Hoje é dia da romaria da Senhora da Orada e eu vou faltar. Sinto-me como o Miguel Torga, que, num trecho que li ontem, dos seus diários, escreveu sentir-se cheio de remorsos por ter ido a São Martinho de Anta a meio de dezembro e não ter ficado para passar o Natal. E nem os seus oitenta anos lhe serviam de consolo, preocupado com a solidão que os seus mortos iriam sentir sem o conforto da lareia acesa, na noite da consoada.
O dia está chuvoso. Recordo como se fosse hoje certas
romarias em que a chuva não despegava por aqueles dias e tínhamos de ficar em
casa. Vislumbro com total nitidez um dia de muita chuva em que desci as escadas
da casa da Tapada e fiquei parado à porta a olhar a chuva miudinha, com pena de
perder a festa.
A minha romaria é a das cabeçadas no cruzeiro, para ouvir os
sinos de Roma; são as giestas vergadas de flores amarelas, pelo caminho e nas
encostas da capela; os sons da aparelhagem e da banda; as barracas que vendiam
medalhas de açúcar com a imagem da Senhora; aquele muro tão alto onde me
sentava a medo, com um leirão de milho lá ao fundo, a que o Insa (?) cortava
uma faixa, para passar a procissão; o pontão de madeira entre o recinto e a
fonte, a vergar com o peso de tanta gente a querer saciar-se com a água milagrosa;
a amoreira frente à capela, que na festa nos dava sombra e nos pintava a roupa
domingueira nos passeios de Verão; o tio João da Cruz, mais o Insa e o sr. António
Remoaldo, os festeiros das Quintas, atarefados
de um lado para o outro (por isso não gostei daquela pedra de lagar colocada há
anos com os nomes de uma só comissão de festas, que fez obras de vulto, mas
cuja simples existência menospreza, mesmo sem querer, a obra de tantos festeiros
do passado, eles também com obra relevante).
Relembro uma conversa que tive com o ti Joaquim Teodoro, já perto
dos seus 100 anos, ele que foi o último ermitão que ali viveu como rendeiro da
Casa Cunha. Falou-se da história da capela e dos milagres da Senhora que deram
nomeada à ermida. E outros ermitões que depois fui encontrando nas minhas
pesquisas históricas. Alguns deles achados ocasionalmente, pois alguém lhes
deixara à porta um recém-nascido, para eles criarem ou levarem à Câmara, que os
entregava à rodeira. Aquele ermo era de facto o lugar ideal para abandonar uma
criança, embora sempre me tenha intrigado como fariam para iludir os cães da
casa, que os haveria necessariamente.
Mas nos anos da minha infância, a romaria era um dia triste
para todos, porque tínhamos pais, maridos e irmãos emigrados em França ou na
guerra do Ultramar. Os sermões acabavam invariavelmente a remexer-nos essa
chaga, como se ela não doesse já o suficiente. Mais tarde, já eu adolescente, o
meu primo Tó Inês foi ferido na Guiné, precisamente no dia e hora da festa da
Senhora da Orada, num ataque em que ele foi o único sobrevivente do veículo em
que seguia. Esteve meses no hospital e só voltou à terra na sexta-feira santa
do ano seguinte. Era (faleceu há poucos meses) um rapaz simples, muito amigo e religioso, como o pai dele, o ti Zé Lopo, dizia a minha mãe. Ele atribuía a sua sobrevivência
à proteção da Senhora da Orada.
Nesses anos eu não ia à romaria, pois estava no seminário. Só vim uma vez, porque o Pe. Jerónimo nos deu boleia. Penso que além de mim vieram o Chico Barroso e o Zé Augusto. E ainda coube pelo menos um amigo nosso, que se embebedou e nós à rasca cerca das 17 horas, na Praça, ponto de partida combinado com o motorista. Valeram-nos a Teresinha e a Mila Matias, bondosas como a mãe, que o levaram a casa e lhe fizeram um café bem forte. Metemo-lo no carro quase em coma e felizmente dormiu toda a viagem.
Não vos demoro mais, que já estais atrasados. Quanto a nós, vemo-nos por
lá qualquer dia!
José Teodoro Prata