«Por todo o Doiro a trovoada passara como um furacão. A bradar por
montes e vales, fulminou, primeiro, e alagou e arrasou depois. À voz dos
trovões, desciam dos altos torrentes tumultuosas, que escavavam socalcos,
aluíam paredes, arrancavam cepas e deixavam atrás, escancaradas, as entranhas
da terra. O vento colaborava activamente na destruição, e as rajadas de
saraiva, que puseram fim ao arraial, completaram a obra sinistra. Os cachos
eram esbagoados ou feitos em papa, as folhas rasgadas ou ripadas dos ramos, as
árvores abanadas até à raiz. Nenhuma vida enfrentava inviolada a tormenta, a
que nem os próprios trabalhadores podiam fugir, atingidos também nas cardenas,
pelas telhas quebradas que caíam e pelo granizo que, sem anteparo, descia
directo do céu sobre eles. Um clamor de desespero impotente misturava-se ao
rugido feroz dos elementos.
Durou meia hora apenas este desfecho trágico da ameaça que pesava há
dias sobre a região. Foi como o êxtase satânico de um deus irado, cuja
paciência chegasse ao fim. E, quando a onda passou e o mundo parecia novamente
ter encontrado o pé, o que sobreviveu lembrava o salvado exangue dum naufrágio
cósmico.»
Este texto, retirado do
livro “VINDIMA” de Miguel Torga, fala
duma trovoada na região do Douro, no tempo das vindimas; com ligeiras
diferenças, podia também referir-se ao que aconteceu no último domingo de maio,
em grande parte da Beira Baixa.
Já andava há dias a
armar-se por cima da Gardunha e do Açor, mas nesse domingo o dia tinha
amanhecido claro e ameno. De repente, logo ao princípio da tarde, o céu
escureceu, como se fosse quase noite, e desabou com chuva, vento, trovões e
granizo, arrastando o que podia. Foram quase duas horas de pavor, que levaram
por água abaixo o trabalho e a esperança de muita gente. Depois o sol voltou a
aparecer, brilhante, como se não fosse nada com ele. Em São Vicente houve
alguns estragos, principalmente nas hortas, mas foi pior noutras localidades
aqui à roda, onde o pedrisco destruiu pomares de fruta pronta a apanhar, e
ameaçou outros de colheita mais tardia.
Dizem que o tempo já não é
o que era, mas, quanto a trovoadas, não terá havido grandes mudanças. São
famosas as de maio, e outras que se armavam várias vezes ao longo do ano, medonhas,
que chegavam quando menos se esperava, e não havia nada a fazer para fugir
delas. E não afetavam apenas as culturas ou as casas: homem ou bicho apanhado a
jeito por uma faísca, raramente escapava sem alguma moléstia para o resto da
vida, quando não era morte certa.
Foi o caso de Domingos Pires,
de 25 anos de idade, já casado, e de José Fernandes Rato, de 23, ainda solteiro,
ambos naturais do Tripeiro. Eram lavradores, e no dia quatro de julho do ano de
1860 andavam juntos no Vale da Miguelha a acarear o pão, depois da ceifa. Foram
surpreendidos por uma trovoada e, para se proteger, meteram-se debaixo do carro
de bois. Tiveram pouca sorte: diz o registo de óbito que foram encontrados
mortos, debaixo do carro carregado de centeio, atingidos por um raio.
Foi também o caso de José
Caetano, de 17 anos de idade, natural do Casal da Serra. No dia 24 de maio de
1909, no sítio da Malhada da Cova, no alto da Gardunha, foi apanhado por uma
grande tempestade e, embora andasse atrás das cabras desde os dez, não sabia ainda
que o pior sítio para se acoitar era debaixo dum castanheiro. Foi encontrado
morto, fulminado por um raio.
Melhor sorte teve o Ti
António Inverno, também pastor de muitos patrões ao longo da vida, mas, por
aquela altura, por conta do senhor António Neto. Naquele dia de abril (final
dos anos sessenta do século passado) resolveu levar o rebanho para o cimo da
Serra, farto de mato tenro para os cabritos; de repente armou-se uma trovoada
tão grande que não teve tempo de acautelar o gado e perdeu muitas cabeças,
atingidas por um raio. Por milagre, ele não sofreu nada, para além de um susto
de morrer. Por esses dias, mesmo nas casas mais pobres da Vila, não faltou
carne à mesa de ninguém, porque andaram de porta em porta a dá-la a toda a
gente que a quis.
Uma das
memórias mais fortes que guardo da infância é o pavor da minha mãe em dias de
trovoada. Era uma mulher afoita, a quem poucas coisas metiam medo, mas que mal
começava a trovejar tapava o espelho dependurado por cima do lavatório, o único
que havia em casa, cobria a máquina de costura e tudo o que pudesse atrair os
raios, acendia uma vela e punha a arder um pouco de loureiro, oliveira e
alecrim benzidos na missa do Dia de Ramos e que se mantinha o ano inteiro
pendurado atrás da porta para o que desse e viesse; depois arrebanhava os
filhos todos, como fazem as galinhas com os pitos em perigo, e rezava connosco:
Santa
Bárbara Bendita
Que no céu está escrita
Com raminhos de água benta
Livrai-nos desta tormenta
Espalhe-a lá para bem longe
Onde não haja eira nem beira
Nem raminho de oliveira
Nem raminho de figueira
Nem
mulheres com meninos
Nem
ovelhas com borreguinhos
Nem
vacas com bezerrinhos
Nem
pedrinhas de sal nem nada
A que faça mal.
Amém.
Mal
a trovoada se espalhava, abalava também o medo, e saiamos todos de casa a
correr para, rua abaixo rua acima, chapinharmos na água que corria pelas
valetas, vinda do Cimo de Vila.
M .
L. Ferreira
Um comentário:
Lindo! A oração, os medos da trovoada, as histórias reais e a descrição de Torga, tudo!
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