(…) No ar pairava o cheiro a castanhas assadas, as trempes suportavam o assador de barro que as ia assando. De vez em quando ouvia-se um estalido, era uma castanha que rebentava, não tinha levado o corte e inchava. Às vezes fazia-se propositadamente e de vez em quando uma explodia nas mãos ou rebentava na boca, todos se riam.
-
É com grande satisfação, alegria e prazer que vos recebo na minha humilde casa;
espero que se sintam confortáveis durante o nosso serão.
- Meus
filhos, fiz questão de comparecer, apesar dos muitos afazeres que tenho -
Governar o Universo não é fácil-:deixei o Pedro tomando conta…
Sendo
assim, e antes de entrarmos no assunto que os trouxe à minha casa, é com grande
prazer que que vos ofereço estas castanhas acabadinhas de assar acompanhadas
com jeropiga oferecida pelo nosso amigo Pensamento, espero que esta reunião
seja a primeira de muitas…
-
São boas; a jeropiga, uma pomada… Costumamos dizer, “mesa levantada, companhia
desfeita”. Connosco não vai acontecer, demos início ao serão, passo a palavra
ao nosso Criador.
-
Meus filhos, não me vou alongar, é um enorme prazer estar aqui nesta noite fria
com tão ilustrada companhia, vejo o primeiro Homem e a primeira Mulher. Apesar
de me terem desobedecido nunca os abandonei. A Cobra aqui presente manhosa,
sub-repticiamente tentou-os e eles não resistiram, a caixa de Pandora abriu-se…
vejo a Virtude, a Paciência, a Verdade, a Prudência, lado a lado com a Mentira,
o Refilão, o Orgulhoso, o Vaidoso… e todos vós: quero recordar-vos aqui e
agora. Sois meus filhos, uns seguiram o caminho da justiça, da retidão, da paz
e do amor, há os que enveredaram por outros rumos, outros caminhos. A esses
estou sempre disposto a perdoar e a recebe-los quando quiserem regressar ao meu
convívio
Todos
vós, certamente tendes algo a dizer, por isso não me quero alongar…
-
Pouco ou nada temos a acrescentar àquilo que disse nosso Pai, deixo somente um
repto a todos os presentes; é o seguinte: Antes da Tentadora “que se encontra
enroscada naquele caibro” tínhamos uma qualidade de vida excepcional, não
necessitávamos de nos preocupar com coisíssima nenhuma, nada nos faltava, a
felicidade era total. Doença, frio, calor, medos…eram desconhecidos, não
existia passado nem futuro, temores, inquietações, receios ou sobressaltos, não
era necessário medir o tempo, nossa alma exultava de contentamento, de júbilo,
tudo fluía com normalidade, nunca nos passou pela cabeça aproximarmo-nos da
árvore, para quê!... Naquele fatídico dia tudo se desmoronou, aquela que está
além manhosamente deu-nos a volta.
-
Abri-vos os olhos: verdade! A ciência, a aventura, as descobertas diárias e
tudo o mais que conheceis. À vossa frente surgiram uma panóplia de coisas que
até aquele momento eram desconhecidas, a vossa inteligência passou a ter
horizontes mais vastos., com essas descobertas e novas realidades passaram a
poder optar por aquilo que vos é mais favorável.
- Falas
bem, mas antes de tu nos tentares não precisávamos de nos preocupar com nada; o
mundo encontrava-se à nossa disposição, entendíamos os animais, eram nossos
amigos; a partir daquele momento passaram a ser nossos inimigos, para sobrevivermos
num mundo hostil, passámos a trabalhar, a arranjar artimanhas…
A
vida a partir desse momento começou a ter outro sentido para vós, é ou não é
verdade! Sabe bem ver o vosso trabalho recompensado. Através do esforço tirais
da terra a vossa alimentação. Quando os bens vos caem de mão beijada…
Era
uma realidade desconhecida para nós, portanto não nos fazia falta.
Faz-nos
alguma falta o que será real daqui a duzentos anos! Certamente não, não sabemos
nada sobre essas realidades futuras. Se não tivesses aparecido para nos
tentares, o mundo terreno seria bem diferente, mas pronto.
-
Estou cá com uma moleza!
-
És assim, mole. Deixem a Moleza em paz, não tem culpa, nada a fazer, é a sua
natureza. Reparem na Apatia, estão bem uma para a outra completamente nas
nuvens: não dizes nada! O que é que quereis que eu diga? Escuto-vos… Pareces
uma pasmada.
