelas famílias eram deveras agregadores!
Mas, nos protestos, nunca se atreviam a reclamar dos trabalhos desempenhados pelos irmãos mais velhos. A idade era um posto. Na tropa, como em casa! A autoridade dos anos, colocava-os próximo do poder do pai, que coadjuvavam. Faziam trabalhos menos pesados, é certo, mas de muito maior responsabilidade. Os que tinham umas letras, iam a Castelo Branco pagar a décima e tirar as licenças. Ou ao Fundão, escolher e comprar a batata de sementeira e adquirir as ferramentas necessárias para o trabalho. Pelo S. Miguel, iam mercadejar e trocar algum gado. Ou vender um ou outro saco de semente de pinho bravo. Assim, o ti’ Abelha, gerindo tensões, pondo regras e dirimindo conflitos entre os filhos, conseguia a desejada harmonia. O que, numa família grande, nem sempre era fácil!
Todo o labor a revolver a terra à procura de água, era a pulso, de picareta em punho e padiola na mão, ou a balde, a derrear os braços! Se fosse de verão, dormiam na fazenda, chegados a um dos lados da casa. Onde armavam catres em madeira, sobrepostos, dois a dois, a partir de meio metro do chão térreo. Separavam-nos por divisórias com paredes de ripa, carqueja e barro amassado. Sobre eles, punham colchões de palha centeia. Tudo aquilo, já se vê, não era muito confortável. E aí é que eram elas, com a moinha do corpo do trabalho da mina! Mas tudo passava. Eles eram jovens encorpados. Tinha que passar! De manhã, ainda de madrugada, estavam prontos para outra!
  
No geral, tudo era fartura de água! Mas o certo é que, de vez em quando, também havia secas. Mais raras, mas havia! E das grandes! Verões abrasadores de estiolar e calcinar tudo! A terra ficava feita em pó! Conquanto que as enormes e longas invernias que alagavam tudo, fossem muito mais comuns!
Muito calor e muito frio! Era assim a diversidade da Natureza, a desafiar a bazófia dos homens que tudo julgam saber! Ou seria o Diabo a querer trocar as voltas aos desígnios de Deus! Sabe-se lá! O mal, às vezes, parece que quer vencer, mas o bem acaba por triunfar! E a bonança retorna sempre ao seu lugar, trazendo equilíbrio ao mundo! Porque Deus Super Omnia!
As agruras do tempo, porém, parecia que queriam arrancar a samarra a quem andava nos trabalhos penosos do campo! Mãos engadanhadas e dedos retorcidos do frio, no inverno! Suor a escorrer, às bagas, pelas costas abaixo, com a camisa ensopada, no verão! Com um calor abafado, de faltar o ar!
Ti’ Fecisco Abelha dizia, muitas vezes, na roda de amigos, meio a brincar, mas sabendo que o caso era sério, na bondade da sua rudeza, moldada por uma vida de canseiras:
— O bicho homem é avesso a extremos! Não há senso nestes tempos! Isto até parece obra do sacana do Barzabu(1), a retorcer-se, quando a luz da espada do Arcanjo Miguel lhe atravessa a crusta!   
Manel e Alfredo, às ordens do pai, um tanto às cegas e, a muito penar, lá acabaram de escavar, quanto bastava. Primeiro, deram com uma pequena nascente. Parecia que vinha um pouco a medo. Depois, cavaram mais um bocado e começou a dar boa água! Finalmente tinham acabado a mina!
A certa profundidade, três dos irmãos mais velhos deixavam outros afazeres e iam ajudar. Uns a meter escoras para suster a terra e as pedras, não fosse haver uma avalanche que os soterrasse a todos! Outros a martelar, lá no fundo, de marreta e guilhos na mão! 
Ao todo, estavam em casa, ainda solteiros, sete rapazes e duas raparigas.
Mas quantas vezes os trabalhos terminavam em vão! Fosse porque apanhavam um veio de pedra rija, intransponível, que impedia o avanço e não pagava a pena recorrer a tiros de pólvora. Fosse porque, depois de muito vasculhar a terra, em certos sítios mais secos, a nascente teimava em não aparecer!
Se não se encontrava água, o pai, descoroçoado, mandava arrasar tudo!
— Ai o raio da mina de um ladrão que não me dá água nenhuma! Tanto prejuízo, em trabalho, que esta alma do diabo me levou! — lamentava-se Abelha. — Isto é que este damonho me espetou uma cria! Hã!
Muitas vezes não se tinha sorte! Era só isso! Porque, nessas coisas de vedores ou radiestesistas, ou lá como lhe chamavam, o ti’ Fecisco Abelha, nunca, por nunca ser, acreditou!
Desta vez, acertara! A mina dava água que bonda! Era mais um ponto de frescura na paisagem árida do verão! Na sua humidade obscura, balsâmica, podia-se esfriar um pouco da calmaria. Lavava-se a cara ardente. Matava-se a sede na água frígida, de fazer doer os dentes! Porque, em redor, na modorra das tardes tórridas, apenas o canto estonteante da cigarra, atravessava, devagar, o ar a estalar da canícula!

