Em tempos que já lá vão, no arco da Rua das Donas, a
Alfama, perfilava-se em seu nicho envidraçado o divino Padre Santo António. Era
de pedra policrómica, e chamavam-lhe familiarmente Sant’Antoninho. Uma lâmpada
ardia dia e noite à sua ilharga. O nicho era fechado a loquete para que os
gatunos de cutiliquê não roubassem o azeite. Um ano fora visitado por um
quadrilheiro, tão infeliz pilho e miserando que se deixou apanhar e foi
enforcado na Praça da Lã. Santo António tivera com isso um profundo desgosto,
resultando ele sugerir, em sua atiladíssima inspiração, ao vereador do pelouro
que fosse dotada a charola com uma tranqueta de segurança.
Para o precioso óleo cotizavam-se os moradores, á cabeça
do rol a família Coelho Manso, que tinha a chave e professava a mais afervorada
devoção pelo beato taumaturgo. Tratava-se de um lar infraburguês, superpovoado,
o pai oficial de Contos e Casa, um dos filhos alferes, o outro França, duas
tias velhas, com lugar certo na Constelação da Onze mil Virgens, e três meninas
bonitas, sécias, solteiras e namoradeiras, das tais de derreter com a labareda
dos olhos e a sofreguidão de amar quem pisasse a rua para cá dos cem passos.
Chamavam-lhes no sítio, para não fugir ao lugar comum, as Três Graças Mansas.
Os rapazes, esses eram afogadiços de génio e estroinas, sempre na rosa divina,
tanto o militar como o que não exercia outro emprego do que o de fazer
semblante de que andava à procura dele.
Santo António trazia debaixo de olho, um olho de argos
vigilante e caridoso, o bairro todo, primitivo e pobrinho, mas honrado, dado a
luxos e amigo de se divertir, mas temente a Deus e ainda mais testo a círios e
festas de altar que a própria Madragoa. Agora quem ele desvelava particularmente
era a família Coelho Manso. Pudera! A velha Conegundes, sempre queixosa das
cruzes quando não era do flato, do reumático quando não era do baço, com
achaques mais numerosos do que os dentes que lhe caíam, da manhã á noite dentro
da bata de fundo amarelo semeado de ervilhas verdes, cabelo em regueifa para a
nuca, o infalível carocho preto no regaço, deixaria faltar o azeite no prato
das sextas, e na sopa de repolho com feijão barriga-de-freira, dia sim, dia
não, mas lá na lamparina do santinho, jamais. Acabava-se o mundo se se extinguisse
o fanal que ali bruxuleava pela noite velha, quando a escuridão parecia um
avejão imenso, de asas estendidas, a afogar o casario torcicolar.
As Coelhas Mansas, Maria Ana e Marta, votavam a Santo
António uma dilecção extremada, patusca se bem que não original. Volta e meia,
a pretexto de renovarem o azeite, palmavam o Menino ao santo. Palmavam-lhe o
Menino que estava rechonchudo e nu sentado sobre o breviário, as pernocas à
dependura, a mãozita papudinha no jeito amoroso de prender-se-lhe à sotaina.
Era o modo de exercer coacção sobre o taumaturgo para que desse bom e lesto
despacho às suas deprecadas. Santo António, que suportaria tudo menos ver-se
separado do cachopinho, não resistia àquela chantage amorável. No dia seguinte,
os anelos das Três Graças obtinham ganho de causa. Por via de regra estavam em
jogo os seus amores. Embora ao santo repugnasse o papel de pau-de-cabeleira,
que remédio? Antes de mais era preciso que o Menino voltasse para o divã de
ocasião que era o ripanço.
Uma das vezes que se tinha demorado a obtemperar,
estivera iminente a catástrofe. Conjurando, as três manas Mansas tinham-se ido,
horas mortas, ao nicho e tentado atar uma corda ao pescoço do Santo para o
mergulhar no poço do quintal até que dignasse deferir a deprecada. Valera-lhe
ser de pedra de Ançã, mais pesado que todos os pecados do bairro, e as
conspiradoras, por muito que soprassem, suassem, gemessem, não conseguiram
deslocar a estátua do absidíolo.
Não eram apenas elas as almas súplices. Estava para
nascer o primeiro mariola na Alfama que lhe não apresentasse os mais
inverosímeis requerimentos. De modo geral só por grande casualidade faltavam
ajoelhados a Sant’Antoninho. Além da rogação directa, de caso pensado, era ao
passar que muitos, nada mais que in pétto, apelavam para sua intercessão e,
após a vénia da regra, ala, que se faz tarde. Os mais próximos, tais as Coelhas
Mansas, vinham à varanda e dali formulavam seus votos mentalmente. Santo
António sabia interpretá-los na sua linguagem muda como se fossem rezados, embora,
de facto, lhes passassem pelas cabeças ocas mais surdos que lagartas nas
couves. Interpretava-os, decifrava-os, bem como a todos mais, e dava-lhes,
consoante a fé dos suplicantes, provimento ou não.
