quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Conversas de autocarro

 Os passageiros eram, quase todos, homens e mulheres a quem o trabalho duro de uma vida inteira fazia aparentar uma idade que não tinham.

Saíram das suas terras, ainda jovens; alguns seguiram o rasto dos pais, que, antes deles, procuraram lá fora a vida que em Portugal nem podiam sonhar.

Eram do Alentejo, das Beiras, de Trás-os-Montes, do Minho… mas as memórias que partilhavam eram o testemunho do atraso e da pobreza comuns, quase hereditários, que se vivia em todo o país.

Falavam do frio e das molhas, ainda crianças, atrás de um rebanho de cabras ou à frente de uma junta de bois; do calor escaldante dos dias da ceifa ou do alcatrão a ferver que espalhavam nas estradas que cresciam por todo o lado; dos molhos de mato e das sacas às costas, cada vez mais pesados, na pressa de se fazerem homens e mulheres e terem um salário melhor; alguns ainda foram à guerra, outros livraram-se por pouco, e quase todos lá tiveram um irmão mais velho ou parente chegado.

Mas ainda não esqueceram os jogos e as cantigas de outros tempos; as festas e romarias com procissões e bailaricos; a mesa farta desses dias com a família toda à roda. As mulheres, essas, trocavam receitas de bolos, mesinhas e orações para todos os males, e mostravam, orgulhosas, as fotografias dos netos e das flores do jardim à frente da casa com que sempre sonharam.

Foram difíceis, os primeiros tempos em França. Durante anos não houve domingos nem dias santos; mesmo as férias eram passadas a levantar mais um bocado da casa ou a tratar das terras que, a pouco e pouco, iam juntando aos bocados que herdaram dos pais ou já tinham comprado; não se sabia o que era ir a um restaurante e muito menos a uma praia. Também quiseram dar aos filhos outras ferramentas para a vida: a maior parte não tinha passado da quarta classe, quando muito do segundo ano, quando foram obrigados. É que os pais deles, sobre a importância das letras, o que sabiam era dizer aos professores que lhes chegassem sempre que fosse preciso.

Agora, quarenta e muitos anos depois, e já todos reformados, voltam à terra duas ou três vezes por ano, por altura das festas e para a apanha da azeitona ou da castanha, mas demoram-se por cá pouco. E já não pensam regressar de vez, que é lá que têm os filhos e os netos, e esses cada vez menos querem vir a Portugal.

Não admira que as terras estejam a ficar cada vez mais vazias de gente. Algumas já nem têm escola, nem padre, nem crianças pelas ruas. Por este caminho, qualquer dia, só velhos e os mortos no cemitério, que é também o que os vai trazendo até cá por estes dias.

M.L.Ferreira

2 comentários:

  1. Bonito texto, ao estilo inconfundível da Libânia.

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  2. Texto com muita riqueza literária, já habitual na Libânia. Estamos perante os típicos anos sessenta, que muito marcaram a nossa própria geração, a minha em particular. Como também já tenho referido várias vezes, vivia-se naquela época, como se fosse na Idade Média, porquanto se verificava a ausência total de tecnologia em todas as áreas da vida social.
    Basta excluir um ou outro telefone, um ou outro rádio a pilhas, o carro do Dr. Alves e o de Manuel da Silva e duas televisões, a primeira das quais chegou em 1962.
    Tudo o resto era, com efeito, demasiado básico! Essas pessoas hoje já são velhas,
    embora, entretanto, a compreensão do conceito de longevidade tenha sido alterada. Mas foram esses que guardaram cabras, que aproveitaram tudo, até à última azeitona, até última maçã, até ao último figo!
    Eles não tinham mais que a 4a. Classe, nunca tiveram férias e emigraram em condições difíceis quer para o estrangeiro, quer para o litoral. Por apelo das origens, voltaram após uma vida de trabalho, mas os filhos, com raízes lá fora, já não os acompanharam. E assim as terras do interior se esvaziaram de gente.
    Só esses poderiam ir naquele autocarro!
    Abraços, hã!
    José Barroso

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