O jornal Público de 17 de maio publicou esta notícia da nossa Ana Rita Teodoro:
Ana Rita, André e João tropeçam (mas não caem) na língua portuguesa
Ão, em cena até sábado no Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, é uma peça
musical, com os corpos metidos ao barulho, movida pela linguagem: tão sedutora
quanto traiçoeira.
17 de Maio de 2023, 20:14
Ana Rita Teodoro é uma das cúmplices por trás
desta abordagem a um dos mais carismáticos ditongos do português CARLOS PINTO
Não deve
existir canção em português que não inclua rimas em “ão”. Não deve existir
frase que nos saia da boca que não meta lá pelo meio um “ão”. O “ão”, como
escreve Fernando Venâncio num livro (Assim Nasceu Uma Língua) que André e.
Teodósio partilhou com os seus dois cúmplices em Ão, é um ditongo que se
comporta como uma “espécie invasora” na língua portuguesa. Está por todo o
lado, contamina todo o discurso, comporta-se como um monarca omnipotente,
regozija-se com o facto de não poder ser devidamente pronunciado por qualquer
cidadão nascido fora da lusofonia. Se, como se repete no espectáculo em cena no
Teatro do Bairro Alto (TBA), em Lisboa, até ao próximo sábado, tropeçamos
constantemente em sons que nos ficam colados e nos aprisionam, “ão” é, com toda
a certeza, um dos mais insistentes.
Ão tem vários inícios. André e. Teodósio queria “fazer um espectáculo
sobre a palavra”, conforme explica ao PÚBLICO. “A palavra não apenas dita, mas
também cantada, que fosse o tema da conversa. Da mesma forma que os
espectáculos da Praga [Teatro Praga, companhia de que é co-fundador], às
vezes, têm por protagonista a arquitectura, o linóleo, o computador ou a
própria palavra.”
Ao mesmo
tempo, vinha deixando fermentar a vontade de trabalhar com a coreógrafa e
bailarina Ana Rita Teodoro e o músico João Neves, reflexo
da admiração pelos percursos e pelos imaginários e referenciais dos dois. Era
uma vontade que havia de concretizar-se um dia, não necessariamente no mesmo
espectáculo. Só que, à medida que começou a pensar neste ditongo como algo
musical, e a convencer-se de que podia erguer-se um espectáculo em torno dessa
sugestão sonora, os nomes dos dois passaram a coabitar na sua cabeça.
Unidos por
“uma ideia de musicalidade”, os três fecharam-se vários dias numa sala a testar
os pontos de confluência musicais e a construir, aos poucos, os temas “à [Ryuichi] Sakamoto, à Laurie Anderson, à Meredith Monk, à Sparks, à Meira Asher” que pontuam o espectáculo. No fundo,
Ão é como uma investigação à relação de cada um/a com a palavra (dita ou
cantada), problematizando a linguagem. Ou seja, escarafunchando naquilo que a
linguagem tem de libertador, por permitir a expressão de cada indivíduo/a, mas
também de castrador, no que as palavras aprisionam e limitam.
"Ão",
o ditongo, é assim um pretexto, uma desculpa para um exercício lúdico em torno
da linguagem. Em que as várias línguas se cruzam, podendo escutar-se um “pain
au chocolat”, em que a dor é inglesa, mas o chocolate é francês, ou em que
se pode dizer, sem curto-circuito mental, “I stepped numa carta que me
foi enviada with that sound”.
Na verdade, e
dadas as muitas citações que atravessam Ão, de excertos musicais de
Björk e Chico Buarque ao “metal fundente” de Entre nós e as palavras de
Mário Cesariny, a peça vê-se também como uma homenagem à forma como as
palavras, vindas das mais diversas fontes, nos ocupam e nos compõem. Daí que
Ana Rita Teodoro refira “esta grande evidência, que aparece na peça, de o ‘ão’
estar tão presente no nosso dia-a-dia e nunca darmos de caras com ele de uma
forma tão concreta”. Porque não é apenas de um “ão” que se fala, claro, mas de
toda uma reflexão acerca “de estar, de pertença, de não pertença, uma junção de
referências”.
