Discurso
de Saudade
Em
todas as casas te procuro, Casa onde habitou a infância
hora
luminosa e matinal em que o galo canta e o sino toca
punhados
de granizo tamborilando no telhado
e
a silente carícia da neve pousando nos peitoris.
Em
todas as casas te procuro, Casa:
vento
de inverno uivando pelas frestas
madrugadas
de susto em que os foguetes
te
sacudiam, branca e recatada abadessa
à
esquina da rua do convento,
fazendo
abanar os caixilhos da vidraças das janelas
onde
mais tarde se desfraldavam colchas de damasco
para
ver passar os anjos – eu, entre eles.
Em
todas as praças te procuro, Praça das cirandas
Praça
do pelourinho com a barca, o pássaro, o escudo real
primeiras
interrogações ao mistério do capitel.
Em
todos os rios te navego, Ribeira a fluir prateada
sob
o arco do tempo
para
esfolhar-se na roda do moinho
dentro
da primavera de malmequeres
quando
me sentava à tua beira
mordendo
a cor vermelha da cerejas.
Em
todas as paisagens te procuro, aquarela de centeio
e
oliveiras, pinhais agrestes, ramos de giestas,
urzes,
amoras, muros velhos de musgo e heras antigas.
Em
cada pôr-de-sol ardente vos espero
cegonhas
de vôo lento e branco
hóspedes
de verão na torre da igreja.
Em
cada chafariz te procuro, Fonte
explosão
de vida, líquidas estrelas de cristal
recolhidas
em meu cantarinho de zinco.
Longe
ficou o mundo em que a única ameaça
era
os ciganos, seu rufar de bombos e de pratos
acompanhando
a evolução dos acrobatas no trapézio
suspense
anunciando os capítulos da vida
em
que seria eu a trapezista.
São
Vicente, único país riscado a sangue
no
mapa das minhas lembranças,
tantas
ruas atravessei no mundo
porém
as únicas que me atravessam são as tuas
aldeia
encravada nas serras do meu coração:
ruas
de São Vicente
onde
a minha infância passou correndo
com
as tranças se desmanchando ao vento
andorinhas
emigrando sem retorno.
Maria
de Lurdes Hortas, Recife, 7 de Julho de 1984
Maria Libânia Ferreira
4 comentários:
Muitos já deviam conhecer este poema, publicado no jornal "VICENTINO" em 1984. Eu só agora o encontrei e, como penso que é uma das homenagens mais bonitas que se fizeram à nossa terra, com a qual muitos de nós nos identificamos, porque não dá-lo a conhecer a mais pessoas?
M. L. Ferreira
Lindo de se ler de se sentir em cada palavra, em cada frase, a beleza da nossa aldeia, da natureza, dos sabores, das vivências, da infância, tudo o que nos marcou e moldou a nossa personalidade enquanto seres adultos.
Obrigada por me fazer sentir e deleitar….
Albertina Teodoro
À MEMÓRIA DE JOSÉ PIRES LOURENÇO
(16-06- 1889 – 20-03- 1970)
Eu tenho no meu arquivo
Guardadas numa carteira,
Recordações de um amigo
De São Vicente da Beira.
Não era dali natural,
Era mais d’opé d’arraia
A sua terra natal,
Era da Póvoa D’atalaia.
Pelo destino a deixou,
Deus assim lho permitiu
Mas toda a vida se lembrou,
De quando dali saiu.
Deixou lá o seu sentido
Foi seu Pai e sua Mãe,
Deixou lá o melhor amigo
Que no mundo lhe queria bem.
Tudo a morte lhe roubou
Tudo isso lá perdeu,
Mas enquanto no mundo andou
Nunca mais deles se esqueceu.
A terra que ele mais amava,
Era a vila de São Vicente
Mas nunca o ocultava,
Mostrava-o a toda a gente.
Levou bem longe o seu nome
E a sua nomeada,
E o nome do Santo Cristo
E da Sr.ª da Orada.
E o nome do seu concelho,
Por ter sido cancelado
Pensou sempre ainda vê-lo
Depois de ser restaurado.
Mas a morte traiçoeira
Apareceu mas esperada,
E de São Vicente da Beira
Já não torna a ver mais nada.
Deus queira que a sua sorte
Lhe trouxesse! Eu penso assim
Dando-lhe a si a mesma sorte
Que eu desejo para mim.
António G. Matias
Publicado em Março/Abril-1970 no Jornal "O Pelourinho"
Lembro-me muito bem deste poema da nossa Maria de Lurdes Hortas! Na altura, fiz, com o José Miguel Teodoro, Luís Matias, Francisco Barroso Rodrigues e Edite (?)(que faleceu de acidente) (e outros?), parte da redação do Vicentino. Pela data, acho que o escreveu propositadamente (?) para essa publicação. Julgo que tenho em casa todos os 4 (?) números que sairam a público.
Em poesia, é talvez a coisa mais bem escrita sobre S. Vicente da Beira, que eu conheça, que fala de saudade. Essa coisa portuguesa que se foi espalhando pelo planeta. Estamos aqui em presença de uma poetisa consagrada no Brasil. E lá continua a compor belas linhas, em verso. De vez em quando, é possível ler na sua página do facebook alguns desses poemas actuais ou já antes publicados.
Curioso e cheio de harmonia, é também o poema deste António G. Matias (comentário de Jaime da Gama, (não sei quem é o António G. Matias), que decidiu homenagear o poeta popular José Lourenço (que, sendo a Atalaia do Campo, dizia ser "vicentino pelo coração").
Abraços.
JB.
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