Falhaste-lhe, Francisco
Ainda não há muitos anos, estando-se
no estrangeiro, bastava não ouvir falar Português para um cristão do Casal da
Fraga se sentir de férias. Agora, na rua do Arsenal, de tanta gente que por aí
anda, do Município para o Corpo Santo, como em sentido contrário, querendo
passar, ouve-se pedir licença em várias línguas. Ora, poupa-se na viagem, vai-se
ter a sensação de férias ao Chafariz de El-Rei, à rua dos Bacalhoeiros, ou à
referida do Arsenal.
Uma enormíssima variedade, portanto:
mais ou menos ousadas, de todas as cores e feitios, algumas enigmáticas, uma
por outra digamos em bastante mau estado, há-as bonitas e outras nem por isso.
É como tudo, como as pernas na praia, para não irmos mais longe. Refiro-me às
tatuagens, sendo que, do que quero falar, é do Francisco. Da raquítica tatuagem
do Francisco.
Estive com ele há dias. Continua
magríssimo (vá lá, magro, para não ofender, como a imagem do São Francisco da
procissão dos Terceiros). O vaticínio do costume, de que, casado, engordava e
ganhava barriga, nele saiu errado. Nem o casamento, nem a passagem dos 50, nada
– seco, magro, sem sombra da barriguinha da felicidade (consta-me que, da
fórmula, lá terá a sua felicidade, a barriguinha é que não compareceu – e por
este andar, se é que me entendem…) É este o homem da tatuagem raquítica, como
se conta a seguir.
No tempo em que tatuar o corpo ainda
não se tinha vulgarizado ao ponto que está, no tempo em que uma tatuagem dava
um certo status, era uma distinção, mal comparado, assim como ter sangue azul,
então, nessa altura (esclareça-se, entalado entre duas opções radicais – a
outra era colocar um piercing) o
Francisco aceitou o sacrifício da tatuagem. E assim se fez, no Suave Tattoo, rua do Poço dos Negros (estão
a ver, do lado esquerdo), aconselhamento especializado, competência na
execução, desenhos exclusivos, composição cem por cento manual. Satisfação
garantida.
Porém, o tattoo era um precavido profissional, orientado à técnica do Sapateiro do Tripeiro.
Vinha aos domingos, o Sapateiro do Tripeiro, em cima da hora
da missa do dia, e parava na taberna do tio João Arrebotes, acho que ao lado do Fernando Latoeiro. Ali recebia e entregava encomendas, botas, sapatos, eteceteras
da sua especialidade: na encomenda, tomava um pedaço de papel – podia ser um
bocado de um saco de cimento – punha-se o pé em cima e ele contornava com um lápis,
ali mesmo, no chão da taberna); na data acertada (nem sempre cumpria, enfim) lá
vinham os grosseiros sapatões (na rua do Arsenal ouvi, hoje, hand-made shoes e 手工鞋) na medida do desenho tirado no Arrebotes, majorado em 20% a 30%. A
contar que os pés iam crescer e o calçado era para mais de uma estação.
Gente precavida, essa e então. Também
precavido era o tatoo do Poço dos
Negros, como se disse. E vai que usou, no Francisco – caprichada! – a técnica
do Sapateiro do Tripeiro, fazendo-lhe
uma tatuagem miniatura, comprimida, com uma redução, digamos, a menos de 50%.
Ganharia o tamanho normal, o esplendor de obra-prima que nunca teve, com a esperada
evolução física do ainda hoje magro (magríssimo!) Francisco. Tem destas coisas
contar-se com o que há-de vir.
Ainda se ele engordasse, pouco que
fosse…
Sebastião Baldaque