quinta-feira, 4 de abril de 2013

O nosso Fernando

Há dias, revisitando histórias mais antigas deste blogue, vi uma referência ao Fernando a propósito do leite que (não) fugiu.
Trata-se de uma situação quase anedótica, mas que revela bem do zelo que o Fernando, já na altura, punha nas coisas que fazia.
Nunca me esquecerei da surpresa que senti, há muito anos, quando o vi com o seu ar compenetrado, óculos de sol e boné à maneira, ajudando a regular o trânsito na saída da praia de Carcavelos. Quem não o conhecesse, julgaria que se tratava de um profissional experiente e muito competente.
Passado muito tempo resolvi dar um passeio pelas nossas charnecas das quais apenas guardava memórias muito distantes (só me lembro de ir uma vez à Partida por altura do casamento de uma prima do meu pai, e outra vez ao Violeiro com a minha mãe e as minhas tias para levarmos as fitas com que mandavam tecer as mantas de trapos). A certa altura, na estrada entre os Pereiros e a Partida, lá está novamente o Fernando, trajado a rigor, pronto para orientar quem necessitasse de ajuda. O empenho e concentração que lhe adivinhei naquele dia e num local onde só passava um carro, de tempos a tempos, eram os mesmos que lhe vi, anos antes, no meio do trânsito intenso da marginal de Cascais, numa tarde de Verão.
Mas foi há cerca de um ano, aquando da festa do São Tiago que o Fernando me deu a maior lição de civismo. Tinha ouvido dizer que o nosso rancho ia atuar na Partida nesse dia e convenci o meu marido a irmos até lá para assistir a essa atuação. Quando chegámos à entrada da aldeia não vimos ninguém na estrada que nos pudesse indicar o local da festa e enquanto nos decidíamos pelo caminho a tomar vimos aparecer, ao longe, vindo na nossa direção, uma pessoa que nos pareceu ser um GNR. Ficámos mais tranquilos e fomos caminhando ao seu encontro. Quando nos aproximámos um pouco mais, vimos que era o Fernando. Caminhava em passo decidido, o olhar sempre em frente, e trazia uma garrafa de cerveja vazia em cada mão. Ficámos um bocadinho à conversa com ele e, às tantas, em tom de brincadeira perguntámos-lhe se duas cervejitas não eram bebida a mais. Ele, com o seu ar calmo, respondeu-nos mais ou menos isto: “Não senhor, eu não bebi nada. Vossemecês querem lá ver, foram uns homens que estiveram a beber lá ao pé da capela e aventaram as garrafas e eu trouxe-as para as botar no caixote do lixo”. Fiquei sem palavras!
A última vez que o vi foi em Junho ou Julho do ano passado. Fui à Senhora da Orada ao final da tarde e lá estava o Fernando sentado numa pedra junto à fonte. Para além de cansado, pareceu-me triste e muito agitado. Estivemos um bocado à conversa e contou-me que tinha saído de casa de manhã, atravessou a serra toda a pé e, pelo que percebi, durante o dia todo só tinha comido uns abrunhos que uma mulher lhe deu pelo caminho. Contou-me também que tinha vindo rezar porque a sobrinha andava muito triste, pois o marido tinha-a deixado. Contava que a Nossa Senhora fizesse o milagre de o trazer de volta…
Quando me vim embora, insisti para que viesse comigo, comia qualquer coisa na minha casa e depois levava-o de carro à Partida. Ele recusou. Disse que voltava outra vez pela serra e num instantinho se punha em casa. 

M. L. Ferreira

2 comentários:

José Teodoro Prata disse...

Conheço mal o Fernando, embora ainda seja meu primo. Andámos muito por fora, em sítios diferentes.
Esta história revela-me um homem com um carinho e um espírito cívico extraordinários.
Mostra-nos que a dignidade, o amor ao outro e o saber estar em sociedade não são qualidades exclusivas dos mais inteligentes, dos mais afortunados na vida.
Existem tantos Fernandos a provar-nos que estamos enganados e que, por vezes, são eles os depositários das maiores virtudes.


Anônimo disse...

Obrigada sempre ao autor do blogue, porque me dá o prazer de relembrar os momentos do passado, de que tenho tantas saudades.

Também aos que contribuem com as suas histórias reais.
Aqui, no meu local de trabalho, no meio desta cidade louca de ruídos, após o meu almoço, por vezes dou-me ao luxo de espreitar (que o trabalho não permite por muito tempo), este blogue; aquece-me um pouquinho o coração.

Tina Teodoro