Esta nossa igreja é muito linda! Olhe só tantos
santinhos tão lindos que ela cá tem! Foi aqui que eu me casei. Eu e mais o meu
homem que Deus haja. Há quantos anos foi? Eu até já lhe perdi o conto, mas foi
há uma tormenta deles! Quem nos casou foi o Senhor Vigário. Ai alembra-se dele?
Era muito boa pessoa, mas um bocado agarrado; não dava uma esmola a um pobre
nem perdoava uma missa a ninguém, mas, tirando isso, era bom homem. Também era
um bocadinho metediço, sempre a querer saber tudo da vida alheia: o que tínhamos
e o que não tínhamos; o que fazíamos e o que deixávamos de fazer… E quando uma
pessoa se ia a confessar? Perguntava tudo; até o qu’é que a gente fazia com os
nossos homens!... Ora se a gente tinha tanta vergonha daquilo que fazíamos,
íamos agora a dizê-lo ao padre? Ora essa!... Eu cá não dizia nada! Era o que
faltava! Mas afora isso, era muito bonzinho, aquele senhor vigário! Que Deus o
lá tenha em descanso. E há de ter, que Deus aos padres perdoa tudo; até quando são
uns gulosos e comem e bebem do bom e do melhor, mesmo nos dias de jejum; ou quando
desgraçam as criadas ou andam com as mulheres dos outros. Mas o que é que se há
de fazer? Eles também são homens como os demais, é ou não é verdade? Bem, que deste
nunca se constou que tivesse andado para aí a fazer filhos; mas sabe-se lá!...
Eles faziam-nos e ao depois chamavam-lhes afilhados ou mandavam-nos abandonar
às portas. Por isso é que antigamente havia tantos enjeitadinhos que não
conheciam pai nem mãe…
Eu tive muita sorte com o meu homem. Era uma jóia de
pessoa, e muito bem apessoado!… E não era homem de vícios. Bebia o seu copito
aos domingos e não largava a pirisca, sempre ao canto da boca, isso é verdade;
mas também o que é que ele havia de fazer?… Mas foi sempre muito bom p’ra mim e
estimava-me muito. E era um grande trabalhador; não perdia uma hora, se lha
dessem a ganhar. Olhe que nunca deixou faltar nada em casa!
Logo no primeiro ano em que nos casámos foi ao quinto
e ganhou por lá bom dinheirinho, mas gastou-o logo aquase todo. Veja lá que quando
chegou a casa, ao cabo de mais dum mês, entra-me a porta a correr, que até
parecia um cachopo pequeno. Eu a cuidar que vinha com saudades minhas, qual
quê? … Pega-me no braço e diz-me ele assim:
- Ó Maria, chega cá aqui à rua a ver uma coisa tão
linda que t’eu trouxe.
-
Atão o que é que é, homem de Deus?
- Anda cá a ver...
Assomei à porta e nem queria acreditar no que os meus
olhos estavam a ver: uma burra presa por uma corda à parede da casa. Olhe, nem
sabia se havia de rir ou de chorar. O meu maior desejo sempre tinha sido ter
uma burrinha, mas estávamos no princípio de vida e tínhamos tantas precisões d’outras
coisas que me voltei para ele e só lhe disse assim:
- Ai homem, és mesmo um endoidedo! Vê lá tu se é uma
burra que nos vai dar pão e pagar as contas na loja!
Mas
ele só me deu estas palavras:
- Deixa lá, mulher… Comprei a burra p’ra mor de tu
andares a cavalo nela quando vais a algum lado, e é pa levares o estrume pà
horta e ires à lenha, que não te quero ver com carregos à cabeça.
Era mesmo um santo, aquele meu homem! É por esta e por
outras que nunca o posso esquecer e rezo todos os dias por ele.
Olhe, nunca passámos fome. Logo de manhã fazia uma
panela de sopa que dava pa todo o dia e às vezes um tachinho d’ arroz ou umas
batatinhas com qualquer coisa, e ficávamos todos de barriga aconchegada e
consolados. Mas eu também o ajudava muito. Olhe que mesmo depois de casada, ainda
fui alguns anos à resina e à apanha da azeitona, e tratava da horta como um
homem. Enchia a casa com renovo de toda a qualidade. Ele era milho, ele era
feijões, batatas, cebolas… De tudo! E todos os anos criava o meu bacorinho e tinha
o poleiro cheio de criação. Tínhamos uma casa farta, graças a Deus!
