Os passageiros eram, quase todos, homens e mulheres a quem o trabalho duro de uma vida inteira fazia aparentar uma idade que não tinham.
Saíram
das suas terras, ainda jovens; alguns seguiram o rasto dos pais, que, antes
deles, procuraram lá fora a vida que em Portugal nem podiam sonhar.
Eram do
Alentejo, das Beiras, de Trás-os-Montes, do Minho… mas as memórias que
partilhavam eram o testemunho do atraso e da pobreza comuns, quase hereditários,
que se vivia em todo o país.
Falavam
do frio e das molhas, ainda crianças, atrás de um rebanho de cabras ou à frente
de uma junta de bois; do calor escaldante dos dias da ceifa ou do alcatrão a
ferver que espalhavam nas estradas que cresciam por todo o lado; dos molhos de
mato e das sacas às costas, cada vez mais pesados, na pressa de se fazerem
homens e mulheres e terem um salário melhor; alguns ainda foram à guerra,
outros livraram-se por pouco, e quase todos lá tiveram um irmão mais velho ou
parente chegado.
Mas
ainda não esqueceram os jogos e as cantigas de outros tempos; as festas e
romarias com procissões e bailaricos; a mesa farta desses dias com a família
toda à roda. As mulheres, essas, trocavam receitas de bolos, mesinhas e orações
para todos os males, e mostravam, orgulhosas, as fotografias dos netos e das
flores do jardim à frente da casa com que sempre sonharam.
Foram
difíceis, os primeiros tempos em França. Durante anos não houve domingos nem
dias santos; mesmo as férias eram passadas a levantar mais um bocado da casa ou
a tratar das terras que, a pouco e pouco, iam juntando aos bocados que herdaram
dos pais ou já tinham comprado; não se sabia o que era ir a um restaurante e
muito menos a uma praia. Também quiseram dar aos filhos outras ferramentas para
a vida: a maior parte não tinha passado da quarta classe, quando muito do
segundo ano, quando foram obrigados. É que os pais deles, sobre a importância
das letras, o que sabiam era dizer aos professores que lhes chegassem sempre
que fosse preciso.
Agora,
quarenta e muitos anos depois, e já todos reformados, voltam à terra duas ou
três vezes por ano, por altura das festas e para a apanha da azeitona ou da
castanha, mas demoram-se por cá pouco. E já não pensam regressar de vez, que é
lá que têm os filhos e os netos, e esses cada vez menos querem vir a Portugal.
Não
admira que as terras estejam a ficar cada vez mais vazias de gente. Algumas já
nem têm escola, nem padre, nem crianças pelas ruas. Por este caminho, qualquer
dia, só velhos e os mortos no cemitério, que é também o que os vai trazendo até
cá por estes dias.
M.L.Ferreira
Bonito texto, ao estilo inconfundível da Libânia.
ResponderExcluirTexto com muita riqueza literária, já habitual na Libânia. Estamos perante os típicos anos sessenta, que muito marcaram a nossa própria geração, a minha em particular. Como também já tenho referido várias vezes, vivia-se naquela época, como se fosse na Idade Média, porquanto se verificava a ausência total de tecnologia em todas as áreas da vida social.
ResponderExcluirBasta excluir um ou outro telefone, um ou outro rádio a pilhas, o carro do Dr. Alves e o de Manuel da Silva e duas televisões, a primeira das quais chegou em 1962.
Tudo o resto era, com efeito, demasiado básico! Essas pessoas hoje já são velhas,
embora, entretanto, a compreensão do conceito de longevidade tenha sido alterada. Mas foram esses que guardaram cabras, que aproveitaram tudo, até à última azeitona, até última maçã, até ao último figo!
Eles não tinham mais que a 4a. Classe, nunca tiveram férias e emigraram em condições difíceis quer para o estrangeiro, quer para o litoral. Por apelo das origens, voltaram após uma vida de trabalho, mas os filhos, com raízes lá fora, já não os acompanharam. E assim as terras do interior se esvaziaram de gente.
Só esses poderiam ir naquele autocarro!
Abraços, hã!
José Barroso