A minha avó Rita foi a maior avó do mundo. Na verdade, todas as avós, quando gostamos delas a sério são as maiores avós do mundo. Mas a minha avó, a Ti Rita, principalmente para o pessoal do Cimo de Vila, que com ela privou mais de perto e foi cúmplice das suas famosas arruadas, pelo S. João ou pelo Carnaval concordarão comigo: era um ser excepcional.
Aqueles que foram marcados pela história ganharam com isso a imortalidade, mas os que não o foram só morrem verdadeiramente quando caem no esquecimento total da memória dos que ficaram. Por isso, decidi hoje prolongar um pouco mais a sua vida, lembrando-a e dando-a aqui a conhecer aos mais novos.
A minha avó era
uma mulher radiante. Irradiava alegria e contagiava os outros com ela. Não
tinha razões visíveis para isso, mas o seu coração era transbordante. Órfã aos
sete anos. Casada ainda nova com o Ti Augusto (manha), que era um bom homem,
muito trabalhador, mas pouco dado a folguedos e que, apesar de aparentar uma fé
inabalável, andava sempre: ai que eu
morro, ai que eu morro.
Era o raio da
hérnia a dar-lhe guerra e a imagem que nos ficou foi a de um homem sofredor agarrado
ao seu bordão, que era a bengala dos homens simples do campo, atrás da burrita
a caminho dos Aldeões.
No entanto, na rudeza que era a vida dos
pobres a trabalhar nos campos, horas sem fim, dia após dia, até lhe restarem
apenas algumas forças, nunca a avó Rita se entregava a desânimos ou tristezas.
É nos tempos
doces de primavera, no tempo das ginjas, por alturas do S. João, que mais me acode
à memória, alta e magrinha. Já perto dos 70, ainda metia os pés a caminho da
Serra muito antes do sol aparecer a oriente, para ir apanhar as ginjas que do
cimo do Pelourinho deitaria à rabatinha
na noite de S. João, depois de saltar as fogueiras na sua arruada pela Vila tocando
o adufe, cercada de jovens e adultos todos euforicamente a cantar.
Pelo Carnaval,
outra altura de folguedos, disfarçava-se de Entrudo. Vestia um dos seus saiotes
à burra, montava-se nela e lá ia a dar uma volta pela Vila com a trupe atrás,
em grande algazarra. E pelas festas de Verão não faltava nunca no arraial, pois
que não lhe perdoariam a desfeita.
Como é que ela
conseguia honrar sempre os seus compromissos nestes festejos, com o Augusto que
não alinhava em nada destas paródias? Com arte e com manha ou não fora esta a
alcunha da família, pois quem não tem
arte nem manha, morre no ar como uma aranha, alegam os manhas em sua defesa.
O que acontecia,
na verdade, é que nesses dias ela estragava o seu homem com mimos. Fazia-lhe um
bom jantar, servia-lhe mais uns copitos que o habitual e depois de confortado o
corpo dizia-lhe: anda Augusto, vamos mas é para a cama que amanhã é preciso
levantar cedo. O meu avô, com a barriguinha cheia de batatas (era doido por batatas)
e duma talhadinha de chouriça, farinheira ou toucinho entremeado, lá ia todo
contente atrás dela. Lá fora, a expectativa aumentava, quando sentiam que a luz
se apagara e não se ouvia qualquer ruído vindo de dentro. Será que o Ti Augusto
vai adormecer depressa?
Mas a verdade
não foi nunca desvendada. Não se sabe se por obra dos copitos a mais ou por
obra de uns beijinhos mais carinhosos, a realidade é que o processo se mostrou
sempre infalível.
E a alegria que surgia nos rostos ansiosos que
a esperavam em silêncio à porta, quando ela assomava à janela e lhes dizia
baixinho: já ressona. E em menos de cinco minutos lá vinha vestida a preceito
com o adufe na mão. A paródia ia começar. Já havia mestra.
A Ti Rita era
muito vaidosa e tinha sempre uns vestidos muito alegres (a condizer com ela),
de tecidos que por vezes as amigas de Lisboa lhe levavam, para lhe agradecer os
mimos de umas frutas, um litro de azeite ou até de uma morcela de cozer, quando
lá iam passar as férias de verão.
E assim se criou
um ícon da tradição popular, sem castings,
sem formação, só com a alegria do seu coração e a sua enorme capacidade de a
partilhar.