- Não
digas mal, é uma pobre de Cristo: não se compara à Vontade, juntamente com a Força
de vontade não lhes escapa nada, juntas vencem os perigos que encontram pelo
caminho. Não é bem assim, às vezes a vontade que tenho para realizar algo não é
nenhuma, sou obrigada. Força, quantas vezes te usam para destruir … Quando me
junto ao Fogo levo tudo à frente.
-
Tenho estado pacientemente a escutar-vos, concordo com quase tudo o que ouvi,
mas …
Adão
e Eva, não tiveram culpa daquilo que aconteceu, se nosso Pai quisesse teria impedido,
não o fez. Julgo que o mundo seria uma pasmaceira, não havia incentivos para
nada, as coisas estavam à mão de semear, com a Tentadora todos nós passámos a
ter que lutar pela vida. A Moleza é assim porque é; a Apatia igualmente. Tudo o
que existe tem a sua importância, é uma questão de escolha. Vocês não imaginam
a paciência que tenho tido para conseguir compreender a atitude que teve um dos
vossos filhos, o Caim. Aquela inveja toda, tanto ódio de estimação acumulado
que descambou numa morte terrível, desde o princípio do mundo, o Homem nunca se
entendeu, está no sangue.
Para
terminar, queria deixar pairando um ponto de interrogação: ainda não há muito
tempo um investigador chegou à conclusão que o Homem descende do macaco. Que tendes
a dizer sobre isso?
-
Sabemos que a vida apareceu primeiramente nas águas. Fomos moldados com terra e
água, então…
A Mentira
pediu para falar: cá para mim tudo isto é um grande mistério, todas as coisas
viventes ou não tiveram que ter um inventor, o autor é a Luz brilhante que nos
tem acompanhado nesta tertúlia, só Ele é o Senhor, o criador de todas as
coisas.
A
minha alma está parva, o Mentiroso a falar desta maneira. Não dizeis que se uma
pessoa quiser pode-se modificar! Deixem-se de tretas; Amigo, ainda há para aí
umas castanhitas! A jeropiga é cá uma pomada…
Já
passei pelas brasas, não tenho paciência para vos aturar, só me sinto bem
quando estou a refilar, discordo de tudo o que ouvi, é a minha natureza. Ó
Refilão, porque não experimentas imitar a Mentira…
- É
uma fraca; onde é que já se viu a Mentira dizer verdades? Vão ver, à primeira
cavadela, minhoca.
A
Verdade dói; é como um punhal cravado no corpo, mas, gosto das coisas limpas,
com lisura, sem qualquer alinhavo ou remendo, sou a Verdade. Quem diz a verdade,
não merece castigo. Ser verdadeiro é ser transparente, sem rabos-de-palha, a
verdade acima de tudo. Estais para aí com essas lucubrações todas, mas se eu
quiser acabo com muitos de vós num instante, é só apagar a Memória e já está.
- Ó
Alzheimer, deixa a Memória em paz, mete-te na tua vida, trata dos teus
assuntos, já viste o mal que podes fazer à humanidade se quiseres? Deixa as
pessoas sossegadas até ao fim dos seus dias, os estragos que podes causar são
irreversíveis, não têm retorno. Nunca entraste certamente num lar da terceira
idade onde vivem os nossos maiores, a maior parte daquelas pessoas estão à
espera que a Morte chegue, não sabem onde se encontram, não conseguem cuidar de
si, onde as sentam, ficam: uma tristeza. Entra numa dessas salas, depois
conta-me o que viste.
-
Sou assim
-
Podes-te modificar.
-
Isso não, és tão ou mais refilão que o Refilão, és um rufia.
Sei
que um dia o Homem me vencerá, mas enquanto esse dia não chegar continuarei a
fazer das minhas; a Memória que se cuide.
-
Já viram como ele é!
Não
há nada a fazer, temos que ter paciência e esperar que o Criador ilumine o
Homem para que ele possa descobrir a cura e o afastar de vez….
Agradeço
a presença de todos, principalmente a nosso Pai.
O
ambiente da tua casa, Amigo, inspira-nos. Venham ver o espectáculo, a neve cai,
a paisagem está imaculada.
-
Antes de partir, peço que continueis a confiar em Mim, a minha misericórdia é
infinita. Amo-vos.
Olhem;
partiu
Assim
Seja.
J.M.S.