Há
dias, já quase noite e um frio de rachar, tocou o telefone. Era uma vizinha a
avisar:
-
Olha que tu fecha as portas bem fechadas, que está um vagamundo mesmo aí à
frente da tua casa.
Fui
espreitar e, de facto, vi um homem sentado na paragem da camioneta. Tinha o
cabelo comprido e as barbas brancas chegavam-lhe até ao peito. À roda dele, no
chão, tinha dois sacos de plástico cheios com qualquer coisa, provavelmente
roupa. Passado um bocado voltei a espreitar e o homem continuava no mesmo sítio,
mas já embrulhado numa manta, como se fosse passar ali a noite.
A
pretexto de lhe levar algum agasalho, saí de casa e fui meter conversa com ele.
Era espanhol, por isso tive dificuldade em entender tudo o que disse, mas
percebi que tinha nascido numa terra da Andaluzia. Percebi também que não se
quedava por muito tempo no mesmo sítio e por isso abalava, sem destino certo,
por esse mundo fora. Desta vez tinha vindo para Portugal e já andava por cá
desde junho.
Ao
outro dia, bem cedo, o homem tinha desaparecido. Na paragem da camioneta não
havia qualquer vestígio de que alguém tivesse dormido naquele sítio. No centro
do banco estava apenas a malga da sopa que lhe levara na véspera, bem lavada.
Por baixo dela, um bocado de cartão com a palavra “gracias” escrita em letras
mal alinhadas.
Durante
alguns dias pensei várias vezes naquele homem e em como há vidas… (qualquer
adjetivo pode ser válido ou descabido). Compreendi, finalmente, o sentido do
termo vagamundo utilizado pela minha vizinha. E, cá no fundo, fiquei contente
porque, do alto da minha sapiência, por pouco não lhe emendei o falar.
Nota: A palavra vagamundo
ainda consta numa edição já velhinha (sem data, infelizmente) do Dicionário da
Língua Portuguesa, da Porto Editora (se atentarmos bem, o significado do termo
não é exatamente o mesmo de “vagabundo”), mas já não se encontra em dicionários
mais recentes, como o Houaiss da Língua Portuguesa.
Maria
Libânia Ferreira