Há dias, revisitando histórias mais antigas deste
blogue, vi uma referência ao Fernando a propósito do leite que (não) fugiu.
Trata-se de uma situação quase anedótica, mas que
revela bem do zelo que o Fernando, já na altura, punha nas coisas que fazia.
Nunca me esquecerei da surpresa que senti, há muito
anos, quando o vi com o seu ar compenetrado, óculos de sol e boné à maneira, ajudando
a regular o trânsito na saída da praia de Carcavelos. Quem não o conhecesse,
julgaria que se tratava de um profissional experiente e muito competente.
Passado muito tempo resolvi dar um passeio pelas
nossas charnecas das quais apenas guardava memórias muito distantes (só me
lembro de ir uma vez à Partida por altura do casamento de uma prima do meu pai,
e outra vez ao Violeiro com a minha mãe e as minhas tias para levarmos as fitas
com que mandavam tecer as mantas de trapos). A certa altura, na estrada entre
os Pereiros e a Partida, lá está novamente o Fernando, trajado a rigor, pronto para
orientar quem necessitasse de ajuda. O empenho e concentração que lhe adivinhei
naquele dia e num local onde só passava um carro, de tempos a tempos, eram os
mesmos que lhe vi, anos antes, no meio do trânsito intenso da marginal de
Cascais, numa tarde de Verão.
Mas foi há cerca de um ano, aquando da festa do São Tiago que o Fernando me deu a maior lição de civismo. Tinha ouvido dizer que o
nosso rancho ia atuar na Partida nesse dia e convenci o meu marido a irmos até
lá para assistir a essa atuação. Quando chegámos à entrada da aldeia não vimos
ninguém na estrada que nos pudesse indicar o local da festa e enquanto nos
decidíamos pelo caminho a tomar vimos aparecer, ao longe, vindo na nossa
direção, uma pessoa que nos pareceu ser um GNR. Ficámos mais tranquilos e fomos
caminhando ao seu encontro. Quando nos aproximámos um pouco mais, vimos que
era o Fernando. Caminhava em passo decidido, o olhar sempre em frente, e trazia
uma garrafa de cerveja vazia em cada mão. Ficámos um bocadinho à conversa com
ele e, às tantas, em tom de brincadeira perguntámos-lhe se duas cervejitas não
eram bebida a mais. Ele, com o seu ar calmo, respondeu-nos mais ou menos isto:
“Não senhor, eu não bebi nada. Vossemecês querem lá ver, foram uns homens que
estiveram a beber lá ao pé da capela e aventaram as garrafas e eu trouxe-as
para as botar no caixote do lixo”. Fiquei sem palavras!
A última vez que o vi foi em Junho ou Julho do ano
passado. Fui à Senhora da Orada ao final da tarde e lá estava o Fernando
sentado numa pedra junto à fonte. Para além de cansado, pareceu-me triste e
muito agitado. Estivemos um bocado à conversa e contou-me que tinha saído de
casa de manhã, atravessou a serra toda a pé e, pelo que percebi, durante o dia
todo só tinha comido uns abrunhos que uma mulher lhe deu pelo caminho. Contou-me
também que tinha vindo rezar porque a sobrinha andava muito triste, pois o
marido tinha-a deixado. Contava que a Nossa Senhora fizesse o milagre de o
trazer de volta…
Quando me vim embora, insisti para que viesse comigo,
comia qualquer coisa na minha casa e depois levava-o de carro à Partida. Ele
recusou. Disse que voltava outra vez pela serra e num instantinho se punha em
casa.
M. L. Ferreira
M. L. Ferreira
2 comentários:
Conheço mal o Fernando, embora ainda seja meu primo. Andámos muito por fora, em sítios diferentes.
Esta história revela-me um homem com um carinho e um espírito cívico extraordinários.
Mostra-nos que a dignidade, o amor ao outro e o saber estar em sociedade não são qualidades exclusivas dos mais inteligentes, dos mais afortunados na vida.
Existem tantos Fernandos a provar-nos que estamos enganados e que, por vezes, são eles os depositários das maiores virtudes.
Obrigada sempre ao autor do blogue, porque me dá o prazer de relembrar os momentos do passado, de que tenho tantas saudades.
Também aos que contribuem com as suas histórias reais.
Aqui, no meu local de trabalho, no meio desta cidade louca de ruídos, após o meu almoço, por vezes dou-me ao luxo de espreitar (que o trabalho não permite por muito tempo), este blogue; aquece-me um pouquinho o coração.
Tina Teodoro
Postar um comentário