quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Alexandre Henriques

Síntese do trabalho “Movido pela loucura ou pela fé: trajetória de Alexandre Henriques”, da investigadora Grayce Mayre Bonfim Souza, professora na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Brasil, e publicado em

Alexandre Henriques foi batizado, em São Vicente da Beira, pelo Padre cura Antonio Simões Leitão, aos onze dias do mês de dezembro de mil seiscentos oitenta e nove anos e foram padrinhos Pedro Rodrigues da Costa, solteiro, filho de Alexandre Henriques e de sua mulher Brites Rodrigues, e sua madrinha Leonor Rodrigues da Vila do Sabugal. Era filho de Francisco Henriques da Costa, comerciante de tecidos, e Clara Rodrigues, todos de São Vicente da Beira.

Em dezembro de 1706, Alexandre Henriques procurou a Mesa Inquisitorial do tribunal de Lisboa para confessar que praticava o judaísmo e que havia sido iniciado (juntamente com sua irmã Maria Nunes) por sua mãe, Clara Rodrigues, e pela madrinha, Leonor Rodrigues (também sentenciada pelo tribunal). Nessa ocasião, ele fez referência ao ritual de jejuar e “guardar o dia grande do mês de setembro”. O jejum grande consistia em abstinência completa de “alimentos sólidos ou líquidos durante 24 horas do Iom Quipur, iniciado na véspera, quando a primeira estrela aparece no céu, encerrando no dia seguinte à mesma hora”.

Após confessar perante o Santo Ofício, ficou por certo tempo na Corte, dedicando-se a alguns negócios, e depois passou para a cidade de Leiria; em seguida foi assistido na Vila de Perucha (Ourém, Portugal) e depois no Rio de Janeiro, e posteriormente nas Minas. Por fim, foi recolhido como louco pelo hospital da Santa Casa da Misericórdia na cidade da Bahia.

Alexandre Henriques, cristão-novo e mercador, foi preso em Serro Frio, região das Minas do Ouro, e enviado à Baía e depois para Lisboa, onde deu entrada na prisão dos Estaus (Rossio, sede da Inquisição, no lugar do atual teatro D. Maria II), no dia 16 de março de 1734, com 46 anos de idade.

Quando foi preso, disse que ele ao tempo em que foi preso tinha uma loja, que importaria em vinte e tantos mil cruzados de fazendas [...]. E do líquido, que se lhe quer [são] vinte e duas dobras de dose mil e oito [centavos] cada uma, e dez patacas de trezentos e vinte réis cada uma, que importam em três mil e duzentos réis, e quatro oitavas de diamantes brutas, que não se sabe o quanto valeriam.

Na Baía, onde foi recolhido ao Hospital da Misericórdia, por loucura, Alexandre Rodrigues disse que não acreditava na Santíssima Trindade, que há um Deus poderoso, mas não trino nas pessoas, como também negava a encarnação do divino Verbo, a pureza imaculada da Virgem Santíssima e, finalmente, todos os mais mistérios da nossa Santa Fé, da instituição do Sacramento do Altar, Sagrada Eucaristia, Ressurreição... Encerrado o seu discurso herético, teria confessado ser judeu de nação e acreditava que só a “lei de Moisés era verdadeira e que nela queria morrer, ainda que o queimassem vivo. E que desde os sete anos o seu nome verdadeiro era Isaac Pecador.

As testemunhas consideraram que Alexandre Rodrigues era movido pela convicção religiosa de um judeu “muito apaixonado” e não pela loucura.

Alexandre Rodrigues declarou ainda que, depois que saiu do Santo Ofício, em 1706, viveu apenas três anos na lei de Cristo, retornando então para a lei de Moisés, porque o demónio o perseguia.

Ao próprio Vice Rei, que lhe perguntou se ele era cristão e cria em Deus, logo lhe respondeu publicamente que era judeu, e que cria no Deus de Israel e na Lei de Moisés em que havia de morrer.
Ao Comissário da Inquisição João Calmon, pediu Alexandre Rodrigues que alcançasse licença de liberdade de consciência para viver na lei de Moisés em que só cria por verdadeira.

Enviado à Inquisição de Lisboa, permaneceu no cárcere de Estaus durante mais quatro anos. Mandou-se então investigar o seu passado, em S. Vicente da Beira.

Da diligência realizada, pelo comissário do Santo Ofício Manuel Simões, obtiveram-se poucas informações, mas o suficiente para perceber que a família, desde muito cedo, foi se decompondo por conta das perseguições religiosas. Nos relatos e outras informações que surgem ao longo do processo, foi possível identificar três de seus irmãos. O pai, Francisco Rodrigues da Costa, era um cristão novo e mercador, e a mãe, Clara Rodrigues, foi presa em 21 de março de 1703, por acusação de judaísmo, sendo sentenciada em Auto de Fé que ocorreu no ano de 1705, cuja pena foi abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuo sem remissão, degredo para Angola por 5 anos e penitências espirituais. Maria Nunes, irmã de Alexandre Henriques, também procurou a Mesa em 1706 para confessar que judaizava e Brites Rodrigues da Costa ficou presa nos cárceres dos Estaus por mais de um ano e meio. Consta ainda no sumário que o terceiro filho, Pedro, tinha problemas mentais e morreu ainda muito jovem, em 1703. Segundo as testemunhas, o mais novo era Alexandre e havia-se ausentado da Vila fazia muito tempo.

