domingo, 11 de maio de 2014

Uma centelha de afeto

RABOMOLE

I

Esta Páscoa, após as festas, deu-me, mais uma vez, para dar uma volta pelas proximidades da Vila. Ao mesmo tempo que tentava ler (ou reler) dois livros. Um, a ‘Aparição’ do Vergílio Ferreira; outro, ‘O Arranca Corações’ do Boris Vian.

Já tinha tentado essa leitura. As férias são curtas para tanto. E mais uma vez me fiquei pela tentativa. Ao todo, de um e outro, li apenas uns capítulos.

Deixei de parte essa tarefa. E, como há muito me interesso pela disciplina da Arqueologia, de vez em quando vou ver o que ainda resta dos antigos Romanos; ou à procura de alguma linda moura que, por obra de bom feitiço, se encontre encantada algures numa gruta da Gardunha.  

Primeiro, a sul.

Estaciono o carro junto à estrada, ao fundo do alto da Fábrica, do lado de lá. Sigo, a pé, até às Vinhas do Poço, local onde parece que os nossos antepassados Romanos assentaram arraiais.

É aí que parece existir a maioria dos elementos arqueológicos de superfície, até agora conhecidos. Desde moedas com a efígie, designadamente, do imperador Constantino (séc. IV); cerâmica (telha, (tegula), pedaços de potes, tijolos; e, eventualmente, azulejaria romana de pavimento (existem lá fundações de casas da época) … Um mundo a descobrir!

Vim depois para cima, até à fonte de mergulho da Portela, a sul, onde persistem afloramentos de calçada antiga, talvez romana, talvez árabe ou mesmo medieval.

Calçada que, na sua continuidade, ia entrar na Vila, passava pela Rua da Corredoura, no topo do povoado e se dirigia ao alto da Portela, a norte, no cimo da Senhora da Orada. Daí, descia a encosta norte da Gardunha para o Fundão, com a Estrela à vista.

Uma espécie de ‘CREL’ (Circular Rodoviária Externa de Lisboa), da época, mas da Lisboa … Pequena.

O intuito que, desta vez, me trouxe a esta aventura era simples: percorrer, a pé, toda essa estrada antiga, das Vinhas até ao alto da Senhora da Orada e localizar os afloramentos de calçada, onde eles ainda existem.

Com a mobilização de pessoas, a colaboração dos Escuteiros e a ajuda de algum técnico especializado, talvez se possa conservar e limpar um pouco o caminho. Finalmente, poder fazer desse percurso um itinerário para passeios pedestres, com sinalética adequada, paragens estratégicas de descanso e compensação do estômago e mini palestras de esclarecimento sobre o património.   

Porém, poupei-me ao esforço de percorrer, a pé, toda essa calçada desde as Vinhas até à Portela, a norte. Nem tinha tempo para isso. Peguei no carro e segui pela estrada habitual, até à Senhora da Orada.

Tinha, inevitavelmente, que ir beber água à fonte. Li ali uns versos dedicados à santa. Olhei para a capela e vi mais uns versos, num azulejo, na parede traseira e várias ofertas de flores na fachada da frente. Fui parar o carro, já à saída, na curva, fora da estrada, perto do ribeiro, no local onde a tal estrada antiga de pedra continua, serra acima, até ao alto da Portela. Passando ali ao lado da exploração das águas da ‘Fonte da Fraga’, onde se vê jorrar água em vários respiradouros da conduta.

II

Aí iniciei a subida.

Levo comigo um porta-documentos com bolsa e correia de 60 cm, contendo um molho de chaves, 2 telemóveis, carteira com vários cartões, um comando elétrico, uma pen, um porta-moedas, tabaco, isqueiro. Tem algum peso.

E logo dei por um cão pequeno que por ali vagueava. Como não apresentava um estado de escanzelado ou de magreza, concluí que pertenceria a alguma das pessoas que por aquele sítio tem animais. Ainda agora não sei se isso corresponde à realidade. Sei apenas que o cãozito, tal como apareceu, repentinamente, voltou a desaparecer, sorrateiramente, entre o mato que bordeja o caminho.

Nem eu, nem ele proferimos qualquer som. Mal o tinha visto. Mas, naqueles breves segundos, pude reparar que pouco abanou o rabo, sempre descaído. E logo me deu para o batizar de ‘Rabomole’.