Mas como lhe estava a dizer, o meu homem era muito
bom. Olhe que nunca me tocou com um dedo. E não era nenhum borrachão, como
havia alguns que se embebedavam e adepois
era pancada de meia noite nas mulheres e nos filhos. Não senhora, o meu nunca
teve essa balda. Bebia o seu copito aos domingos, bebia sim senhora, que havia
muitas tabernas nesse tempo, mas quando chegava a casa, se começava a arrazoar,
eu já sabia como é que o havia de levar; que isto dos homens, é preciso saber
levá-los com muito jeito. As mulheres d’agora não sabem levar os homens, e é
por isso que muitas se casam e dembanão já estão apartadas… Uma pouca-vergonha!
E olhe, também nunca foi putanheiro nenhum. Diziam-se
coisas, que as bocas do mundo têm uma língua muito comprida, mas eu nunca
acreditei nas patranhas que me vinham a contar. O meu homem andar com esta e
aquela?! Não senhor! Ele só tinha olhos p’ra mim, qu’eu bem o sei…
Tivemos uns poucos de filhos. Foram quatro, ao todo. Mesmo
assim não foram muitos, que eu não alcançava com muita facilidade. A primeira
era uma menina, mas morreu com pouco tempo. Nasceu muito enfezadinha e nem
porte para mamar a cachopinha tinha. Morreu de fome. O outro já era grande. Já
ia às sortes nesse ano. Mas esse foi uma bruxa que lhe rogou uma praga, que
nesse tempo, lá na minha terra, havia muita bruxa. Veja lá que ia o cachopo,
ainda o sol vinha longe, a regar o milho e levava a enxada ao ombro e uma pedra
na mão. Nisto, viu um vulto preto agachado atrás duma moita. Pensando que era
algum bicho, atirou com a pedra e não é que acertou mesmo em cheio na cornadura
daquela velhaca? Alevantou-se de lá ela, ainda a abanar as saias, chegou-se ao
pé do meu filho e só lhe deu estas palavras: «Deixa estar, meu filho dum cabrão,
que hás de morrer com tanta dor nos cornos como as que me fizeste!» Desculpe lá
estas palavras, mas foi mesmo assim que ela falou… Atão e não é que ao fim de
pouco tempo o cachopinho me adoece? Corri tudo com ele: doutores, curiosos,
bruxas, mas nem os remédios nem as rezas, nada lhe valeu. Ao cabo dum mês
estava desenganado de todos… Que Deus o lá tenha!
Olhe, ficaram só dois. Ah! Mas sabe lá, foram sempre
muito bons filhos; muito meus amigos e do pai deles; e muito trabalhadores. Um
está na França. Só cá vem de ralo em ralo, mas quando cá está vem-me cá sempre
a ver. E às vezes até me telefona. Veja lá, de tão longe, o dinheirão qu’ele não
gasta. Pergunta-me com’é que eu ando, se me tratam bem e eu digo que sim, que
ando boa e sou muito bem tratada. Ele fica todo contente e diz-me sempre assim:
- Ai, minha mãe, a maior alegria qu’eu tenho é saber que
está bem entregue e que não lhe falta nada. Quando for a Portugal, vou aí a vê-la.
É
um santo, aquele meu filho! O outro está em Lisboa, podia cá vir mais d’amiúdo,
mas não vem porque também já tem dois filhos e as viagens estão muito caras.
Mas, por modos, os filhos já são doutores, daqueles grandes que até mandam nos
outros. Também dizem que qualquer dia me vêm cá a ver. São todos muito
bonzinhos p’ra mim… Olhe, chegue-se aqui, as mulheres deles é que não são lá de
muitos agrados, mas o que é que a gente há de fazer? Enchi-as de tudo quanto
era bom! Até lençóis de linho e toalhas de renda, feitas por estas mãos, lhes
dei. E um cordão d’ouro pa cada uma. Agora é a paga que levo… Olhe, o mal que
lhes desejo me caia em cima, mas Deus não dorme… Já os antigos diziam “Cá se
fazem, cá se pagam”; que elas também têm filhos… Olhe, sabe aquela história do
filho que levou o pai para morrer na serra? Então eu vou-lha dizer; escute bem:
Diz que há muito tempo havia um homem que já estava muito acabado. O filho, um
velhaco, não tem mais nada, agarra nele e leva-o p’ró cimo duma serra p’ra mor
do homem morrer por lá sozinho e não dar trabalhos a ninguém. Passados uns
tempos, quando ele também já estava velho, o filho faz-lhe o mesmo: leva-o p’ró
mesmo sítio onde ele tinha deixado o pai. Quando chegaram lá ao cimo, o pai,
que já sabia o que o filho ia a fazer, despe a capa que trazia vestida, parte-a
ao meio e diz assim: «Toma lá este bocado de capa, meu filho, que é p’ra quando
fores velho e te trouxerem também para aqui, teres ao menos com que t’agasalhar».
O homem arrependeu-se do que ia a fazer, pegou no pai e levou-o de volta pr‘a
casa.