Considerado louco, foi Alexandre Rodrigues entregue ao Hospital Real de Todos os Santos, onde faleceu, em novembro de mil setecentos e trinta e sete.

Notas:
- Apelidos de Alexandre Henriques e sua família: Henriques, Rodrigues, Nunes e Costa.
- Em 1689, o cura da Igreja de São Vicente era António Simões Leitão. Em 1733-37, o representante local do Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) era Manuel Simões, o qual sabemos ter sido padre e licenciado. Aliás, em 1739, exerceu provisoriamente o cargo de Vigário. Em 1709, este Manuel Simões foi padrinho de um filho de Manuel Lopes Guerra. Ambos, Manuel Simões e Manuel Lopes deram nomes a ruas do Cimo de Vila. Em 1762-85, existiu um Doutor Manuel Simões e, na mesma época, um Cláudio António Simões (filho de Manuel Lopes Guerra), também letrado, pois era escrivão da Câmara. Foi a filha deste, Maria Benedita Simões Feio de Carvalho, que casou com um membro da família Cunha Pignatelli, fundando a Casa Cunha, em São Vicente da Beira.
- O grande dia do Iom Quipur, em finais de setembro, era (é) para os judeus um dia de jejum e de extrema religiosidade. É o dia do perdão das faltas cometidas sobre os outros, perdão que se obtém desses outros, por meio da demonstração de um profundo arrependimento. Isto levanta-nos uma questão muito complexa: a data coincide com a nossa festa do Santo Cristo, também ela de grande religiosidade, no passado e ainda hoje. A devoção ao nosso Santo Cristo da Misericórdia já era grande no século XVIII, mas manifestava-se ao longo de todo o ano e não num dia especial. Terá sido criada a festa ao Santo Cristo para fazer esquecer aos descendentes dos judeus as suas antigas tradições religiosas, enquadrando-as no Cristianismo? Ou, por outro lado, ter sido criada por descendentes de judeus que consideravam, por tradição, os finais de setembro como um tempo sagrado.

José Teodoro Prata

4 comentários:

Anônimo disse...

Quando li o texto original, publicado com o título “Somos (quase) todos judeus”, pensei que, se calhar, era mais “ somos quase todos loucos”, mas conheço tão pouco o pensamento da época que guardei a ideia só para mim.
Quanto ao desfecho da vida de Alexandre Henriques, ainda bem que o hospital de Todos os Santos se foi com o terramoto porque, pelos vistos, a quem lá entrava aplicava-se o ditado “não morreu do mal, mas morreu da cura…”.
No meio desta história, fica-nos um certo orgulho de, apesar de não ser pelas melhores razões, vermos o nome da nossa terra referido num estudo feito no Brasil. Num tempo em que andamos tão acabrunhados, temos que nos agarrar a tudo para elevar um poucochinho a nossa auto-estima!...

M. L. Ferreira

Anônimo disse...

Hipóteses corajosas, as de ZTP sobre o Santo Cristo; arrisco uma alternativa: O São Miguel de Setembro foi sempre uma das grandes datas do calendário nacional - nos séculos passados e ainda no tempo dos avós mais recentes; aí se venciam os contratos e se faziam os pagamento das rendas, em dinheiro e/ou espécie. A fixar-se uma data de celebração do Santo Cristo, a escolha não poderia deixar de ser a do São Miguel de Setembro.
Aproveitando o correio, apesar do atraso, parabéns pelo aniversário deste serviço cívico de ZTP, do alto dos Enxidros.
JMT

José Teodoro Prata disse...

São lixados, estes historiadores.
A gente por aqui a ver se damos nas vistas, na esperança que nos calhe algum grão de arroz (a recém criada Rota das Judiarias só inclui sedes de concelho)e vêm-nos com o rigor histórico!
É verdade que o São Miguel é a hipótese mais aceitável, embora o IOM QUIPUR apenas o reforce (2 em 1).
Por outro lado, é verdade que o São Miguel marca o fim de um ciclo, mas localmente ele fechava-se sobretudo no dia de Nossa Senhora de Agosto. Era então que se pagavam quase todas as rendas, quase sempre em cereal acabado de malhar.
Mas este comentário do JMT e sobretudo algumas informações que me mandou por e-mail dão-nos uma esperança muito grande: talvez ele ande a investigar a nossa comunidade judaica/de cristãos-novos, um estudo que nos faz muita falta.

Anônimo disse...

Um filho de cristãos arrisca-se a levar quando se mete com quem mais sabe do passado de São Vicente. Dos avós judeus mais velhos, a ver vamos; darei notícias. JMT