RABOMOLE
I
Esta
Páscoa, após as festas, deu-me, mais uma vez, para dar uma volta pelas
proximidades da Vila. Ao mesmo tempo que tentava ler (ou reler) dois livros.
Um, a ‘Aparição’ do Vergílio Ferreira; outro, ‘O Arranca Corações’ do Boris Vian.
Já tinha
tentado essa leitura. As férias são curtas para tanto. E mais uma vez me fiquei
pela tentativa. Ao todo, de um e outro, li apenas uns capítulos.
Deixei de
parte essa tarefa.
E, como há muito me interesso pela disciplina da
Arqueologia, de vez em quando vou ver o
que ainda resta dos antigos Romanos; ou à procura de alguma linda moura que,
por obra de bom feitiço, se encontre encantada algures numa gruta da
Gardunha.
Primeiro,
a sul.
Estaciono
o carro junto à estrada, ao fundo do alto da Fábrica, do lado de lá. Sigo, a
pé, até às Vinhas do Poço, local onde parece que os nossos antepassados Romanos
assentaram arraiais.
É aí que
parece existir a maioria dos elementos arqueológicos de superfície, até agora
conhecidos. Desde moedas com a efígie, designadamente, do imperador Constantino
(séc. IV); cerâmica (telha, (tegula), pedaços de potes, tijolos; e,
eventualmente, azulejaria romana de pavimento (existem lá fundações de casas da
época) … Um mundo a descobrir!
Vim
depois para cima, até à fonte de mergulho da Portela, a sul, onde persistem
afloramentos de calçada antiga, talvez romana, talvez árabe ou mesmo medieval.
Calçada
que, na sua continuidade, ia entrar na Vila, passava pela Rua da Corredoura, no
topo do povoado e se dirigia ao alto da Portela, a norte, no cimo da Senhora da
Orada. Daí, descia a encosta norte da Gardunha para o Fundão, com a Estrela à
vista.
Uma
espécie de ‘CREL’ (Circular Rodoviária Externa de Lisboa), da época, mas da
Lisboa … Pequena.
O intuito
que, desta vez, me trouxe a esta aventura era simples: percorrer, a pé, toda
essa estrada antiga, das Vinhas até ao alto da Senhora da Orada e localizar os
afloramentos de calçada, onde eles ainda existem.
Com a
mobilização de pessoas, a colaboração dos Escuteiros e a ajuda de algum técnico
especializado, talvez se possa conservar e limpar um pouco o caminho.
Finalmente, poder fazer desse percurso um itinerário para passeios pedestres,
com sinalética adequada, paragens estratégicas de descanso e compensação do
estômago e mini palestras de esclarecimento sobre o património.
Porém,
poupei-me ao esforço de percorrer, a pé, toda essa calçada desde as Vinhas até
à Portela, a norte. Nem tinha tempo para isso. Peguei no carro e segui pela
estrada habitual, até à Senhora da Orada.
Tinha,
inevitavelmente, que ir beber água à fonte. Li ali uns versos dedicados à santa.
Olhei para a capela e vi mais uns versos, num azulejo, na parede traseira e
várias ofertas de flores na fachada da frente. Fui parar o carro, já à saída,
na curva, fora da estrada, perto do ribeiro, no local onde a tal estrada antiga
de pedra continua, serra acima, até ao alto da Portela. Passando ali ao lado da
exploração das águas da ‘Fonte da Fraga’, onde se vê jorrar água em vários
respiradouros da conduta.
II
Aí
iniciei a subida.
Levo
comigo um porta-documentos com bolsa e correia de 60 cm, contendo um molho de
chaves, 2 telemóveis, carteira com vários cartões, um comando elétrico, uma pen,
um porta-moedas, tabaco, isqueiro. Tem algum peso.
E logo
dei por um cão pequeno que por ali vagueava. Como não apresentava um estado de
escanzelado ou de magreza, concluí que pertenceria a alguma das pessoas que por
aquele sítio tem animais. Ainda agora não sei se isso corresponde à realidade.
Sei apenas que o cãozito, tal como apareceu, repentinamente, voltou a
desaparecer, sorrateiramente, entre o mato que bordeja o caminho.