Quando Deus levou o meu homem, já lá vão uns poucos de
anos, foi como se a nossa casa se tivesse esbarrondado. Antes Deus me tivesse
levado também, porque não fiquei cá a fazer nada. Passava os dias ‘specheda na
cama, numa paixão tão grande que ia dando em doida. Já nem de comer fazia, nem
nada. Foi por isso que me meteram aqui. Ao princípio, custou-me muito a deixar
a minha casinha. Olhe que tinha lá de tudo quanto era bom e que tanto me custou
a ganhar; a mim e ao meu santo homem. Muita roupinha de cama e de mesa; louça que
dava para fazer um casamento; uma televisão muito boa, onde via as novelas e as
missas aos domingos, e uma telefonia pa ouvir o terço, todas as tardes. Tenho
muitas saudades da minha casinha, mas o que é que se há de fazer? Agora já me
avezei e gosto muito de cá estar. Tratam-me muito bem, graças a Deus. Não tenho
nada a dizer. E o comer é muito bom e muito farto; e de um asseio!... Muitos nem
são capazes de o comer todo porque nestas idades a gente já tem muito fastio. É
uma estragação. Até é pecado! Havia de ser noutros tempos, havia... Não se
aventava nada e o que a gente não comia ia pós porcos e pás pitas. Mas olhe, é
bom, mas não é nada como nas nossas casas… A sopa é só batata com um meguelho
de couve branca ou ‘mas vagens a nadar por cima. Na minha casa era uma braçada
de couves negras, ali traçadinhas com’é dado. Até a gente se arregalava! Outra
coisa que também não gosto muito é do queijo que nos cá dão. A gente estava
acostumada àquele queijo de cabra, feito pelas nossas mãos. Havia lá coisa
melhor? Aqui dão-nos um queijo às fatias que não mete cobiça nenhuma e nem sabe
a nada, à vista do nosso. O que vale é que nos dão a escolher se queremos pão
com manteiga, ou com doce, ou umas bolachinhas. São muito boas, estas
raparigas! Tratam-nos muito bem! Algumas têm dias que até parece que andam
amuadas, mas é do trabalho que têm, coitadas, que a gente nestas idades dá
muito trabalho. Tomaram elas tempo para se coçarem quanto mais para andarem com
agrados p’à gente! Mas ainda bem que fizeram estas casas, porque se não o qu’é
que havia de ser de nós?...
Mas os dias é que são compridos que nem estradas, e
custam muito a passar! Está uma pessoa pr’áqui todo o santo dia assentada, sem
fazer nada; só a cismar. Quando estava na minha casa, havia sempre que fazer e
quando não havia assentava-se a gente às portas e passava agora esta, depois
aquela, e ficávamos a dar ao badalo umas com as outras. Aqui, é só olhar p’á
televisão. E esta televisão de cá nem vale um corno. Não dá nada que preste. Estão
pr’ali a ladrar, sempre aos berros, e a gente nem percebe o que eles dizem! E quando
lá aparecem aquelas mulheres a dançar com tudo à mostra?! É uma pouca vergonha!
Cá a mim nunca ninguém me viu o corpo, nem o meu homem que Deus tem. Das coisas
que mais me custaram, quando me meteram aqui, foi terem que me lavar toda
encarapata. A gente nestas idades já não mete vista nenhuma, mas mesmo assim não
gostamos que nos vejam em pelota. As vergonhas que eu passei! Só Deus e eu é
que sabemos… Mas sabe uma coisa? Agora também já não me ralo, que em a gente
vindo para estas casas, perde tudo, até à vergonha… Que seja tudo p’los meus
pecados!
Olhe, para passar o tempo, vingo-me a rezar. Rezo uns
poucos de terços por dia. Um p’lo meu homem, outro p’los meus filhos e os meus
netos, outro p’los meus pais e p’los meus irmãos que já lá estão todos. E às
vezes ainda rezo por estas cachopinhas que são muito boas e também merecem. Quer
que também reze por si? Vou rezar por si, p’ lo seu homem e p’los seus
filhinhos. Já está casada e também já tem filhos, não é verdade? Quantos são
eles? Ah!... Então rezo por vossemecês todos. Não tem que agradecer. É com
muito gosto!
E também rezo as minhas orações quando me deito e
quando m’alevanto. Sei orações muito lindas. Ai também quer aprender? Olhe, quando
me deito rezo esta assim:
Padre-Nosso,
conforto,
Fostes
vivo, fostes morto,
Perdoastes
a vossa morte
Sendo
ela cruel tão forte.
Perdoai
Senhor os meus pecados
Que
são tantos e tão largos,
Que
não os acolho confessados,
Nem
a padre, nem a clero,
Nem
ao pé de sete altares.
Confesso-os
a Vós, Senhor,
Que
bem sabeis o que eles são.
