Assentei praça no Regimento de
Cavalaria em Castelo Branco em 1943; tinha 21 anos. Éramos uns poucos cá da
freguesia, mas dos que me lembro melhor é do Zé Candeias que depois até andámos
os dois na resina e ficámos sempre muito amigos, e do João da Corredoura que morava no Casal da
Fraga. Bom homem, que até ainda lá parei algumas vezes na casa dele quando ia à
Vila e não me deixava abalar sem comer uma bucha e beber um copo para o
caminho.
Naquele tempo não havia as estradas
que há agora e era o cabo dos trabalhos para uma pessoa ir para qualquer lado.
Para os que vivíamos aqui, longe de tudo, ainda era pior. Para se ir daqui à
Vila aviar algum recado eram precisas duas horas para lá e outras duas para cá,
sempre a subir e a descer por veredas e atalhos. Mas o pior era quando morria
alguém e tinham que levar os mortos para serem enterrados. Ainda me lembro de
os levarem embrulhados num lençol, atados a uma escada levada em ombros por
dois homens. Mais tarde, quando já havia uns caminhos um pouco melhores,
passaram a levá-los num esquife, em cima de um carro de bois. Mas quando era de
inverno, que ainda não havia pontes e os bois tinham que atravessar os ribeiros,
é que eram elas. Uma vez, ainda eu era novo, mas lembro-me bem, o esquife caiu
à água e parecia o fim do mundo com toda a gente aos berros: «Agarrem o morto!
Agarrem o morto que ele foge!». Foi o cabo dos trabalhos para o agarrar.
Coitado, ficou todo numa sopa, que até metia dó. Ele e os que tiveram que se
meter na água para o segurar…
Foi por causa destas e doutras que um
dia foi daqui o Cabo d’Ordens e mais uns poucos à Guarda a pedir ao Bispo que
nos deixasse passar para Almaceda, que estava aqui mais à mão. Nunca nos deu
resposta ou, se deu, deixaram-na ficar fechada dentro da gaveta, que era o
costume, e ficou tudo em águas de bacalhau, até hoje.
Mas estava a falar de quando assentei
praça. No dia em que me fui apresentar mal preguei olho, com medo de me deixar
dormir e não chegar a tempo, que daqui até lá eram umas boas três horas de
caminho, tudo a pé. De manhã éramos uma tormenta deles à entrada do quartel.
Painel de azulejo existente à entrada do antigo quartel de cavalaria, na Devesa, em Castelo Branco.
Puseram-nos a todos numa fila e
entregaram-nos a farda. As calças e a camisa, vá que não vá; as botas é que
foram elas. Avezado a andar quase sempre descalço, e obrigarem uma pessoa a
andar todo o santo dia com os pés dentro numas botas que ainda por cima eram
duras como cornos e nos roíam os calcanhares todos, foi um martírio. E depois
meteram-me uma arma na mão e ensinaram-me a dar tiros com ela; a mim que sempre
me soube defender com estas mãos que Deus me deu (não é que não tivesse também boa
pontaria com pedras…).
Ao princípio não havia dia nenhum que
não pensasse em fugir para a serra. Era lá onde me conhecia desde sempre,
primeiro a guardar cabras e depois na resina, quando ainda mal me podia ajudar
com os cântaros às costas. Mas a pouco e pouco lá me fui fazendo às botas e àquela
vida da tropa, que não tive outro remédio, mas sempre a contar os dias para
poder voltar para a terra.
Passados uns tempos, já no fim da
recruta, começámos a ver por lá um grande reboliço: os comandantes de um lado
para o outro, e pessoal que já tinha sido licenciado a apresentar-se outra vez.
Vimos logo que se passava alguma coisa. E a verdade é que uma noite nos
mandaram apresentar todos na parada e deram-nos ordens para estarmos prontos ao
outro dia porque íamos para fora por uns tempos. Não nos disseram para onde é
que íamos, mas soava-se que íamos em manobras para o Alentejo porque Portugal
ia ser invadido pelos alemães e desconfiava-se que a guerra havia de vir lá por
baixo, pelos lados do mar.
Quando foi de manhã meteram-nos a
alguns em camiões e outros formaram um esquadrão montado em motas e abalámos todos
por aí abaixo. Até chegarmos ao destino ainda parámos em dois ou três sítios para
fazer manobras e treinar com umas armas novas que nos deram. Ao outro dia
tornávamos a arrumar tudo e continuávamos o caminho. Quando chegámos ao
destino, lá mais para baixo ainda, montámos outra vez o acampamento e
continuámos os treinos, sempre com os olhos postos no horizonte, à espera que
chegasse o inimigo. Havia lá gente de muito lado e éramos tantos que não havia
tendas para todos, mas estava bom tempo e à noite até dormíamos à restolhada
debaixo dos sobreiros, que havia por lá muitos.
Estivemos uns poucos de dias à espera,
sempre alerta, mas passou-se o tempo e não veio ninguém, nem do mar nem do céu,
que também diziam que podiam vir de avião. Depois, um dia, já assim à tardinha,
vimos chegar um grande automóvel preto, todo descoberto, com um homem lá em
cima a acenar para nós. A gente mal o via, mas disseram-nos que era o Salazar
que tinha vindo passar revista às tropas e que tinha dado ordens para abalarmos,
que o perigo já tinha passado.
Ao outro dia mandaram-nos arrumar tudo.
Montámos outra vez para cima dos camiões e voltámos todos descansados, cada um para
os seus quartéis. Os que já estavam licenciados abalaram para as terras deles
todos contentes, que já tinham a obrigação deles mais que cumprida e o trabalho
à espera.
Ainda bem que o inimigo não chegou a
vir, se não éramos capaz de ter ficado todos ali estendidos à sombra dos
chaparros e hoje já ninguém se haveria de lembrar desta passagem.
M. L. Ferreira