Nem eu,
nem ele proferimos qualquer som. Mal o tinha visto. Mas, naqueles breves
segundos, pude reparar que pouco abanou o rabo, sempre descaído. E logo me deu
para o batizar de ‘Rabomole’.
Deixei de
o ver. Prossegui.
O tempo
estava bom para andar porque não fazia muito calor. Estava até um pouco fresco.
Mas o sol, quando aparecia, frequentemente, entre as clareiras de nuvens, picava
a pele. O que valia era que essas nuvens me iam sempre protegendo, a
intervalos, com a sua sombra reparadora.
Caminhava
sozinho, absorto, num bom passo, apesar de a subida ser acentuada. Tinha muito
que andar!
Além do
bulir do mundo, com o cantar das aves e o zumbido dos insetos a libar e a
polinizar muitas flores que já estão abertas ao sol e ao ar, compondo o quadro
da primavera, nada mais se ouvia, a não ser os meus sapatos a chuçar as pedras
soltas do caminho.
Apenas
uma aragem agitava as giestas cujas flores amarelas e brancas, um pouco mais
atrasadas, querem agora desabrochar.
E lá
prosseguia, serra acima, à descoberta dos afloramentos de calçada. Tão
compenetrado ia em chegar à Portela, que não dava por nada!
Já me
tinha esquecido do cãozito que encontrara ao fundo da ravina.
III
Subitamente,
ouço do lado direito, mas atrás mim, um arfar de respiração que me assustou um
pouco, pois não tinha dado por alguém ou algum animal se ter aproximado. O que
quer que fosse, que se veio ali postar à minha ilharga não tinha feito qualquer
barulho.
Mas numa
fração de segundo, veio-me à cabeça a única conclusão possível: só pode ser um
animal. E, a avaliar pelo cavo ofegar, talvez um grande cão, guardador de
rebanhos ali na serra. Assustou-me, sobretudo, o pressentimento (e isso era
real) de que, estando de costas, me encontrava ao alcance do animal, caso este
formasse um salto para me atingir, sem que eu pudesse defender-me.
Virei-me,
então, instintivamente e agarrei o porta-documentos pela correia, com todas as
coisas que levava dentro (algumas metálicas) e fiz menção de dispará-lo contra
o focinho do animal, o que sempre teria o efeito de o afastar dos seus
intentos.
Mas, ao
virar-me, para agredir o intruso, que eu sentia estar ali mesmo muito perto,
não era senão o cão que tinha visto no início da subida da encosta. Descansei.
Após
aquele meio gesto de ameaça, o cão afastou-se com medo. Pregara-me um pequeno
arrepio. Não lhe dei confiança. Ele percebeu e ficou para trás. Deixei de o ver
novamente. Deve ter feito a mesma manobra que fez da primeira vez. Saiu do
caminho e meteu-se de novo pelo mato, silencioso. Continuei na minha senda.
Ao fazer
cada curva da estrada, olhava à retaguarda, a tentar perceber a sua estratégia
de caçador como é toda a condição de cão. E lá estava ele ao fundo do caminho,
sentado sobre as patas traseiras, a medir os meus movimentos e a avaliar cada
gesto meu, guardando uma distância defensiva. Depois, uma e outra vez, voltava
a meter-se mato dentro até aparecer de novo.
Chegado
ao alto da Portela, de lá divisei, para sul, a vastidão da Beira Baixa com
montes e planícies; para norte, a imponente Estrela, ainda com as neves da
época, a derreterem-se para o mar, pelos vales do Zêzere e Mondego.
Entretive-me
a tirar umas fotos. E o que é que vejo, ao virar-me para trás, mesmo no
cruzamento do alto da Portela? O cão, o Rabomole, de novo, a observar-me.
Tinha-me acompanhado até ao fim da etapa. E até parece que sabia que era ali o
fim do caminho que me propusera percorrer.
Então
chamei-o: “Rabomole, anda cá, botcho!” E fazia aquele som que se
obtém quando se unem os lábios, inspirando o ar como quando se dá um beijo
repenicado na face de alguém. Até hoje ainda não compreendi por que é que os
cães percebem que isso é um sinal de afeto dos humanos para com eles!
Rabomole abanava
então mais intensamente a cauda, de satisfação. Mas sem nunca a levantar muito.
