segunda-feira, 25 de novembro de 2019

O nosso falar: astro, fato e garfos

Os fins de semana de um agricultor de fim de semana têm coisas curiosas. Há dias surpreendi-me com uma palavra que me saiu da boca sem que eu me lembrasse sequer daquele nosso significado. Foi ao pequeno-almoço, bem cedo, claro não tão cedo como naquele ano que eu passei em casa, tinha o meu pai regressado de França, e íamos, eu, ele e a minha mãe, alumiados pelas estrelas, madrugar às Quintas, em volta de uma fogueira, à espera que se visse para começar a colher azeitona.
A minha mulher falou-me da previsão do tempo para esse dia, mas eu rematei: O que interessa é como o astro está! Fui à rua e olhei o céu. Estava limpo, sinal de um grande dia de azeitona.
Depois, no olival, tanto falava em fato como em garfos, não estando eu a provar roupa, nem sentado à mesa a almoçar. E ria-me sozinho, naquela terra alheia, a pensar no pragmatismo dos nossos antepassados que, com um vocabulário limitado, usavam as palavras conhecidas dando-lhes diferentes significados. Ali estava eu, ou melhor, o meu cérebro, herdeiro dessa tradição linguística.

A foto é de Monchique, Algarve, do blogue https://sarrabal.blogs.sapo.pt/68734.html

José Teodoro Prata

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

A violência nas escolas - algumas questões


Fala-se hoje muito de violência: violência doméstica, contra os idosos, violência infantil, no desporto ou no meio escolar. Trata-se de situações que, não sendo novas, têm hoje uma abordagem diferente e constituem uma preocupação para toda a sociedade (aquilo que até há relativamente pouco tempo era legitimado culturalmente é hoje considerado crime público). Esta preocupação é, certamente, um sinal de evolução civilizacional.
       Nos últimos tempos são quase diárias as notícias que dão conta de situações de violência nas escolas, seja entre alunos, de alunos contra professores, de professores contra alunos e até de pais contra professores. Não sendo fácil identificar todas as causas, e muito menos encontrar a solução para este fenómeno, convém pensarmos um pouco sobre ele.
       A diversidade social, económica e cultural que passou a caracterizar as nossas escolas depois do 25 de Abril, com o alargamento da escolaridade obrigatória para todas as crianças e adolescentes, os fluxos migratórios vindos de África após a descolonização e, mais recentemente, de alguns países de Leste, asiáticos e Brasil, imprimiram à população escolar características altamente heterogéneas.
       Esta heterogeneidade, podendo constituir um factor positivo, tem confrontado a escola com problemas para os quais não estava preparada. De facto, entre o modelo tradicional de escola, no qual o professor era o único detentor do saber e do poder, e o modelo de escola democrático que tem vindo a implementar-se, muitas coisas mudaram, mas muito está ainda por fazer.
De entre as razões que podem ajudar a compreender os problemas que ainda se verificam em muitas escolas, poderemos salientar as seguintes:
·   Confunde-se muitas vezes democracia com falta de liderança e de autoridade que, como sabemos, são fundamentais no processo educativo de uma criança, quer se trate da educação familiar ou escolar.
· Atribui-se actualmente demasiada importância à educação escolar das crianças esquecendo-se o papel educativo da família. Os pais, por falta de tempo ou outras circunstâncias quaisquer, demitem-se muitas vezes do seu papel, deixando à escola a responsabilidade pelo processo educativo dos seus filhos e culpando-a quando não há sucesso, quer em termos do aproveitamento, quer do comportamento. Por outro lado, acontece também que quando os pais querem participar são muitas vezes incompreendidos e mal aceites pela escola, dificultando-se ou desmotivando-se a sua participação.
·   As turmas são demasiado grandes, na maior parte dos casos, o que dificulta o desenvolvimento de metodologias de trabalho individualizado ou diferenciado que permita responder às necessidades individuais e à diversidade dos alunos.
·   A formação de base e contínua dos professores talvez não se tenha adequado às novas exigências da profissão, e a mobilidade do corpo docente, aliada às frequentes alterações da legislação, também não dá a segurança e a motivação necessárias ao desenvolvimento de práticas inovadoras e galvanizadoras do interesse dos alunos.
·   As escolas, confrontadas com exigências legais, burocráticas e de cumprimento do currículo, (considerados demasiado longos e pouco motivadores), para além das dificuldades financeiras, têm poucas oportunidades para desenvolverem projectos inovadores (por exemplo clubes em diferentes áreas) que motivem, estimulem e respondam às necessidades e interesses dos alunos.
·   As instalações escolares são, por vezes, espaços degradados, frios e desumanizados, onde não apetece permanecer, e que incitam à violência e destruição.
·   Os pais têm cada vez menos tempo para estarem com os filhos, e por isso não conseguem regular o seu quotidiano: têm dificuldade em assumir-se como referência, dando atenção e afecto, mas também impondo regras e limites. Sem tempo para negociar, os pais tendem a satisfazer no imediato os desejos dos filhos, não permitindo que eles desenvolvam capacidades de resistência às frustrações nem aprendam a valorizar aquilo que têm. Esta situação pode levar a uma insatisfação permanente, à tristeza e à revolta.
·   O facto de as crianças e adolescentes viverem cada vez mais fechadas no seu mundo, entregues a actividades solitárias, à televisão ou, mais recentemente, à internet, sem grandes oportunidades de brincar ou conversar com os seus pares, pode dificultar o seu processo de descentração, autonomização e socialização, impedindo que aprendam a ver e aceitar o ponto de vista dos outros, e dificultando o processo de auto regulação do comportamento.
·   A natural tendência que as crianças e adolescentes têm para a transgressão das regras e a contestação da autoridade, quer se trate da autoridade paterna ou do professor: quando não encontram regras firmes, claras e coerentes que possam balizar o seu comportamento, crianças e adolescentes podem transgredir até ao limite, entrando em conflito com quem se lhes oponha.
·  A dificuldade que algumas escolas ainda têm em encontrar percursos alternativos para os alunos que, não estando motivados para o modelo de escola que lhes é oferecido, têm que permanecer no sistema por vários anos. Esta situação é potenciadora de conflitos e pode levar ao abandono escolar e posterior exclusão social.
Estas serão algumas das razões pelas quais a escola, adquirindo cada vez mais importância para a formação e educação dos indivíduos, quer em termos de preparação para o mercado de trabalho quer em termos de preparação para a vida, continua a ser muito desvalorizada por um número significativo de crianças e de jovens. Este desinteresse tem consequências inevitáveis tanto em termos do aproveitamento como do comportamento, podendo levar à violência. 
       Num mundo individualista e competitivo, como é o que temos ainda, torna-se necessário que as famílias e a escola, ajudadas por um quadro legal adequado, se articulem na definição do modelo de educação que querem para os seus filhos e alunos. Terá de ser, necessariamente, um modelo democrático e afectuoso de ensino no qual, através de regras e limites claros, mas também flexíveis e humanizados, eles possam ir adquirindo os saberes disciplinares, mas também as atitudes, valores e competências necessárias à convivência e participação social. Desta forma, a criança irá construindo a sua autonomia, mas simultaneamente a interdependência e capacidade de cooperação com os outros, fundamental à vida em sociedade, quer seja na família, na escola ou na comunidade mais alargada.