Os anos foram passando! Os filhos tiveram filhos! Renovaram-se gerações! Ao tempo, os netos mais pequenos acompanhavam, muitas vezes, os avós na vida do campo. Fosse porque os pais tinham outros compromissos, fosse porque não se encontrava uma tia ou mesmo uma vizinha que tomasse conta deles. No verão, mesmo se já frequentassem a escola, gozavam as férias grandes! Iam às ceifas, às debulhas, às regas!
Eram os primeiros contactos com a terra e a água. Com o calor e a fresquidão. Com a palha seca dos cereais prontos a ceifar ou com o verde das ervilhas, dos feijoeiros ou das alfaces. Com o tempo bom, sempre espinoteavam mais! Amiúde lhes apetecia deitarem-se na terra molhada, à sombra do milho, a refrescar! Ou brincar às represas! E lançar, na levada, pequenos barcos de papel! Ou de corcódea de pinheiro, aparelhados a canivete!
Um dia, no verão, no Monte do Gaio, de boas e férteis áreas de cultivo, ótimas hortícolas, frescor extravasante, era já tarde, tardinha!
Ti’ Felismina dos Casais, avó, como todas, babada dos seus netos, regava. Mesmo ao fundo, junto à parede que dava para o leirão de baixo! Era vital para as couves, as nabiças, as alfaces e outros produtos verdes, necessários, dia a dia, na mesa da família. Mas havia também batatas e milho do alto. A rega demorava um bom pedaço!
Ti’ Felismina, era uma mulher de bondade angélica, de alegria permanente e galhofeira. Corria pelos Casais que nunca ninguém a vira zangada! Tinha o dom da piada fácil, simples e irónica. Contrastava, em parte do seu modo de ser, com o marido, o ti’ Fecisco Abelha, de quem já se falou, com quem era casada há longos anos.
Àquela hora estava já mais fresco nas terras baixas, junto ao pequeno ribeiro que ali passava. Onde havia água corrente, apenas até ao mês de março! Daí, a necessidade de explorar pontos de captação. A prática era corrente em todas as fazendas cultivadas. Exceto nos lameiros, junto à ribeira, onde marinhava todo o ano! Por isso ti’ Abelha abrira outra mina. A mina do Cerro Velho. Era com a água dessa mina que a avó regava, naquele dia. Tão santamente como de costume!
A tarde já era curta, mas, no verão, daí até à noite, era ainda um dia de inverno! A rega tinham que ser feita com o sol a descair para o Ocaso. Assim, a terra conservava por mais tempo a frescura deixada pela água. Que não se dissipava tão rapidamente com o calor!
Tinham ido com a avó, naquele dia, ao Monte do Gaio, dois dos netos mais novos. Eram dois rapazes, primos direitos entre si e ainda crianças. Andariam pelos seus sete anos. Enquanto ela fazia a rega, tão distraída e compenetradamente como sempre, os netos tinham-se entretido, na brincadeira, perto da boca da mina, à saída para o primeiro tornadouro. No ponto onde estavam, achavam-se encobertos pelas couves e nabiças da horta e, sobretudo, pelo milho alto, que os ultrapassava, em altura, uns bons vinte centímetros! De modo que, a avó não os via. E eles apenas a divisavam, espreitando por entre as caneiras do milho!
Dizia-se que a velhacaria nascia quando se completavam os sete anos! Terminava aí o estado da inocência. Embora isso não se soubesse. Pois esse podia ser um daqueles pontos inacessíveis em que o enigma do homem permanecia. À falta de meças, porém, aceitava-se essa idade, como convenção, para se responsabilizarem os jovens, em certos termos, perante Deus e os homens. Com sete anos se entrava para a escola. Com sete anos se supunha mais credível o testemunho em tribunal. Com sete anos se fazia a primeira comunhão. Em suma, aos sete anos se presumia que se podia distinguir o bem e mal!
Mas, lá dizia o ditado, “Com a canalha, nem o Diabo quis nada!”. Os adágios populares encerravam sempre uma verdade. Era a verdade da observação coletiva, da “vox populi, vox Dei”. Com a faculdade da razão, do arbítrio e da escolha, entre o bem e o mal, a canalha escolhia quase sempre o mal! Nunca lhe dava para o bem. Só fazia asneiras e cometia tropelias! O provérbio parecia, portanto, confirmá-lo!  
Tudo isso aparentava ser muito acertado. Mas talvez não fosse assim tão pacífico. Se bem se procurasse, para cada aforismo, não raramente se encontrava o seu contrário. Por outra banda, nem sempre a opinião geral traduz toda a verdade. A virtude estaria, algures ali pelo meio. Dizia-o o bom senso!
Os dois cachopos, os netos da ti’ Felismina dos Casais, não eram, nem mais, nem menos, que os outros. Praticavam, como, afinal, todas as crianças, a suas boas e más ações. Nos folguedos, punham as mães ou as avós em alvoroço, quando partiam as cabeças ou esfolavam os joelhos dos trambolhões, nas pedras da calçada velha! Mas, à noite, as correrias acabavam! Ao colo da mãe ou da avó, na paz do lar, o carinho e as momices retornavam!