Ora uma daquelas tardes – estamos no século XVIII com
guerra nas fronteiras e nas províncias ultramarinas, e uma nobre vadiagem,
acobertada pelo escudo dos avós, a infestar as ruas – soprava um vento de
desbarato sobre a casa de Coelho Manso. Além do alferes ser chamado ao
regimento que partia em expedição contra os castelhanos, empresa a que era
ainda mais avesso que o Diabo à Cruz, ó sorte infanda! era mobilizado o pai
Coelho, oficial de Contos e Casa. Os namorados da meninas, porque não lhes
cheirasse o dote bastante, pareciam querer desarvorar um, meter outro o idílio
para rumo desonesto, ainda o terceiro brandir o punhal de Otelo contra a
ingrata e infiel, surpreendida na Sé a trocar miradas langorosas com um
chichisbéu.
E
vá de irem todas à sacada e apelarem sucessivamente para o miraculoso padroeiro,
interpretando a lição, aprendida com o leite da boa mãe Conegundes:
- Ó meu beato António, santinho da minha alma, luzeiro
da Itália e resplendor de Portugal – congeminava Maria, a filha mais velha,
alevantadiça de trunfa e de vozes – guardai-me o namorado, que ameaça deixar-me
pela filha do mercador de sola, rico como um porco, aquela gorda e sardenta
Rosa Fagundes, para mais taxada de sangue marrano. Guardai-mo rendido e fiel ao
bem que lhe quero, Glorioso Sol do Empírio, e prometo rezar-vos tantos padre-nossos
que eu caia para a banda de cansaço e vós tapeis os ouvidos, azoado. Não serei
eu mais bonita que a correeira, e mesmo mais prendada e discreta? Oh, que as
peças que tem o pai lhe sirvam de brasas no inferno! Ouvi-me, meu divino Padre
Santo António! Amparai-me na demanda com a maldita, invencível advogado!
Valei-me, nas minhas penas, boticário dos corações aflitos!
Retirou-se a moça da varanda ao ver que vinha lá a
mana – uma peste por baixo das sete falinhas doces, uma acusa-cristos que ia
contar tudo ao pai – quando o santinho começara a dar mostras de comovido. Uma
lágrima teria mesmo começado a aflorar-lhe aos olhos, daquelas que o menino
costumava esmagar-lhe com a cabecinha do dedo róseo. Mas, schiu, de facto
abria-se de novo a porta na varanda das Coelhas Mansas. Era Aninhas, a cadeta,
branca, poética e vaporosa que se debruçava sobre o vão da rua.
- Padre Santo António – rompeu a exortar a
perlequitetes – senhor de estranhos poderes, que em Limoges vos condoestes da
pobre dona desfeada e, pegando nos cabelos que lhe cortou o ciumento, lhos
repusestes em sua formosura e inteireza; que açaimastes os tiranos; que destes
vista aos cegos; que endireitastes os estropiados e os coxinhos – alumiai o meu
caminho! Posso seguir, confiada, o homem que adoro? Devo por ele deixar pai,
mãe, irmãos e o lar sossegado a que presidis com solicitude paternal, meu
glorioso Padre Santo António, meu adorado Sant’Antoninho!? Inundai de luz minha
alma, ó preclaro luminar do céu! Dignai advertir-me se as pétalas de rosa com
que o meu mais que tudo promete atapetar-me o caminho escondem a víbora que
mata! Dizem-me que há um bicho mau chamado trigonocéfalo, que disfarça o covil
no meio das flores. Não vá eu dar nesse bicho! Por quem sois, guiai-me nesta
senda de verdadeira Primavera, que me inebria, e tanto pode conduzir-me à
ventura como á perdição, no dizer da mãe Cunegundes.
Recolheu-se a doidinha e, no seu nicho, Santo António
que guardara uma atitude carrancuda de reserva, entregou-se logo a movimentos
vários de cólera. Debalde tentava o Menino acalmá-lo. Com a mão, enclavinhada
em martelo, fazia o gesto de britar, de reduzir a grude a cabeça da serpente, e
ante disposição tão cómica, o menino não conseguia reprimir-se e soltava-lhe
nas bochechas risadinhas deliciadas. Mas, de repente, ouviu-se o ranger duma
porta nos gonzos enferrujados. Que sarna! Era ainda na varanda das Coelhas
Mansas. Lá assomava a terceira Graça. Só faltava aquela cabeça de alho chocho,
engraçada como um pássaro do paraíso, garrida, e a mais lambisqueira e
casquivana das três. Não abria a boca, mas, como já se disse, Santo António via
os pensamentos loucos voarem-lhe na alma como pulgões numa açucena.
- Meu santo quebrador de infusas, meu Sant’Antoninho
de papas de leite e mel, que culpa tenho eu que os rapazes olhem mais para mim
do que para as outras?! Se o meu rosto é prazenteiro, a minha voz meiga, o meu
olhar requebrado, foi Deus que assim me fez. Por quem sois, meu rico Padre
Santo António, abri, ou melhor, fechai os olhos ao meu namorado que se ofuscam
com tudo que não seja derreterem-se os meus nos dele. Reacendei a idolatria que
me tinha, encaminhai-mo e eu vos prometo uma novena e missa cantada, quando me
casar, no vosso altar da Sé.
Retirara-se a donzela, ficando Santo António a
saborear o sainete daquela alma especiosa. Ao cabo do seu enlevo, que não foi
longo, murmurou para o Menino:
- Coitadinha! Coitadinha! É bonita, não se há-de
fechar numa trapeira.
Aquilino Ribeiro – Humildade Gloriosa