Acordei com um forte batuque e vozes de mulheres a cantar. Cheguei-me à janela e uma pequena multidão descia a rua, atrás de adufeiras, que cantavam e bailavam ao ritmo dos seus adufes.
São
João subiu ao céu
A
regar o seu jardim.
Trouxe
um cravo p´ra Sant´Ana
Outro
p´ra São Joaquim.
Vesti-me
à pressa, saí para a rua e misturei-me com as pessoas. O que é isto?,
perguntei. São as adufeiras de Penha Garcia, é uma homenagem à Ti Rita!, alguém
me informou.
São
João não tem capela
Venha
cá que la darei.
Tenho
cá cravos e rosas
E
outras flores buscarei.
Descemos
a rua e o cheiro a rosmano e marcela a arder sentia-se cada vez mais forte. Na
praça ardia uma grande fogueira e em volta um grupo fazia coro com o Manel
Ceguinho que tocava na concertina uma modinha do São João. As adufeiras e
acompanhantes juntaram-se a eles e depois todos se dirigiram para o pelourinho,
onde lançaram ginjas à rebatinha.
Esta
noite hei de ir às ginjas
Esta
noite hei de ir a elas – ai lindó.
Quem
as tiver que as guarde – ai lindó
Se
não ficará sem elas – ai lindó.
Fui beber
água à fonte de São João. Como estava linda, enfeitada com vasos de cabeleiras
brancas amareladas! Quem fez isto tudo? Como apareceram aqui? As crianças da
escola!, disseram-me. E os papelinhos com as quadras ao São João? Também foram
elas.
São
João lá vai lá vai
Ai se
lá vai, deixai-o ir.
Ai
qu´ele é menino mimoso
Ai
vai ao céu e torna a vir.
Desci a
Rua do Beco e, em frente à padaria, as filhas da Sr.ª Céu tinham trazido um cântaro para a rua, que rapazes e raparigas, em fila e de costas, lançavam à pessoa que
estava atrás de si. Além falhou e o cântaro caiu no chão e ficou em cacos. Risada
geral.
São
João era bom homem
Se
não fosse tão velhaco.
Ia à
fonte com três moças
E
vinha de lá com quatro.
Mais
animação no largo da Fonte Velha, também ela enfeitada com cabeleiras. Outra
fogueira ardia, enchendo o largo de fumo acre do rosmaninho e adocicado da
marcela. Rapazes saltavam as chamas, constantemente avivadas pelo guardião da
reserva de rosmano ali ao lado. Um tocador desceu a Rua da Costa, vindo lá do
alto de onde se avistava fumarada. Era o Zé Té-Té, com a concertina, que deu
voltas à fogueira com os rapazes e as raparigas a cantar e a bater palmas.
Para
o São João que vem
Já
não moro nesta rua.
Inda
não tenho casa
Menina
arrende-me a sua!
Depois
seguiu pela Rua Velha e eu segui os foliões. Ao fundo da Rua Nicolau
Veloso, mais animação, e na Fonte de São António juntámo-nos às adufeiras
acabadas de chegar. Os adufes e a concertina animaram um bailarico em frente à
casa do sr.º Manel da Silva.
Donde
vens tu São João
Donde
vens tão molhadinho?
Venho
do rio Jordão
De
regar o cebolinho.
O cortejo
voltou à Praça e, surpresa, já não era um tocador, eram muitos, cada um vindo
de um cruzamento de ruas, todos convergindo para o centro. Quem são? Porquê
tantos?, perguntei. São os da Carapalha e vieram recordar todos os nossos tocadores de
concertina.
No
altar de São João
Nasceu
uma cerejeira.
Qual será
a mais ditosa
Que lhe
colherá a primeira?
O arraial
de São João estava animado, mas eu regressei à minha rua, atraído pelo
cheirinho a sardinha assada do tradicional arraial organizado pelo Zé
Cavalheiro. Estavam os vizinhos todos, às voltas com sardinhas, pão e vinho, em
alegre cavaqueira. Na fonte havia vasos de manjericos. Passei-lhes a mão,
cheirei e fui ficando, sem pressas de voltar aos lençóis.
Do
São João ao São Pedro
Quatro
a cinco dias são.
Moças
que andais à soledade
Alegrai
o coração.
Notas:
1.
Não há
sincronia neste texto, pois cruzo nele pessoas e tradições de épocas
diferentes.
2.
Um dia,
poucas semanas antes do início da pandemia, reuni-me com o Carlos Semedo,
sugerindo-lhe a realização de algumas das nossas tradições do São João, no
Festival Água Mole em Pedra Dura, que se realizava no fim de semana próximo da
festa deste santo. Este texto é um pouco do que combinámos, mas ficou por
concretizar.
3.
As quadras
foram retiradas do livro Etnografia de S. Vicente da Beira, de Isabel Teodoro
José Teodoro Prata
À medida que ia lendo, durante um bom bocado, cheguei a ter pena de não ter participado nesta homenagem à Ti Rita. Só no final descobri que não passara dum sonho, pelos vistos possível de concretizar…
ResponderExcluirML Ferreira
Sim, uma grande festa, com poucos custos.
ResponderExcluirPenso que os arraiais de São João foram, em certo perídodo do nosso passado, a maior festa por todo o território nacional.
ResponderExcluirEste cruzamento de pessoas e tradições em tempos diferentes resultaram numa festa e que bom foi ver essa festa nas ruas e praça da nossa vila. Pena que não tenha passado de um sonho...
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