Desta vez, porém, os dois garotos, tinham congeminado ludibriar a avó que fazia a rega ao fundo do leirão da mina. Os marotos, pensaram, imagine-se, em cortar-lhe a água! Para o que bastava mudar o tornadouro, logo ao início da regadia! Desviando o curso da regueira para o lado oposto ao terreno em que a avó regava. Quando esta desse pelo logro, já não teria água! O que, sem dúvida, não deixava de ser um mistério! Pois, pelo tempo decorrido e pelo terreno já regado — pensaria ela — ainda a mina haveria ter muita água! Mas, então, já os malandros estariam lá para diante, escondidos atrás de uma moita, a rir-se da tramoia! E a ver, de longe, a avó andar à nora, a procurar saber a razão do sucedido!
A maldade premeditada é sempre a pior. Porque é traiçoeira e insidiosa. Mas, nem por ser planeada, se conseguia, sempre, levar ao seu termo. Nada do que os dois mariolas conjeturaram foi concretizado!
É que, sobre o tornadouro da água que os dois tratantes tinham decidido desviar à sua avó, encontrava-se uma pedra. Era uma maneira de o reforçar. Por forma a que, a corrente, por vezes mais forte, não o destruísse e se desencaminhasse a água! O que levaria à sua dispersão pelo terreno, tornando impossível direcioná-la para o local desejado. Para cortar a água era, pois, necessário remover a pedra! Se os dois rapazes lhe pegassem, um de cada lado, seria possível deslocarem-na. A terra, por baixo da pedra, essa, seria de fácil remoção, apenas com as mãos ou com a ajuda da lasca de xisto rijo, que, para o efeito já tinham arranjado!
A irreverência, a exaltação e, pior, a falta de simplicidade, levam muitas vezes à perdição. Nas palavras que se seguem, podia ver-se o cúmulo da vaidade de um traquina:
— Deixa, primo, que eu, sozinho, sou capaz de tirar a pedra! — disse um dos mariolas para o outro, ufano da sua importância!
Então, enquanto o primo assistia, fletiu-se sobre o tornadouro. Procurou assentar melhor os pés, em terreno fixo. Esticou os braços e meteu os dedos, por baixo, em cada lado da pedra, o mais que pôde. Tanto quanto alcançavam as suas pequenas mãos. E fixou-os no vinco, mais fixe, que conseguiu tatear. Firmou-se, esforçou-se e ainda conseguiu demovê-la um pouco! De repente, porém, num ato instantâneo e reflexo, como alguém que sente uma repelência abjeta, aguda, viu-se o rapaz largar a pedra e pôr-se aos gritos, com o primo estático e boquiaberto:
— Ai, ai! Ai, ai!
Um escorpião que, por baixo da pedra, se sentira importunado na sua toca, mordera-o na mão, ferrando-o a bom ferrar! Ainda o tinham visto, de raspão, a fugir e a meter-se pelo meio das ervas! Só então o primo percebeu o que acontecera! Mas a perplexidade e o desassossego gerados, permitiram que a repugnante criatura fosse, ligeira, à sua vida, incólume e sem punição!
— Ai, ai! Ai, ai!
Aos brados do neto, acudiu prontamente a avó, acordada da quietude com que regava a horta! Inteirou-se do que se passara. E, calma e carinhosamente, como era seu timbre, tentou acalmá-lo. Passando com as suas mãos por cima da mão mordida da criança chorosa.  
— Onde é que te dói, meu filho?!
As palavras ajudam sempre o espírito, mas não aliviam a intensidade da dor!
— É aqui, avó! — apontava o menino, na sua mão, o sítio da mordedura.
— Mas não se vê cá nada, meu amor!
— Pois não, avó, mas dói-me! Ai! Ai!
É verdade que quase não se dá pelo local de certas picadas. Não fazem sangue! Mas doem! Não havia forma de consolá-lo! E fossem lá falar agora de remédios! No Monte do Gaio não era lugar para essas coisas! A farmácia situava-se na vila, longe, e já eram horas de estar fechada. Os remédios eram caros!
Os pais e avós do tempo, eram avessos a remédios. Salvavam, porém, a face, sendo engenhosos. A isso obrigava a necessidade. Tinham as suas mezinhas. Sabiam que os seus métodos em pouco ou nada atenuavam o sofrimento. Mas sempre era um gesto para enganar a mente do enfermo. Nada fazer, seria pior. Então, a avó, pôs sobre a mão doente do neto uma folha de couve. Talvez o distraísse com a suavidade fresca do vegetal. Quando a couve aquecia em contacto com o a mão, tirava-a e punha outra. Como isso não tivesse surtido efeito, meteu-lhe a mão na água. Mas, isso, arrefeceu-lha e não lhe tirou a dor. Estava à vista, que, mais ou menos calor ou frio, nenhum lenitivo trazia. Depois, pôs-lhe um pedaço de lama de terra argilosa. Diziam que fazia muito bem às picadas das vespas. Podia ser que resultasse com a picada de alacrário.
Após as primeiras horas, não era que o sofrimento fosse menor, mas a criança já se acomodara um pouco. Depois do choque inicial, passou a existir uma espécie de previsibilidade na dor. O corpo do jovem arranjara resistências naturais, como acontece com todos os organismos, perante a ofensa e adversidade do meio. O moço entrou, então, numa lengalenga magoada, “ai! ai! ai!”, prolongada e monocórdica. Era o início de uma via- sacra!
Chegava quase a noite quando regressaram a casa. A avó tentou, em vão, adormecer o neto. Como os outros remédios não tivessem logrado produzir o desejado abrandamento da dor, ainda lhe pôs manteiga na picada. Procurava tranquilizá-lo, nem que fosse, por sugestão, mais uma vez. Nada! A dolorida cantilena do rapaz, que, sem adormecer, apenas semicerrava, às vezes, olhos, vencido pelo cansaço, prolongou-se pela noite fora, “ai! ai! ai!”!
Já o dia seguinte ia alto quando a dor o deixou. E pôde, finalmente, descansar!
Mas a ti’ Felismina dos Casais nunca veio a saber da trapaça que os netos lhe haviam preparado, naquele dia, no Monte do Gaio. Afinal, a água da rega não chegara a ser cortada!
E se os remédios caseiros daquela avó não tinham surtido qualquer efeito, a sua paciência, essa, era infinita!