Maria Libânia Ferreira

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

José Mário Branco, 1942-2019

«Pela vaga de fundo se sumiu o futuro histórico da minha classe. No fundo deste mar encontrareis tesouros recuperados, de mim que estou a chegar do lado de lá para ir convosco: tesouros infindáveis que vos trago de longe e que são vossos, o meu canto e a palavra. O meu sonho é a luz que vem do fim do mundo, dos vossos antepassados que ainda não nasceram. A minha arte é estar aqui, convosco, e ser-vos alimento e companhia, na viagem para estar aqui de vez.
Sou português, pequeno-burguês de origem. Filho de professores primários. Artista de variedades. Compositor popular. Aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto: muito mais vivo que morto. Contai com isto de mim para cantar, e para o resto.»

Travessia do Deserto, do album Ser Solidário:

Que caminho tão longo
Que viagem tão comprida
Que deserto tão grande
Sem fronteira nem medida
Águas do pensamento
Vinde regar o sustento
Da minha vida
Este peso calado
Queima o sol por trás do monte
Queima o tempo parado
Queima o rio com a ponte
Águas dos meus cansaços
Semeai os meus passos
Como uma fonte
Ai que sede tão funda
Ai que fome tão antiga
Quantas noites se perdem
No amor de cada espiga
Ventre calmo da terra
Leva-me na tua guerra
Se és minha amiga
Que caminho tão longo
Que viagem tão comprida
Que deserto tão grande
Sem fronteira nem medida
Águas do pensamento
Vinde regar o sustento
Da minha vida
Este peso calado
Queima o

José Teodoro Prata

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Magusto, 2019



O tempo já não é o que era, e este ano nem o São Martinho quis ajudar-nos.
Mas cumpriu-se a tradição, e o magusto oferecido pela Junta de Freguesia a toda a população realizou-se na mesma. Não teve o cenário nem a participação de outros anos, mas quem esteve presente fartou-se de comer castanhas e beber jeropiga.