O meu avô, não creio
que não tivesse vindo a saber destas actuações deveras famosas. Como homem
sábio que era, deve ter achado o que o Passos Coelho achou da miraculosa
licenciatura do dr. Relvas: um não
assunto.
Digam lá
sinceramente, a minha avó Rita não era um espectáculo? Espero que ela fique
contente com as memórias que nos deixou, quando souber desta crónica lá no Céu.
Adeus Avó Rita.
Do teu neto
Francisco Barroso que também dá por Chico manha
A avó Rita com a sua bisneta Margarida
6 comentários:
Lembro bem dela, da Ti Rita. Conto um episódio que eu próprio vivi e que se foi repetindo de forma idêntica, durante anos.
Noite quente de S. João !! Muito calor em casa e toda a gente na rua, à porta, a acender as fogueiras. Muita correria e alarido. O estrepitar das bombas de S. João, no meio do fumo a cheirar (bem) a rosmaninho queimado. Durante a folgança, organizaram-se, espontaneamente, grupos de rapazes, "as maltas", deambulando pela Vila "a bater pedras de seixo" ou a saltar, com valentia, as (mais altas) fogueiras, para impressionar as raparigas.
A uma certa hora da noite, ouviu-se dizer: "lá vem a Ti Rita com o seu adufe". E logo todos se precipitaram para a ver cantar, bailar, tocar o adufe e contagiar de alegria tudo e todos à sua passagem. Começou no Cimo de Vila, onde morava, com muitos atrás dela, também a cantar e a dançar. Deu uma "volta em redondo" pelo Fundo Vila e regressou ao local de partida. Com ela, a festa de S. João redobrou de entusiasmo, até á hora da deita, lá para a meia-noite.
Este texto do Chico Barroso retrata bem a Ti Rita. É uma homenagem sentida que, como neto, aqui lhe quis prestar.
E, quanto a mim, justíssima, pelas razões que ele invoca.
Zé Barroso
Esta é a história de uma mulher notável, representante de um património que andamos a esquecer/ignorar dramaticamente, embora já saibamos que a modernidade não é tudo, na complexidade da vida humana, individual e comunitária.
Ao ler o comentário do Zé Barroso concluo que passei mesmo à margem da vida da nossa comunidade, na minha infânica e adolescência.
Não conhecia o hábito de atirar ginjas aos miúdos, no São João. Apenas sabia do hábito de ir às ginjas,pelas estrofes que há dias aqui publiquei.
É maravilhoso podermos juntar o conhecimento do passado às pessoas que o construíram e esta história de vida da Ti Rita é excepcionalmente saborosa..
O registo, como é teu apanágio, está 5 estrelas.. e fiquei a saber, porque é que o Pe. Jerónimo me disse para eu ter perguntar quem eram os "manhas". Continua Xico
A Barata
Lindas as imagens que nos chegam pelas palavras da recordação...é voltar lá e lá ficar por alguns momentos... Lembro-me tão bem dos teus avós!!! Pessoas Grandes como grandes eram os valores que nos rodeavam... Obrigada pela partilha, Chico.
E um obrigada especial ao Zé Teodoro, por todo este espaço riquíssimo permeado de memórias e atualidade.
sim chico a tia rita era isso e tudo mais ,tive a sorte de ser vezinho dessa grande mulher que soudades , obrigado tia rita ,e chico zè passaraço frança
Ouvi muitas estórias da minha bisavó Rita contadas por familiares mas tambem pelos mais velhos de S. vicente.Ao fazer pesquisa para um trabalho escolar mal me identificava as pessoas passavam a falar entusiasticamente e com saudade de minha bisavó. Como faleceu quando eu tinha apenas cinco anos guardo apenas duas memórias. Vejo-a entrar em casa da minha a avó e oferecer-me rebuçados e recordo o seu féretro na sala dos meus avós no dia do seu velório. Não sei se frequentei a sua casa enquanto viva mas tenho uma vaga memória da casa antes de ser reconstruida pelos meus pais.
Ainda há dias a minha avó nos contou que : Certo dia quando a Ti Rita ainda vivia com os irmãos na serra por alturas do Verão, o irmão mais velho levantou-se bem cedo matou um cabrito, guardou-o bem escondido e rumou à Paradanta para cortejar uma rapariga.
Quando regressou a casa trazia água na boca e os pensamentos no cabrito. Foi buscar o dito e entregou-o à irmã Rita para que esta o cozinhasse. Ela pegou no animal, que já cheirava mal, e atirou-o barreira a baixo enquanto dizia:- " Ai queres cabrito? Pois cozinha-o tu."
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