A desertificação e abandono de determinados lugares não são fenómenos novos nem exclusivos de regiões específicas; sempre existiram ao longo da História da humanidade, pelas mais diversas razões: alterações climáticas, cataclismos, guerras, epidemias, busca de solos mais produtivos, necessidade de proteção, etc. A testemunhá-lo estão os vestígios de antigos aglomerados populacionais que têm sido encontrados, alguns ainda a céu aberto, outros preservados debaixo do solo.
Já mais
recentemente, com as mudanças introduzidas pela Revolução Industrial ao longo
do século XIX, nos países que mais rapidamente desenvolveram novas tecnologias
e inovaram os métodos de produção, as alterações na organização social e
económica foram enormes: a deslocação de uma parte significativa da população
das zonas rurais para a periferia das cidades, onde se situavam as fábricas,
provocou grandes desequilíbrios demográficos.
Em
Portugal, o abandono das zonas rurais fez-se sentir mais intensamente a partir
da segunda metade do século XX, com a saída de grande parte da população das
aldeias do interior para as cidades do litoral ou para África. Seguiu-se depois
o movimento de emigração para outros países da Europa, sobretudo para França e
Alemanha. Nesta altura a motivação principal para o abandono do campo era,
quase sempre, a dureza e sazonalidade do trabalho, os baixos salários, e a
consequente miséria em que uma parte significativa da população vivia. As
pessoas partiam à procura de melhores e mais justas condições de vida.
Para
muitos não foi fácil, principalmente em termos da integração social: vivendo
muitas vezes na periferia das grandes cidades, frequentemente em bairros e
casas sem grandes condições de habitabilidade, não se sentiam parte das comunidades
locais; por outro lado, a falta do suporte familiar e da vivência quotidiana
das práticas comunitárias próprias da vida das aldeias, fazia-os sentirem-se
desenraizados. Seria por isso que, por exemplo em Lisboa e noutras cidades dos
países de acolhimento da emigração portuguesa, foram nascendo associações onde
os naturais das várias pequenas cidades, vilas ou aldeias do interior se
encontravam regularmente para matar saudades e partilhar aspetos da cultura das
suas terras (a gastronomia, a música, as festas, os jogos, etc.).
Mais
tarde, já depois do 25 de Abril de 1974, o acesso mais fácil à educação escolar
para todas as crianças e jovens, e a abertura de fronteiras e de mentalidades,
criou em muitos jovens das zonas rurais a necessidades de ganhar asas e
procurar um mundo em que os seus sonhos e expetativas se pudessem cumprir.
São
Vicente da Beira, à semelhança da maior parte das aldeias do interior do país,
até meados do século XX apresentava ainda uma estrutura económica e social
muito atrasada. Um número reduzido de famílias ricas possuía grande parte das
terras à volta da povoação. Essas terras, porque alguns dos proprietários não
viviam em São Vicente, eram administradas por feitores, pessoas de algum
prestígio social a quem competia a gestão do trabalho ao longo do ano agrícola.
Eram eles que contratavam os trabalhadores de acordo com as necessidades, e,
num tempo em que a mão-de-obra era muita e o trabalho nem sempre abundava, as
jornas eram baixas e incertas. A situação piorava se, por motivos quase
arbitrários, um trabalhador caia em desgraça; era certo que muito dificilmente
conseguiria fazer mais um dia naquela propriedade, pondo em risco o sustento
dos filhos.
Algumas
famílias tinham pequenas propriedades ou alugavam terras aos mais ricos, que
não queriam tratá-las. Mas as rendas, pagas geralmente em dinheiro e em
géneros, eram quase sempre tão altas que, em anos de má produção, a colheita
mal dava para pagar aos donos da terra.
Para
além do trabalho na agricultura, ou como pastor ou ganhão, alguns homens
trabalhavam também como resineiros e serradores. No inverno, por altura da
apanha da azeitona, muitos ocupavam-se dos vários lagares que havia ao longo de
ribeira. Para além destas profissões, havia na freguesia alguns carpinteiros, sapateiros,
pedreiros, moleiros, ferradores, alfaiates e comerciantes.