No fim, já contentes, o brinde à saúde de todos

M. L. Ferreira
(As fotografias foram tiradas pela Joana Santos Barroso)

sábado, 16 de novembro de 2019

Os Sanvicentinos na Grande Guerra

António Fernandes

António Fernandes nasceu no Tripeiro, a 25 de janeiro de 1892. Era filho de Joaquim Fernandes e Maria Rosária.
Assentou praça, no dia 16 de maio de 1913, em Castelo Branco, e foi incorporado no 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21. Era na altura analfabeto e tinha a profissão de jornaleiro.  
Embarcou para França, no dia 17 de janeiro de 1917, integrando a 1.ª Companhia do 2.º Batalhão do Regimento de Infantaria 21, com o posto de soldado n.º 416, placa de identidade n.º 25966.
Do seu boletim individual do CEP e folha de matrícula militar constam as seguintes ocorrências:
a)    Punido com 15 dias de prisão correcional, em 29/06/1917, por ter faltado à instrução e ser reincidente neste tipo de faltas;
b)    Punido em 04/09/1917, com quatro dias de detenção, por ter faltado novamente à instrução sem motivo;
c)    Punido com oito dias de detenção, em 23/09/1917, por ter faltado à instrução alegando motivos que não se vieram a comprovar;
d)     Louvado pela coragem e disciplina mostradas durante o raide efetuado pela sua companhia, no dia 9 de março de 1918;
e)    Punido em 10/05/1918, com oito dias de detenção, por ter faltado aos trabalhos sem motivo justificado; 
f)     Detido desde Fevereiro de 1919, no Depósito Disciplinar n.º 1, por sentença do Supremo Tribunal Militar, por «na manhã do dia 23 de setembro de 1918, encontrando-se de prevenção de marcha para um novo acantonamento mais perto do inimigo, se recusou a desarmar as barracas e entrar na formatura, ameaçando matar com granadas de mão e atirar com metralhadora a quem tal fizesse.» (Folha de matrícula); 
g)    Condenado na pena de sete anos de presídio militar e mais na pena acessória de igual tempo de deportação militar ou, em alternativa, na pena de dez anos de deportação militar.
António Fernandes regressou a Portugal no dia 9 de junho de 1919, e passou ao presídio Militar de Santarém, a fim de cumprir a pena a que tinha sido condenado. Foi amnistiado passado pouco tempo e, licenciado em janeiro de 1922, veio residir para a freguesia de São Vicente da Beira. A partir de 1925, foi considerado sem domicílio conhecido.
Louvores e condecorações:
  • Louvado pela coragem e disciplina que mostrou no raide efetuado pela sua companhia, no dia 9 de março de 1918;
  • Medalha Militar de cobre comemorativa com a legenda: França 1917-1918.
 


Não foi possível saber se casou e deixou descendência. É provável que não, pois, de acordo com a sua folha de matrícula, na década de cinquenta do século passado estava internado no Asilo de Inválidos Militares, em Runa, de onde saiu a seu pedido. Um dos sobrinhos, Francisco Martins, já com 92 anos, mas ainda muito lúcido, lembra-se de ouvir falar de António Fernandes e conta: «Nunca vi este meu tio, mas ainda me lembro da minha mãe dizer que ele tinha andado na guerra e que quando veio só falava duma batalha muito grande que lá houve no dia 9 de Abril, e onde tinham morrido muitos soldados. Diz que aquilo era mortos por todo o lado, espalhados pelo chão, e muitos tinham sido presos pelos alemães e levados para a Alemanha. Ele depois abalou para fora e dizem que esteve em Évora, e lá arranjou trabalho como relojoeiro, mas que era muito pobre e por isso raramente vinha à terra. Também nunca me lembro de ouvir dizer que se tivesse casado ou tivesse tido filhos.»
De facto, o único averbamento do registo de batismo de António Fernandes refere que faleceu no Hospital da Misericórdia de Évora, no dia 4 de Maio de 1961(?). Tinha 69 anos de idade.

Maria Libânia Ferreira
Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"
Nota: desde agosto que não há livros à venda em São Vicente; o único local onde podem ser adquiridos é na Biblioteca Municipal de Castelo Branco