Bonito e traiçoeiro
Tropeça-se
muito no som e nas palavras em Ão. Tropeça-se não para cair, mas porque
avançar pela língua e pela construção identitária a isso obriga. O espectáculo
deixa-se atravessar por uma duplicidade que é possível sintetizar neste ditongo
pelo qual podemos apaixonar-nos ao mesmo tempo que ele nos aprisiona. A peça
constrói-se "também a partir dessa ideia, de que um ‘ão’ ou uma língua
podem ser tão bonitos quanto traiçoeiros”.
Se tanto se
fala em inglês como em português, as palavras coladas umas às outras, é porque
o pensamento de Teodósio, o autor do texto, alguém que cresceu nos Estados
Unidos antes de regressar a Portugal, funciona assim. Afinal, pelo meio desta
plasticidade musical com que o texto vai surgindo, reforçando ou contrariando o
que dizem os corpos dos três intérpretes, muitas vezes num estado quase
contemplativo de câmara lenta, emergem migalhas ficcionais, autobiográficas,
resultantes das leituras de cada um. Sem que haja vontade, em momento algum, de
transformar Ão numa “aula de português cantada”. Não há teses
linguísticas aqui; há sim, uma apropriação pessoal da língua, respeitando
apenas regras próprias.
Para André
Teodósio, esta é, no entanto, e apesar da dimensão corporal que Ão
também assume, “uma peça sonora”. “Não estamos, mas podíamos estar no escuro,
bastaria ouvir apenas ou sentir as frequências do som.” Porque os corpos,
conclui, “são estranhos naquele espaço”, naquele “tapete” de frases onde é
possível que qualquer um dos três intérpretes, a dado momento, possa tropeçar.
Mas há nestes movimentos em palco, que Ana Rita Teodoro compara à empatia que
se estabelece num concerto, em que os sons convidam a dançar e a cantar, uma
ideia de poderem ser reproduzidos. Afinal, a linguagem é uma ferramenta de
comunicação e de chegar ao outro. Falar sozinho é uma outra história. Em Ão,
só se tropeça porque os olhos não estão no chão, e sim naquele que se quer
alcançar.
2 comentários:
As palavras são, no fundo, a forma de podermos entender-nos. Desde sempre o homem, como ser gregário, procurou comunicar e convencionou sinais com um valor sonoro. Sem isso, não seria possível compreendermo-nos. É claro que a comunicação para mudos e cegos sofre adaptações.
Nesta peça de teatro parece que se glosa com o ditongo ÃO da nossa língua, num texto escrito por alguém que cresceu nos EUA. Os idiomas, como códigos que são, prestam-se a muitos jogos que podem, inclusivamente ser musicados como também parecer ser o caso. A própria poesia é um jogo de palavras. É a arte a funcionar.
Mas há uma coisa que acontece nos nossos dias. É o facto de a globalização estar a destruir algumas línguas para que outras sejam predominantes. E isso só pode ser evitado se cada país defender a sua língua que faz parte da sua identidade. Pese embora se reconheça a necessidade de comunicar (por exemplo em inglês) no mundo de hoje, um país tem que cultivar afincadamente a sua língua. No caso da Eurovisão, não se compreende como cada país não concorre com as letras das canções na respetiva língua! Portugal na única vez ganhou esse concurso, a língua da música era em português. Para além disso, penso que ninguém dúvida da beleza daquela famosa canção também vencedora desse concurso : "Non ho l'etá", de Itália, na voz da Gigliola Cinquetti. Por isso, para além da música inglesa, tenho saudades da música italiana, francesa que quase não se ouve!
Levar ao teatro um tema sobre a língua portuguesa, neste caso com a nossa Ana Rita Teodoro, é uma forma de lutar pelo nosso idioma.
Abraços, hã!
J. Barroso
É uma lutadora e talentosa, a Ana Rita Teodoro! Merece estas referências em jornais importantes como O Público.
Que bom se um dia destes pudéssemos vê-la num teatro perto de nós...
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