As
mulheres, para além de cuidarem da casa e dos filhos, também trabalhavam no
campo, ao lado dos homens, sobretudo na apanha da azeitona, na sacha do milho e
do feijão e no cultivo das hortas e dos linhares. Muitas tinham em casa teares
artesanais e teciam peças de linho ou mantas de orelos para uso da própria
família e para vender.
Até
aos anos 50 do século XX muitas crianças não iam à escola e começavam a
trabalhar muito cedo. Os rapazes, ao lado do pai, ajudavam nos trabalhos do
campo ou guardavam os pequenos rebanhos familiares. À medida que iam crescendo
iam-se complexificando também as tarefas que lhe eram atribuídas, quer a
trabalhar para a família ou à jorna, para fora. As raparigas eram criadas de
servir em casa de gente rica. Começavam, meninas ainda, a fazer trabalhos mais
simples ou a cuidar dos filhos dos patrões, muitas vezes pouco mais novos que
elas; muitas só deixavam esse trabalho nas vésperas do casamento.
Mas,
como acontecia por todo o País, a perceção do mundo rural também se altera em
São Vicente: as pessoas começam a sonhar com alternativas de vida melhores para
si e para os seus filhos, e muitos partem, para Lisboa, mas sobretudo para o
estrangeiro. De início partiam os homens, sozinhos, mas a pouco e pouco foram
famílias inteiras que por lá criaram raízes e novos modos de vida; algumas já
só regressam à terra para visitas breves e cada vez mais adiadas.
E a
sangria não parou: uns anos depois muitos dos mais jovens também tiveram que
procurar outras paragens na necessidade de encontrarem empregos compatíveis com
a formação escolar que a democracia e as melhores condições económicas das
famílias lhes permitiram.
E as
ruas foram-se esvaziando; e as gentes ficam cada vez mais velhas. Em certos
anos, morrem mais pessoas do que as crianças que nascem numa década. Estes
dados mostram-nos uma realidade preocupante:
POPULAÇÃO DA FREGUESIA DE SÃO VICENTE DA
BEIRA
(1900/ 2011)*
1900 |
1911 |
1920 |
1930 |
1940 |
1950 |
1960 |
1970 |
1981 |
1991 |
2001 |
2011 |
2 803 |
3 282 |
3 013 |
3 239 |
4 000 |
4 185 |
3 881 |
2 501 |
2 265 |
1 871 |
1571 |
1 259 |
· Documento disponível no sítio da Junta de Freguesia SVB. De acordo com o último censo, em 2021 éramos apenas 958.
Se a tendência não se inverter, o que dificilmente acontecerá, corremos o risco de, dentro de poucos anos, algumas aldeias da freguesia, e mesmo São Vicente, ficarem desertas de gente, como já acontece em muitas outras por todo o País rural.
M. L.
Ferreira
2 comentários:
A Libânia publicou este artigo a propósito dos comentários às fotos que a Margarida Pereira nos enviou sobre o Magusto.
Por acaso eu até achei que o magusto estava compostinho, tendo em conta a realidade demográfica que temos (ver quadro do final).
Por outro lado, como referi no meu comentário, acho que temos de fazer um esforço para reanimar a nossa vida comunitária, tão abalada pela pandemia e pela passagem para as juntas da organização das festas de cada freguesia.
O financiamento igualitário das freguesias pela Câmara, para evitar favorecimentos, foi uma exigência aparentemente justa do PSD, no passado, mas agora percebe-se que as juntas não têm o mesmo "saber fazer" da Câmara, como é natural.
Sobre o artigo, apenas, um pequeno reparo, se verifica recorrentemente quando se escreve ou fala sobre o tema. O termo, desertificação, deve apenas e só referir-se a aspetos ou fenómenos climatológicos, como o fenômeno que a corresponde o empobrecimento e diminuição da humidade nos solos. Como, segundo a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação, a desertificação é "a degradação da terra nas regiões áridas, semiáridas e sub-húmidas secas, resultante de vários fatores, entre eles as alterações climáticas e as atividades humanas".
Muito diferente de do termo que deveria aqui ser utilizado: DESPOVOAMENTO humano do mundo rural.
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