Notas: (1) Escorpião, Lacrau.  
(2) Belzebu, Demónio.  
Obs.: Neste texto podem ter sido utilizados termos locais ou regionais que não constam dos dicionários oficiais.

José Barroso

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Padre António Branco, 1924-2018


O Padre Branco faleceu hoje e o funeral realiza-se amanhã, pelas 15 horas, em São Vicente da Beira, sua última paróquia e terra adotiva, 
(além de sua mãe Luzia ser do Casal dos Ramos).
Foi a pessoa mais marcante da nossa freguesia, na segunda metade do século XX.

José Teodoro Prata
A foto é do Pe. José Leitão

Lurdes Pedro


Os irmãos Joaquim, Hermínia, João e Amélia
(a mãe de Maria de Lurdes Ricardo Pedro, esposa de Edmundo Pedro).
Esta irmandade (na foto faltam a Pureza, o Francisco, a José, a Augusta e a Orada, falecida em criança), a que chamamos dos Teodoros, foi gerada por António dos Santos e Maria Rosa Macedo.
Não é de todo correto generalizar o apelido Teodoro para esta família. 
Nos registos de batismo dos seus filhos, António dos Santos aparece ainda referido como António Matias, António Matias dos Santos, António Teodoro ou António Teodoro dos Santos. Isto porque o seu pai se chamava Teodoro Matias dos Santos.

Nota: Em comentário à publicação anterior, respondi ao José Barroso dizendo que a Amélia de Jesus era a irmã mais velha da sua avó Hermínia. Não é correto, pois teve vários irmãos mais velhos, incluindo a Tia Hermínia.

