Na escola:
Quando
acabei o 2.º ano da Telescola, não foi fácil conseguir autorização dos meus pais
para continuar a estudar. Valeu-me uma enorme teimosia e as ajudas do Padre
Branco e da Dona Teresinha.
Naquele
tempo, em aldeias pobres como a nossa, muitas crianças não iam além da quarta
classe: começavam cedo a trabalhar no campo, nas obras, nas fábricas ou a
servir nas casas ricas da cidade. Das que continuavam a estudar, poucas
aspiravam chegar à faculdade, por isso iam quase sempre para a Escola Técnica, que
dava maior garantia de trabalho imediato (muitos rapazes iam par o seminário).
Eu, sem nenhuma razão consciente, matriculei-me no Liceu. Era o ano letivo de
1969/1970.
Por
essa altura, percebi depois, o Liceu de Castelo Branco era uma escola bastante elitista:
via-se pela arquitetura do edifício; pela figura de um reitor todo-poderoso que
raramente se deixava ver, mas temíamos; pelos professores que abusavam da
autoridade e do estatuto, e eram distantes no relacionamento com os alunos; pelo
rigor na separação entre sexos; sobretudo pelo critério discriminatório
utilizado na constituição das turmas.
Nas
turmas A e B andavam os filhos das famílias “bem” da cidade: advogados,
médicos, entidades administrativas do Concelho, militares, grandes
proprietários ou homens de negócios. Raramente se misturavam com os outros
alunos, nem nos corredores, nem nos recreios, muito menos na rua. Só faltava
terem uma porta diferente para entrar e sair. O modelo seria semelhante em todo
o país.
Eu
pertenci sempre à turma C ou D. Na altura, nem tive consciência de que esse
facto poderia estar a determinar o meu futuro. Só mais tarde percebi como aquela
escola era o instrumento de um sistema educativo injusto, competitivo e
elitista, que deixava para trás várias gerações de alunos, não por serem menos
competentes que outros, mas apenas com base na origem social e geográfica: os
professores, os livros e vários outros aspetos do contexto educativo poderiam
ser iguais para todos, mas as expetativas, crenças e preconceitos que se
criavam sobre o desempenho de cada um dos grupos influenciavam os resultados. Para
além deste efeito psicológico altamente penalizador dos alunos das classes
sociais mais baixas, sabia-se que os professores eram pressionados a não dar
notas mais altas aos alunos dessas turmas, que as que davam aos das turmas A e
B, mesmo que as merecessem.
Isto
acontecia ainda no início da década de setenta, já depois das reformas do Ministro
Veiga Simão, que prometiam introduzir alguma democratização no ensino. Só após o
25 de Abril de 1974, com o fim dos Liceus e Escolas Técnicas, a criação das
Escolas Secundárias e o alargamento da escolaridade obrigatória, o Sistema
Educativo se democratizou. Começou então a falar-se numa Escola para todos e na
Educação como elevador social. E foi de facto um dos setores da sociedade que
mais evoluiu neste meio século. Apesar disso, passados 50 anos, é evidente como
o elevador continua a subir mais facilmente para determinados grupos; para
outros é ainda muito vagaroso. As causas estarão, em grande parte, nas
assimetrias sociais que continuam a dividir o país, e permitem que haja ainda
escolas para ricos e escolas para pobres. Os rankings publicados anualmente são
disso uma evidência escandalosa.
No trabalho:
Numas
férias de verão fui oferecer-me para a vindima nas Vinhas do Poço (naquele
tempo as vindimas faziam-se em finais de setembro e as aulas começavam só em
outubro). Olharam-me com cara de quem não acreditava muito nas minhas
capacidades, mas devem-me ter valido os créditos herdados dos meus pais e avós,
gente de muito trabalho e boas referências. Disseram que me apresentasse na
segunda-feira de manhã na Fonte Velha, que era onde se juntava o pessoal
apalavrado. Só tinha que levar uma cesta, uma faca que cortasse bem e a
merenda. Estava tão ansiosa que fui das primeiras a chegar.
Éramos
um rancho grande de homens e mulheres, toda a gente muito animada, a pé, pela estrada
adiante até às Vinhas. Era a minha primeira vez numa vindima assim tão grande,
mas estava determinada a dar tudo para mostrar que era capaz de merecer o salário.
E ia fazendo contas a ver se o que ia ganhar chegaria para os sapatos que
andava a namorar há que tempos.
Quando
chegámos, as mulheres distribuíram-se pela vinha, cada uma no seu carreiro, a
colher as uvas. Trabalho duro: costas curvadas o dia inteiro e o olhar do
feitor, sempre em cima de nós, atento ao que fazíamos, principalmente se
levávamos tudo a eito ou metíamos à boca mais que a conta de bagos de uva. Os
homens carregavam os cestos que íamos enchendo, até ao sítio onde pisavam as
uvas. A minha cesta, mal a despejava, voltava a encher-se num instante. Fui até
repreendida por me adiantar um pouco às outras mulheres: «Na vindima há que andar
todas a par umas das outras; é mais bonito». A partir daí fiz por acompanhar o
passo do grupo: nem à frente, nem atrás, cumprindo o ritual que, a pouco e
pouco, fui percebendo.
Não
me lembro de quanto tempo durou a vindima, mas, à medida que passavam, parece
que os dias iam ficando maiores e as costas cada vez mais doridas; mas aguentei
sem me queixar nem dar parte de fraca até ao fim. No dia do pagamento estava
ansiosa; era o meu primeiro salário! Mas o entusiasmo passou assim que vi que
aos homens pagavam uma coisa, às mulheres um pouco menos e a mim uma miséria. Perguntei
porquê e responderam-me que toda a vida os homens ganharam mais que as mulheres,
e eu também não podia querer o mesmo que uma mulher já feita. Foi uma desilusão;
e senti-me discriminada não apenas pelo patrão, mas também pelas outras
mulheres, que olhavam para mim a achar que era justo que assim fosse. Na altura
nem percebi que era a luta pelo pão a sobrepor-se a qualquer tentativa de
solidariedade. Naquele tempo, pensava-se lá em enfrentar os patrões por
melhores condições e igualdade no trabalho?!
Já
lá vão mais de cinquenta anos desde que isto aconteceu. Entretanto a situação
laboral das mulheres melhorou significativamente, mas, reminiscências de um
passado que não queríamos tão presente, uma das grandes reivindicações das
mulheres continua a ser o fim da discriminação salarial relativamente aos
homens. Salário igual para trabalho
igual!
M.L.
Ferreira