Santo Ofício – os avós denunciantes
Em São Vicente,
quem primeiro compareceu a denunciar foi Silvestre Rodrigues, de 23 anos,
tratante; no mesmo dia, 7 de Junho de 1579, vieram também Sebastião Fernandes,
lavrador, de 38 anos, e Pedro Fernandes, proprietário, de 34. Os três, aqui
moradores, e cristãos-velhos.
A receber as
denúncias, o inquisidor Marcos Teixeira, acompanhado no acto por «notário
apostólico e do Santo Ofício».
Esta sua «visitação»
em terras do Continente começara no princípio do ano, em Portalegre, seguindo
depois para outras terras de além-Tejo – Arronches, Marvão, Montalvão, e Nisa –
passando depois à Beira; antes de chegar a São Vicente, a missão de que estava
incumbido levara o senhor inquisidor a Abrantes, Sarzedas, Castelo Branco,
Idanha-a-Nova, Monsanto e Penamacor. A derradeira etapa, depois de São Vicente,
começou em Alpedrinha, seguindo-se Fundão e a vila da Covilhã e seu termo, onde concluiu, em 11 de Julho de 1579.
Seis dias durou
a função em São Vicente. Invariavelmente, os denunciantes apresentavam-se no
local onde pousavam o inquisidor e o
notário, muito possivelmente a igreja, declarando pretender denunciar alguém. Ordenava-lhes,
então, o inquisidor que jurassem dizer a verdade, com a mão sobre os
Evangelhos. Do que diziam, era elaborado um registo, que devia ser assinado
pelo inquisidor e pelo declarante; não sabendo este escrever, o notário
assinava por ele.
Do que ali
tinham ido dizer, eram mandados guardar segredo. Era prática da Inquisição que
as denúncias se mantivessem anónimas, que as vítimas não soubessem quem as
denunciara.
Oitenta
pessoas em São Vicente apresentaram-se para denunciar – mais exactamente, 76,
homens (31) e mulheres (45), de idades e condição social diversas; 23 têm menos
de 25 anos de idade, sendo de 17 anos as duas denunciantes mais novas:
Catarina, criada de Manuel Francisco, cristão-novo, e Maria Vaz, já casada. Da
relação dos denunciantes, somente 5 têm 50 anos ou mais, identificando-se com
70 anos os dois mais velhos no exercício da delação: a sogra de Sebastião
Fernandes, Ana, viúva, e Jorge Gonçalves, lavrador, ambos da vila.
Dos
76, são 28 os que sabem assinar e o fazem; todos homens, muitos deles exercendo
profissão manual, aqueles que as Ordenações referiam como trabalhando «per afã de
seu corpo».
Na sua grande
maioria, são pessoas casadas; todavia, referenciam-se 13 mulheres viúvas, mas
não há viúvos. São pessoas morando na vila, quase todas, ou terras do “termo” (Sobral,
Freixial, Ninho do Açor); de fora, denunciantes em São Vicente, só o alfaiate
Pedro Gonçalves, residente em Alcaide, e um Sebastião «preto, de Manicongo»,
que veio de Alcains denunciar aquela de quem era escravo («cativo»), Ana Lopes,
cristã-nova e mais uns tantos membros da família desta, de Alcains, Castelo
Branco e São Vicente.
Os registos das
declarações incluem também a condição religiosa de cada um – cristão-velho/cristã
velha, é a regra; significa isso, pessoas nascidas em famílias cristãs, sem
ascendentes de outra fé e observantes da mesma religião; o acto de denúncia
constituía, aliás, uma obrigação do “bom crente”. Nos registos que servem de
base à presente notícia identificam-se excepções: o cinquentenário ferreiro,
Gil Antunes, e o já referenciado alfaiate do Alcaide, Pedro Gonçalves, ambos
«com raça de cristão-novo» – foi assim que se apresentaram ao inquisidor –, e
Sebastião «preto», também já referido, sem nenhuma menção de estado em matéria
de religião – a condição de escravo, equiparado a besta, retirava-lhe
capacidade para tais atributos, mas não a de denunciante, estabelecido que foi,
reza a o registo, ter ele «juízo e entendimento», jurando por isso, como os
outros, «os santos evangelhos».
As vítimas das
denúncias são, quase sempre, cristãos-novos. Os denunciantes referem práticas
judaizantes, alguns com soma de detalhes – a isso eram incentivados por quem os
ouvia –, com identificação clara de quem e quando os actos haviam sido
praticados e se outras pessoas os tinham presenciado. Esses factos haviam de
servir, a posteriori, para acusar os
seus autores. Em geral, a mesma pessoa denunciava várias pessoas; com
frequência, os denunciantes haviam tido convivência, em alguns casos, de portas
adentro (criados e serviçais…) com aqueles que vêm acusar.
A denúncia ao
Santo Ofício é referenciada pelas autoridades eclesiásticas como uma obrigação
do bom cristão, como se de um acto piedoso, uma boa acção que acarretaria
benefícios a quem delatasse. Isso mesmo era transmitido aos fiéis, antes da inquisição: na missa de domingo,
acompanhada pelo inquisidor itinerante, anunciava-se aos paroquianos o início
dos actos, invocando-se o Édito da Fé,
em conformidade com o qual o cristão tinha o dever de denunciar actos de que
tivesse conhecimento, directa ou indirectamente, contra a sua religião, os seus
dogmas e rituais, a prática do judaísmo ou da feitiçaria, mas também certas
condutas em matéria de casamento e sexualidade, como a bigamia ou a
homossexualidade. O denunciante, além dos actos, deveria identificar o seu ou
seus autores.
A legislação
canónica, as bulas papais, o Santo Ofício e seus agentes, “garantiam”, a quem
denunciasse, graças várias, mas
principalmente o perdão dos pecados e por essa via o acesso mais fácil à
salvação eterna. Apesar do peso da Igreja, do poder da Inquisição e da
discricionariedade da sua acção, com o apoio da máquina do Estado, também
existe em São Vicente (noutros sítios seria o mesmo) quem discorde do que vê:
no Livro 1º das Denúncias da Visitação do
Santo Ofício nas Ilhas dos Açores, Alentejo e Beira encontramos António Vaz,
por alcunha Cabeças, dirigindo-se, da porta de sua casa,
atrás da igreja, a duas mulheres que vão denunciar, dizendo-lhes: «Vão muito
depressa, pensando que ganham perdões, mas vão é ganhar o Inferno». Por isso, o
Cabeças é também denunciado.
Não são apenas
gente comum, os denunciantes. Fazem-no também pessoas que exercem localmente
cargos políticos e administrativos, como o procurador do número, Manuel
Carrilho, o escrivão da Câmara, Manuel de Brito, e Sebastião Nunes, juiz
ordinário na vila, o último declarante nesta “visitação”, em 13 de Junho;
curiosamente, apresenta-se em nome de sua mulher que, por estar doente, não
pôde vir depor. Finalmente os “padres-denunciantes”: três, “deveriam” ser, pelo
menos, três – Jorge Machado, «clérigo de missa», o «cura» Fernão Valente e o
«cura» Sebastião Carvalho; mas são somente dois, Jorge Machado e Fernão
Valente, que coincidem nas denúncias – as práticas diferentes dos cristãos-novos
da terra no enterro dos seus mortos, e o padre Sebastião Carvalho, por
comportamento herético, ao recusar uma segunda extrema-unção a uma moribunda, a
quem ministrara, pouco tempo antes, o mesmo sacramento.
No dia 14 Junho
de 1579, o inquisidor Marcos Teixeira iniciava a recepção de denúncias em Alpedrinha.
José Miguel
Teodoro