Deixei de o ver. Prossegui.

O tempo estava bom para andar porque não fazia muito calor. Estava até um pouco fresco. Mas o sol, quando aparecia, frequentemente, entre as clareiras de nuvens, picava a pele. O que valia era que essas nuvens me iam sempre protegendo, a intervalos, com a sua sombra reparadora.   

Caminhava sozinho, absorto, num bom passo, apesar de a subida ser acentuada. Tinha muito que andar!

Além do bulir do mundo, com o cantar das aves e o zumbido dos insetos a libar e a polinizar muitas flores que já estão abertas ao sol e ao ar, compondo o quadro da primavera, nada mais se ouvia, a não ser os meus sapatos a chuçar as pedras soltas do caminho.

Apenas uma aragem agitava as giestas cujas flores amarelas e brancas, um pouco mais atrasadas, querem agora desabrochar.

E lá prosseguia, serra acima, à descoberta dos afloramentos de calçada. Tão compenetrado ia em chegar à Portela, que não dava por nada!

Já me tinha esquecido do cãozito que encontrara ao fundo da ravina.

III

Subitamente, ouço do lado direito, mas atrás mim, um arfar de respiração que me assustou um pouco, pois não tinha dado por alguém ou algum animal se ter aproximado. O que quer que fosse, que se veio ali postar à minha ilharga não tinha feito qualquer barulho.

Mas numa fração de segundo, veio-me à cabeça a única conclusão possível: só pode ser um animal. E, a avaliar pelo cavo ofegar, talvez um grande cão, guardador de rebanhos ali na serra. Assustou-me, sobretudo, o pressentimento (e isso era real) de que, estando de costas, me encontrava ao alcance do animal, caso este formasse um salto para me atingir, sem que eu pudesse defender-me.

Virei-me, então, instintivamente e agarrei o porta-documentos pela correia, com todas as coisas que levava dentro (algumas metálicas) e fiz menção de dispará-lo contra o focinho do animal, o que sempre teria o efeito de o afastar dos seus intentos.

Mas, ao virar-me, para agredir o intruso, que eu sentia estar ali mesmo muito perto, não era senão o cão que tinha visto no início da subida da encosta. Descansei.

Após aquele meio gesto de ameaça, o cão afastou-se com medo. Pregara-me um pequeno arrepio. Não lhe dei confiança. Ele percebeu e ficou para trás. Deixei de o ver novamente. Deve ter feito a mesma manobra que fez da primeira vez. Saiu do caminho e meteu-se de novo pelo mato, silencioso. Continuei na minha senda.

Ao fazer cada curva da estrada, olhava à retaguarda, a tentar perceber a sua estratégia de caçador como é toda a condição de cão. E lá estava ele ao fundo do caminho, sentado sobre as patas traseiras, a medir os meus movimentos e a avaliar cada gesto meu, guardando uma distância defensiva. Depois, uma e outra vez, voltava a meter-se mato dentro até aparecer de novo.  

Chegado ao alto da Portela, de lá divisei, para sul, a vastidão da Beira Baixa com montes e planícies; para norte, a imponente Estrela, ainda com as neves da época, a derreterem-se para o mar, pelos vales do Zêzere e Mondego.  

Entretive-me a tirar umas fotos. E o que é que vejo, ao virar-me para trás, mesmo no cruzamento do alto da Portela? O cão, o Rabomole, de novo, a observar-me. Tinha-me acompanhado até ao fim da etapa. E até parece que sabia que era ali o fim do caminho que me propusera percorrer.

Então chamei-o: “Rabomole, anda cá, botcho! E fazia aquele som que se obtém quando se unem os lábios, inspirando o ar como quando se dá um beijo repenicado na face de alguém. Até hoje ainda não compreendi por que é que os cães percebem que isso é um sinal de afeto dos humanos para com eles!

Rabomole abanava então mais intensamente a cauda, de satisfação. Mas sem nunca a levantar muito. Acercou-se de mim e veio mesmo deitar-se perto das minhas pernas. Fiz-lhe umas festas. Mas nada levava comigo que se comesse para lhe poder dar. Não me abandonou mais. Tinha feito um amigo!

