Uma vez, já lá vão muitos anos, o tio-avô da nossa
Margarida, José Augusto Alves, filho da Ti Rita (Rita Macedo) e do Tio
Augusto (Augusto Alves), estava a tocar o seu harmónio na taberna do
Ambrósio, que era uma das muitas tabernas da nossa terra e estava situada
na Rua do Convento. O Tio Zé, que também era poeta, adorava aquele instrumento
e sabia tocar muito bem.
O Ambrósio, que estava a encher copos do lado de
dentro do balcão, reparou que, na rua, meio escondido, se encontrava o Tio
Augusto a espreitar o filho. Por velhacaria começou a desafiar o Zé:
- Vá agora com manha!
O Zé começava a tocar mais devagar e mais apurado.
- Vá agora sem manha!
E o Zé tocava mais rápido.
O Tio Augusto, que tinha herdado dos seus avós o
apelido “Manha”, não gostou da brincadeira. Subiu a rua, entrou em
casa, procurou um foição e regressou à taberna. Chegou-se ao filho e
diz:
- Nem com manha nem sem manha!
E, sem dó nem piedade, cortou o harmónio ao meio, para
grande desgosto do filho.
Esta história (verdadeira), não era para ser incluída
neste texto, mas hoje apareceu no Posto Médico o filho do Zé, o Domingos da
Conceição Alves, e estivemos a conversar um bocado, tendo eu já em vista este
artigo, e foi ele que me confirmou com detalhes esta história que eu já conhecia.
A Ti Rita e o Tio Augusto eram um casal muito sui
generis. Há tanta coisa a dizer sobre eles que até tenho dificuldade em
começar. Tinham uma propriedade nos Aldeões que pegava com a nossa só que a
deles era muito maior. No entanto a nossa também é grande, tão grande que
eu fecho os olhos e tudo o que vejo é meu! É tão grande que um trator andou
dois dias para a lavrar! (esteve avariado quarenta e seis horas!) Desculpem lá,
não era bem isto…
O Tio Augusto era muito surdo; hoje soube que era meio
surdo. Um dia em que ele andava no leirão fundeiro junto à estrada e tinha a
burra (grávida) presa como de costume à macieira, passa o Sr. Coronel Barreiros
a caminho do Casal do Grilo que é logo ali.
O Sr. Coronel, que adorava conversar,
perguntou ao Tio Augusto se já tinha arrancado as batatas. Resposta do
Tio Augusto, mas referindo-se à burra:
- Anda barronda, anda, Sr. Coronel!!!
Nós costumávamos atravessar este leirão fundeiro
para ter melhor acesso a pé à nossa horta. Isto era feito a conselho do
Tio Augusto, porque o nosso acesso era mais longe.
Um dia, quando estava a passar pelo Tio Augusto, neste
leirão, desequilibrei-me e caí um enorme trambolhão. Quando tentava
levantar-me, diz-me de lá o Tio Augusto, em tom sarcástico:
- Então, estavas a malhar a quarta?
Cabe explicar, por causa dos mais novos, que ”malhar a
quarta” ou ”bater a quarta” era o que se dizia quando os burros, e não só, se
espojavam, se rebolavam na terra, quiçá para se livrarem de parasitas.
Como vizinhos que éramos, as nossas propriedades eram
muito diferentes. A deles tinha água todo o ano; a nossa tinha um pocito que
mal dava para ogar meia dúzia de couves. Era aqui que eu queria (finalmente)
chegar: Nunca ao meu avô ou ao meu pai faltou a água para regar ou para beber
oferecida pelo Tio Augusto e a Ti Rita. Gente de coração grande e generoso,
além da água eram as cerejas, as maçãs, as ameixas; repartiam sempre tudo o que
a terra e o seu trabalho davam.
Guardei para o fim a Tia Rita. Mulher de porte médio,
vestida de cores claras, não largava o seu avental e o seu lenço verde com
florinhas atado no cimo da cabeça. Quando falo dela ou penso nela, vem-me
imediatamente à memória a arrecadação da casa do Cimo de Vila, a abarrotar de
maçãs e malápios com o seu cheiro maravilhoso, onde ela me levava pela mão,
a fim de eu me ensarroar à vontade.
Nesse tempo, não havia eletricidade quanto mais
televisão, mas parece que havia mais alegria.
Onde estava a Ti Rita, não havia tristeza. Pelo
Carnaval, pelo São João, pelas Festas de Verão, quando as mulheres queriam
folia, iam ter com a Ti Rita e lá vinha ela com o seu inseparável adufe a dar a
volta à vila, com toda a gente atrás.
O Tio Augusto não era muito destas coisas e então,
quando acontecia ser necessário requisitar a Ti Rita para algum divertimento
noturno e as mulheres lhe iam bater à porta, ela vinha de lá e dizia -lhes:
- Tende paciência, cachopas. Eu vou num instante
fazer um chá de ervas dormideiras ao meu Augusto e depois vou a correr ter
convosco!
Daí a pouco, lá aparecia ela com o adufe e começava a
festa. Ali não havia maldade.
Gente simples, gente boa.
Muito raro.
E.H.