Acercou-se de mim e veio mesmo deitar-se perto das minhas pernas. Fiz-lhe umas
festas. Mas nada levava comigo que se comesse para lhe poder dar. Não me
abandonou mais. Tinha feito um amigo!
Lá no
alto, uma pequena nascente das que, nesta época, atravessam o caminho, tinha
acumulado água numa poça e já ele se tinha metido no lamaceiro, para arrefecer.
O esforço da subida fora grande! Ficou todo enlameado.
Repentinamente,
tocou o meu telemóvel. Alguém me telefonava. Atendi. Falei, falei. Rabomole não
arredava pé. Procurava compreender, no seu entendimento de cão, que aparelho
seria aquele que tocava. Rádios já ele teria visto muitos! Mas aquilo…
O
desconhecido é como inimigo, diz-se. Por isso, orelhas sempre alerta! Olhos
vivos! Movendo-se a cada trejeito meu, enquanto falava ao telefone! Rápido como
a sombra!
E talvez
até se interrogasse: “Se não está a falar para mim - o que ele com toda a
certeza perceberia – por que é que este indivíduo está para ali a falar alto,
se não está aqui ninguém para lhe responder?” Não percebia. Que créditos lhe
mereceria eu, então, no mundo dos cães
IV
Mas, bem,
após demorar-me uns minutos, lá no alto, iniciei a descida, que estava a passar
da hora do almoço, na Vila. E ele sempre comigo, logo atrás, ao lado ou à
frente. Agora já tinha confiança em mim.
Mas o seu
instinto de caçador levava-o, por vezes, a perscrutar, de focinho em riste,
algum movimento impercetível para mim de algum animalzinho terrestre ou ave a
saltitar nas giestas; outras vezes, parecia que ia cheirar algum arbusto, pedra
ou cômoro, marcando o seu terreno com urina. Mas logo voltava, de novo, a sua
atenção para mim, vindo no meu encalço, mantendo-se à distância regulamentar.
Os meus
passos eram agora mais rápidos porque a descer todos os santos ajudam. A umas
boas dezenas de metros do local onde tinha ficado o carro, lá em baixo deixei,
surpreendentemente, de o ver. Mas quando cheguei, lá estava ele, fiel, a
arquejar, língua de fora, deitado ao lado do carro, à sombra, que o sol, no seu
pino, queimava, se as nuvens, momentaneamente, se afastassem.
Chamei-o
mais uma vez e fiz-lhe mais umas festas. Ao despedir-me, sentia já saudades
daqueles momentos, daquela pequena caminhada que tínhamos feito, irmanados, eu,
no esforço de alcançar um objetivo ele na perseverança de me acompanhar, com a
expectativa de algum afeto. Era apenas isso que, naquelas circunstâncias, lhe
podia dispensar.
Pus o
motor a trabalhar e disse-lhe adeus. Correu atrás do veículo enquanto pôde, a
boca a resfolegar! A última vez que o vi, pelo retrovisor, ainda vinha a correr,
até que desapareceu na curva, pulmões a queimar, ao rubro, na tentativa
inglória de me alcançar. Acelerei com a emoção contida. Queria sair dali. E
afastei-me, definitivamente, na estrada.
Mesmo não
podendo vencer a máquina, o querer daquele pequeno cão é enorme, não tem
limites.
E dei
comigo a pensar: “O engenho do homem nada pode, afinal, contra a centelha de
afeto criado na Natureza.”
Resta-me
a falsa tranquilidade de pensar que Rabomole terá o conforto de se sentar,
hoje, à ceia, ao colo do dono, no aconchego de um lar.
José
Barroso
A propósito de um comentário
Libânia, é este o cão?
(Oxalá não seja!)
José Teodoro, a pedido do José Barroso
Olhem p’ra mim, tão lindo!
Infelizmente, parece que é mesmo o Rabomole! É muito triste
que façam isto aos animais, mas se até o fazem às pessoas…
Mas ele continua com bom aspeto e sem fome; e pode ser que
tenha a sorte de outros que por aqui têm aparecido. Ainda há pouco tempo a Adriana
e o Dário “adotaram” um que também por aqui andava abandonado.
Já há quem diga que no Casal até os cães têm sorte. O
Rabomole também vai ter a dele!
Espero dar boas notícias em breve…
M. L. Ferreira