Lá no alto, uma pequena nascente das que, nesta época, atravessam o caminho, tinha acumulado água numa poça e já ele se tinha metido no lamaceiro, para arrefecer. O esforço da subida fora grande! Ficou todo enlameado.        

Repentinamente, tocou o meu telemóvel. Alguém me telefonava. Atendi. Falei, falei. Rabomole não arredava pé. Procurava compreender, no seu entendimento de cão, que aparelho seria aquele que tocava. Rádios já ele teria visto muitos! Mas aquilo…

O desconhecido é como inimigo, diz-se. Por isso, orelhas sempre alerta! Olhos vivos! Movendo-se a cada trejeito meu, enquanto falava ao telefone! Rápido como a sombra!

E talvez até se interrogasse: “Se não está a falar para mim - o que ele com toda a certeza perceberia – por que é que este indivíduo está para ali a falar alto, se não está aqui ninguém para lhe responder?” Não percebia. Que créditos lhe mereceria eu, então, no mundo dos cães

IV

Mas, bem, após demorar-me uns minutos, lá no alto, iniciei a descida, que estava a passar da hora do almoço, na Vila. E ele sempre comigo, logo atrás, ao lado ou à frente. Agora já tinha confiança em mim.

Mas o seu instinto de caçador levava-o, por vezes, a perscrutar, de focinho em riste, algum movimento impercetível para mim de algum animalzinho terrestre ou ave a saltitar nas giestas; outras vezes, parecia que ia cheirar algum arbusto, pedra ou cômoro, marcando o seu terreno com urina. Mas logo voltava, de novo, a sua atenção para mim, vindo no meu encalço, mantendo-se à distância regulamentar.

Os meus passos eram agora mais rápidos porque a descer todos os santos ajudam. A umas boas dezenas de metros do local onde tinha ficado o carro, lá em baixo deixei, surpreendentemente, de o ver. Mas quando cheguei, lá estava ele, fiel, a arquejar, língua de fora, deitado ao lado do carro, à sombra, que o sol, no seu pino, queimava, se as nuvens, momentaneamente, se afastassem.

Chamei-o mais uma vez e fiz-lhe mais umas festas. Ao despedir-me, sentia já saudades daqueles momentos, daquela pequena caminhada que tínhamos feito, irmanados, eu, no esforço de alcançar um objetivo ele na perseverança de me acompanhar, com a expectativa de algum afeto. Era apenas isso que, naquelas circunstâncias, lhe podia dispensar.

Pus o motor a trabalhar e disse-lhe adeus. Correu atrás do veículo enquanto pôde, a boca a resfolegar! A última vez que o vi, pelo retrovisor, ainda vinha a correr, até que desapareceu na curva, pulmões a queimar, ao rubro, na tentativa inglória de me alcançar. Acelerei com a emoção contida. Queria sair dali. E afastei-me, definitivamente, na estrada.

Mesmo não podendo vencer a máquina, o querer daquele pequeno cão é enorme, não tem limites.  

E dei comigo a pensar: “O engenho do homem nada pode, afinal, contra a centelha de afeto criado na Natureza.”

Resta-me a falsa tranquilidade de pensar que Rabomole terá o conforto de se sentar, hoje, à ceia, ao colo do dono, no aconchego de um lar.

José Barroso

A propósito de um comentário



Libânia, é este o cão?
(Oxalá não seja!)

José Teodoro, a pedido do José Barroso



Olhem p’ra mim, tão lindo!
Infelizmente, parece que é mesmo o Rabomole! É muito triste que façam isto aos animais, mas se até o fazem às pessoas…
Mas ele continua com bom aspeto e sem fome; e pode ser que tenha a sorte de outros que por aqui têm aparecido. Ainda há pouco tempo a Adriana e o Dário “adotaram” um que também por aqui andava abandonado.
Já há quem diga que no Casal até os cães têm sorte. O Rabomole também vai ter a dele!
Espero dar boas notícias em breve…

M. L. Ferreira

7 comentários:

Ernesto Hipólito disse...

Eu penso que o cão ( coitadinho ) foi enganado . Viu um senhor de "Mercedes" e pensou que dali viria alguma coisa para comer. Como ele estava enganado.
Vida de cão!
Queres mato?

Abraços

E.H.

Anônimo disse...