Dai-me
penitência deles
E
à minha alma perdão.
Dai-me
nesta vida graça
E
na outra salvação.
Amén!
É bonita, pois é? Foi o meu homem que ma ensinou. Ele
sabia muitas que aprendeu com a mãe dele. Era muito temente a Deus, o meu rico
homem! Não faltava a uma missa e desobrigava-se e comungava pelo menos uma vez
por ano, na Quaresma. Olhe que até foi ele que ensinou a doutrina aos filhos. Eram
outros tempos! Havia muito respeito e temor a Deus… Nunca os meus filhos foram
p’à cama sem rezarem ao Anjinho da Guarda deles e pedirem a bênção ao pai.
Outra coisa que também me custa muito a passar são as
noites. Sempre cheia de dores pelo corpo todo. Eu dantes tomava dois
comprimidos p’às dores; eram grandes, mas já nem sei de que cor eram. Agora só
me dão um branquito, muito pequenino, que aquilo nem me faz nada; é o mesmo que
se me dessem uma meguelha de pão. Olhe que ainda a noite passada não preguei
olho. Rezei três terços e adepois fiquei tão enfadada, que rezar também enfada
muito, que me pus a cantar. Cantei a Avé Maria, a Salva Rainha e as orações que
a gente antigamente cantava nas missas. E ao depois ainda cantei o fado. Se
canto bem? Ai não que não canto! Dantes, na minha terra, era eu que cantava as
ladainhas, as janeiras, os martírios e até a encomendação das almas. Sabia tudo
na ponta da língua. E dançar? Corria os bailaricos todos ali das redondezas.
Quando chegava a casa levava cada sova do meu pai! Mas não tinha emenda… E
teatros? Entrava em tudo quanto eram comédias que se faziam na minha terra.
Tinha cá uma cabecinha para aprender as falas!
E quando era na festa do São Tiago? Aquilo é que eram
festas rijas! Naquele tempo não havia por lá outra igual. Faziam-se muitos
bolos e matava-se muita carne. Eram os fornos todos a cozer sem parar durante
uma semana inteira. E no dia da festa a gente advertia-se muito. Íamos em
rancho até ao cimo do cabeço, os rapazes a tocar concertinas e pífaros, outros
a tocar bombos e caixas, e as cachopas atrás, a cantar:
Ó
Filipe San’ Tiago,
Que
lá estais no cabecinho,
Chegai-vos
cá para baixo
P’ra
serdes nosso vizinho.
Ó
Filipe San’ Tiago,
Quem
vos varreu a capela?
Foram
as moças solteiras
Com
raminhos de marcela.
Agora já não m’ alembro de nada; estou muito esquecida
e dói-me sempre muito a cabeça e os ossos todos. Se calhar até é bruxedo, que
isto o que mais há é quem nos queira mal. Eu bem trago esta medalhinha e mais
esta figa pendurada na combinação, olhe aqui, está a ver? Mas parece que não me
vale de nada, porque o mal não me larga.
Ir à doutora? P’ra quê? Olhe, ainda no outro dia lá
fui a queixar-me, mas às vezes parece que ela nem faz caso da gente. O que é
que lá vamos a fazer, pois se ela mal olha p’ra uma pessoa? E medir a atenção e
escutar a gente, é só quando ela lá bem entende… Mas já no hospital é a mesma
coisa! Ainda aqui atrasado me lá levaram, que andava cheia de tonturas, até
parece que andava bêbada. Esteve uma pessoa uma tormenta d’horas à espera para
ser vista e a depois mandaram-me entrar lá para uma sala. Olhe, estava lá uma
doutora assentada atrás da mesa que mal alevantou os olhos do contador que
tinha à frente dela. Perguntou-me do que é que m’eu queixava, e mais isto e
mais aquilo, mas olhe que nem olhou p’ra mim como é dado; só a olhar pr’aquilo
e a escrever... Ao fim passou-me ali uns comprimidos pa tomar e ao depois
mandou-me embora. Olhe que nem as boas melhoras me disse! Umas pessoas com
tantos estudos e são umas malcriadas!… Não sei o qu’é que andaram a fazer na
escola! Mas esta daqui é a mesma coisa! O mais das vezes dá-me uns pós p’ra mor
de pôr na água, que aquilo nem me faz nada… Mas a algumas figuronas sabe ela dar
uma tormenta de comprimidos de todas as cores e feitios, que eu bem as vejo a
tomá-los logo p’ la manhã. Também não sei o que é que eu sou menos que as
outras… Mas ela lá sabe! Eu calo-me, que o calado diz tudo, e a gente aqui não
manda nada, nem já somos ninguém. O que a gente era, e no que a gente se torna!
…
Olhe,
são as voltas da vida!...
M. L. Ferreira