M. Libânia Ferreira (foto cedida pela Madalena, neta de Joaquim Teodoro)
José Teodoro Prata (texto)

domingo, 28 de janeiro de 2018

Gente nossa

Resultado de imagem para Edmundo Pedro


Edmundo Pedro faleceu ontem e vai hoje a sepultar. Estava casado com Maria de Lurdes Ricardo, filha dos sanvicentinos Amélia de Jesus (Teodoro) e João Ricardo (este combatente da Grande Guerra).

Ler esta pequena resenha da sua vida, tirada de:
https://www.dn.pt/portugal/interior/edmundo-pedro-morreu-tive-uma-vida-fantastica-9079455.html (com cortes)

Antifascista, foi preso pela primeira vez aos 15 anos e estreou o campo do Tarrafal.
Começou a trabalhar aos 12 anos numa oficina de serralharia e aos 13 já estava no Arsenal da Marinha, onde conheceu dois "vultos" do movimento operário, que o levaram nesse ano para a Juventude Comunista Portuguesa. Com 15 anos foi detido no dia 17 de janeiro de 1934 pela primeira vez, quando da preparação de uma greve geral, em abril de 1935, depois de libertado, foi eleito para a direção da JCP com Álvaro Cunhal, e aos 17 anos acabou preso uma segunda vez em fevereiro de 1936 - e em outubro desse ano foi estrear (com o seu pai, Gabriel) "o tristemente célebre" campo de concentração do Tarrafal, prisão em Cabo Verde para presos políticos da ditadura de Salazar.
Poucos, como Edmundo Pedro (nascido no Samouco, Alcochete, em 8 de novembro de 1918), podem apresentar um parágrafo biográfico da sua adolescência tão intenso como este. Antifascista, afastou-se do PCP e juntou-se ao PS no ano em que este partido foi fundado - em 1973. Depois do 25 de Abril foi deputado socialista, presidente da RTP e um contador da sua história. Morreu ontem em Lisboa, aos 99 anos, revelou fonte do partido.
A vida de Edmundo Pedro é de espanto. Esteve dez anos no Tarrafal e, com o seu pai, foi o preso que mais tempo esteve na "frigideira". "Eu bati o recorde da frigideira porque tentei fugir. O castigo era 70 dias. Eu e o meu pai estivemos 70 dias. Não se pode imaginar o que era aquilo. A temperatura lá dentro chegava a atingir quase 50 graus. À noite havia uma condensação e a humidade escorria pelas paredes e nós lambíamos aquilo. Tiraram-nos a água. Não se faz ideia do que era aquele sofrimento", recordou na referida entrevista.
Não se armava em herói sobre esses dez anos preso sem culpa formada e sem ser julgado (cortesia da ditadura). "Tive momentos em que me fui abaixo." Não foi isso, no entanto, que o fez baixar os braços quando voltou a Portugal. "Regressei a Lisboa para ser, de novo, julgado no Tribunal Militar Especial", contou ele sobre o seu "percurso existencial", uma nota autobiográfica escrita para o blogue Caminhos da Memória.
Depois da Segunda Guerra Mundial e até à Revolução de 1974, Edmundo Pedro conspirou "sempre contra a ditadura". Esteve na campanha presidencial de Humberto Delgado, em 1958, num movimento insurrecional "que pusesse fim à ditadura", primeiro no 12 de março de 1959 (onde escapou à polícia) e no "golpe de Beja", em 1 de janeiro de 1962.
Uma vez mais acabou detido, em Tavira, para onde tinha fugido depois do falhanço deste movimento. Só foi libertado em 1965, com os seus "direitos políticos" inibidos por 15 anos. O 25 de Abril chegaria antes.
Edmundo Pedro tinha cortado com o PCP quando do tempo de prisão no Tarrafal. Em setembro de 1973 cruzou-se com Mário Soares e aderiu ao PS, que tinha sido fundado em abril desse ano em Bad Munstereifel, na Alemanha.
Já na democracia, ainda passou pela prisão, em 1978, depois de terem sido encontradas 150 armas num armazém de uma empresa sua em Setúbal. Essas armas, revelou no terceiro volume das suas memórias, em novembro de 2012, foram-lhe entregues por ordens diretas de Ramalho Eanes, na noite do 25 de novembro. "O Eanes, aqui nesta mesa (aponta para uma mesa na sala de sua casa), pediu o apoio do PS para a resistência e comprometeu-se a entregar 150 armas ao PS para que colaborasse com eles", contou ao i. Nunca foram usadas e Edmundo Pedro não revelou porque as tinha. "Bastava ter dito que Eanes as tinha dado", mas achou que "não o devia fazer" por ser ele então o presidente da República.

"Tive uma vida fantástica", sintetizava ao i em 2017. Teve mesmo.

José Teodoro Prata

sábado, 27 de janeiro de 2018