Quanto ao percurso entre a Fábrica e as vinhas do poço, fizemo-lo o ano passado no passeio pedestre com o José Teodoro por alturas da Feira de Artesanato e Gastronomia. É de facto impressionante a quantidade de vestígios arqueológicos antiquíssimos que ainda por lá existem: a estrada romana, a lagariça, a sepultura, a Fonte da Portela… Mas também faz pena que não haja alguma preocupação em preservar esses vestígios e divulgá-los mais. Pelos vistos não é só aqui. Ainda hoje, num passeio até Pinhel, vi uma tabuleta que indicava Sepulturas rupestres. Fiz um desvio para ir até lá, mas vi-me grega para as encontrar. Tive que caminhar por um carreiro cheio de mato quase da minha altura. Ainda descobri três das ditas sepulturas, escavadas em grandes rochas, mas foi quase por acaso. Não sei se haveria mais, mas desisti de as procurar.
A segunda parte do percurso, pela Gardunha, fi-lo há dois anos, com o grupo da ginástica, mas subindo por um caminho que começava mais ou menos na escavação, subia até às eólicas e descia depois por esse caminho romano até à Senhora da Orada. Foi um passeio noturno, com o céu estrelado e as luzes de todas as povoações à volta a brilhar. Magnífico!
Quanto ao cão, é caso para dizer: há lá melhor amigo do homem? Delicioso! Mas são mesmo assim. Tive dois durante dezoito e quinze anos. Morreram ambos durante o ano passado e senti tanto a morte deles que jurei que não voltaria a ter mais nenhum. Então não é que, por essa altura, apareceu aqui no Casal uma cadela abandonada que se punha a dormir mesmo à minha porta? Resisti durante uns tempos, mas depois decidi acareá-la. Hoje até me faz doer a alma a gratidão que ela mostra. Acho que não mereço tanto!
Por acaso, desde há algum tempo, apareceu aqui no Casal outro cão que também parece abandonado. É pequeno, castanho mel com algumas manchas pretas, e tem um ar muito doce. As tentações que tenho tido…Será o mesmo da subida à Portela? Se não é, que o Rabomole tenha achado o (um) dono. De certeza que merece!

M. L. Ferreira

José Teodoro Prata disse...

Texto magnífico, mesmo ao meu gosto. Sensações e emoções, à flor da pele!
E coisas nossas, como dirá a Luzita Candeias!

Anônimo disse...

O Rabomole do meu primo (salvo seja, que nunca lho apalpei) é como diz o Zé Teodoro: um texto magnífico, numa linguagem rica e com muito, muito coração (ou sensações e emoções. Um encanto.
Apesar da fase salamurda que atravesso, é um prazer enorme vir aqui à Praça e saber que a amizade continua a ligar-nos e que há amigos a reaparecer.
Bem vindo ó Ernesto.
F. Barroso

Anônimo disse...

Amanhã vou tentar mandar uma ou duas fotografias que tirei ao cão para a Libânia ver, porque ele era, realmente, de cor mel e preto.
Um abraço, ó malta.
JB.

Ernesto Hipólito disse...

O ser humano tem uma enorme capacidade de regeneração.A fase salamurda do Francisco Barroso depressa será ultrapassada e vai ficar a saudade.

Sempre achei e cheguei a afirmar isso neste blog que o Zé Barroso era e é um grande escritor.Por isso e agora fora de brincadeiras quero aqui dar-lhe os meus parabéns pela maneira como descreveu este passeio e o rabomole. Faz-me lembrar os contos que eu tanto gosto de ler.

Hoje não me meto com a Libânia. É um " coraçãomole "

E.H

Anônimo disse...

Ó Ernesto, essa do 'grande escritor' deixou-me atordoado, com uma pinta do caraças! Ainda por cima 'fora de brincadeiras'! Vou registar e contar aos meus netos(quando os tiver)!
Bom, mas, vá lá, eu perdoo-te, porque hoje é 13 de Maio!
Agora falta a Libânia ver a fotografia e dizer qualquer coisa sobre o cão, Rabomole.
Et voi là...
Parece que estamos todos ali na praça a conversar! Mas queremos mais pessoal!
Olha o que o Zé Teodoro havia de inventar! Ó Zé, 'arranjaste-la' bonita! Deste-nos corda, agora atura-nos!
Abraços.

ZB.