domingo, 20 de dezembro de 2020

Fornos de cal

 Em muitas localidades pelo país fora, mas principalmente nas terras da Beira, eram dias de muito trabalho para as mulheres, os que antecediam a Semana Santa. As casas eram reviradas de alto a baixo, e todos os recantos, e todos os objetos, principalmente os de uso na cozinha, eram lavados a preceito, numa prática herdada, provavelmente, dos rituais de purificação dos nossos antepassados judeus.

Tachos, panelas e cafeteiras, enegrecidos pelos dias passados em cima das trempes ou diretamente sobre as brasas, eram esfregados com cinza e palha-de-aço, na rua ou nos quintais, muitas vezes na ribeira onde a água corrente facilitava a limpeza. Ficavam a reluzir como espelhos. Depois eram dependurados na cantareira, toda enfeitada com tiras de jornal, recortadas como se fossem rendas.

Paredes e tetos eram passados minuciosamente com o esfrunhador, de modo a remover teias de aranha e toda a fuligem que se tinha acumulando ao longo do inverno, e o chão era varrido e esfregado ainda com mais esmero que em todas as outras alturas do ano.

Mas os mais trabalhosos eram os dias da caiação. Começava-se cedo, às vezes de véspera, com a preparação da cal. Para as crianças, assistir a esta tarefa, era das primeiras e mais expetaculares experiências de magia a que assistíamos! Magia que fascinava, pela reação da mistura da cal com a água, mas que também alimentava nas nossas cabeças histórias de arrepiar. As paredes, enegrecidas pelo fumo da lareira, quase sempre em cozinhas sem chaminé, precisavam de várias demãos, mas não se desistia enquanto não estivessem brancas que nem neve. Às vezes parece que ainda sinto o cheiro a caiado de fresco que, dentro de casa, substituía o cheiro a fumo entranhado até á medula de tudo, ou que fugia para a rua e se espalhava no ar, purificador.

Visitei há tempos os fornos de cal de Escusa (entre Castelo de Vide e Marvão) e compreendi um pouco mais do processo de transformação por que passam as pedras de calcário trazidas das pedreiras, até ao produto pronto a ser utilizado nas nossas casas ou na indústria da construção. Não é muito fácil chegar lá porque não existe nenhuma indicação a sinalizar o local. Mas quem tem boca vai a Roma…


Este painel informativo, à entrada, diz o seguinte:

«Este conjunto monumental de nove fornos de cal e respetivas caleiras (pedreiras de onde se extraia a rocha calcária) é raro em Portugal e constitui um testemunho da importância que teve o fabrico de cal no concelho de Marvão. O seu número e concentração junto à cidade romana de Ammaia, assim como a identificação de materiais de construção do período romano junto aos fornos, leva os investigadores a concluir que estas estruturas poderão remontar à época do império romano.

Os fornos de cal são construções de alvenaria de pedra e tijolo, de planta circular, com uma pequena porta virada a sul, reforçada por duas paredes triangulares. Foram construídas em profundidade, envoltas por uma colina artificial denominada capelo, apresentando no interior a forma de um poço cilíndrico, rematado por uma cúpula imperfeita com abertura central. Na base, uma caldeira ao nível da porta, serve de alicerce às paredes superiores.

A alimentação do forno, o “empedre”, fazia-se primeiro através da abertura que dá acesso á caldeira e começava pela montagem das pedras “armadeiras”, de maiores dimensões, que se destinavam a estruturar a abóbada que servia de câmara de combustão. Sobre esta câmara o caleiro ia depositando as pedras “carregadouras”de menor dimensão e quando estas excediam a altura do portal, passavam a ser carregadas através da abertura superior do forno. 

Em muitos casos estas camadas de pedra eram alternadas com camadas de lenha. No final o topo era fechado com barro, deixando-se alguns orifícios para permitir controlar a combustão. O forno era aceso com a introdução de lenha na caldeira, que se ia abastecendo ao logo do período de combustão. A cozedura demorava geralmente dois dias e duas noites.

O processo envolvido nesta transformação denomina-se de calcinação e consiste numa reação química, com consumo de energia, na qual o principal constituinte das rochas calcárias extraídas das caleiras, o carbonato de cálcio (CaCO3) é aquecido entre os 850º C a 1000ºC. O calcário transforma-se em cal viva por oxidação do cálcio, libertando dióxido de carbono (CO2).

Para que este material se torne útil na construção, é preciso hidratá-lo, ou seja, juntar-lhe água, obtendo-se a cal hidratada, Ca(OH)2. Esta reação origina uma grande libertação de energia (aquecimento), na ordem dos 580ºC…… Tradicionalmente a cal hidratada é utilizada nas caiações e para execução de argamassas.

O conjunto de fornos de cal e caleiras de Escusa está classificado como monumento nacional»

Logo a seguir começam a avistar-se os fornos. São nove, ao todo, muito próximos uns dos outros. Alguns estão ainda em bom estado e conseguimos perceber o seu funcionamento. Outros estão muito maltratados.  

 




O espaço está rodeado de castanheiros centenários, autênticos monumentos, mas, embora esteja classificado como monumento nacional, o estado de abandono é chocante, com ervas e lixo a engolir o que resta de algumas dos fornos. Mesmo assim vale a pena ir até lá. Há muita coisa para ver (ou rever) ali por perto. E quase tudo a céu aberto, como convém por estes tempos.

M. L. Ferreira

2 comentários:

Anônimo disse...

Obrigado por esta lição de história antiga. Qanto à importância dada ao património...Portugal está cheio de exemplos de património ao abandono, até mesmo na capital, quanto mais por esse alentejo profundo, como dizia o outro.
Boas Festas a todos.
FB

José Barroso disse...

Lembro-me muito bem do tempo da Páscoa, da limpeza dos trastes, da caiação das paredes enegrecidas pelo fumo, do recorte de jornais para enfeitar a cantareira... A cola, normalmente, era de farinha amassada porque não havia cola suficiente; e a que havia (para colar as estrelas e os papagaios de papel) era feita de seiva de cerejeira!). Como a Páscoa era à entrada da primavera a que se seguia o verão, esta limpeza geral valia para todo o ano; de resto, apenas se faziam as limpezas quotidianas.
Sei da existência da cidade romana de Amaia, mas nunca lá fui. O que vi foi pela Internet. Acho que até estará muito pouco estudada.
Como gosto de ver preservados os monumentos antigos lamento o abandono dos fornos de cal. É como os lagares em S. Vicente da Beira. São processos produtivos cujo saber se perde para as gerações futuras. Assim deixamos perder pedaços de História. E o pior é que muitas destas perdas dão-se na nossa geração que já tem bastante consciência disso do património, mas, apesar disso, não atua.
De lamentar.
Abraços, hã!
JB