Manhã radiosa; o santuário estava preparado para
receber mais uma romaria.
Uns a pé, outros a cavalo em burros, carros de bois
lindamente enfeitados com colchas, rosmaninho, giestas floridas iam chegando.
Romeiros cantavam loas à Senhora.
A ganapada ia para a estrada nova ver passar os
devotos, alguns passavam dentro da vila, entravam numa taberna, emborcavam um
cajeirão e seguiam.
De vez em quando um romeiro, cajado na mão, botas
atadas aos ombros, descalço; promessa.
Os moradores do cimo de vila subiam a serra pelo
ribeiro D. Bento, ranchos e ranchos de moços e moças cantavam: “Nossa Senhora
da Orada...”
À medida que se aproximavam do santuário, ouviam-se
realejos, harmónios, guitarras.
Rapazes cantam ao desafio, para impressionar as
raparigas
Nas margens do ribeiro os taberneiros montam a tenda e
vendem vinho a copo, tremoços, pirolitos...
Alguns fazem assaduras, montam pequenos restaurantes
improvisados.
Ao fundo do terreiro, uma colcha exibe flores de papel
com penas coloridas; uma banca vende santinhas de açúcar.
Mais abaixo, à socapa, o homem da vermelhinha faz seu
jogo enganando os mais incautos.
É uma confusão organizada.
Antes da missa, os romeiros dirigem-se à mesa da
confraria onde compram velas, estampas de Nossa Senhora e pagam suas promessas.
Junto ao altar deixam braços, pés, pernas, cabeças em
cera... O ermitão coloca-as na parede.
O senhor vigário inicia a santa missa, os romeiros
acotovelam-se dentro da capela, não cabem todos, (a maioria participa no
terreiro à sombra da enorme amoreira e do freixo), assistem com fé ao santo
oficio divino.
A procissão é enorme, mesmo os que não assistem à
missa não faltam à grande manifestação de fé, pessoas descalças, velas acesas
nas mãos.
À passagem da procissão, um velhote tira o chapéu da
cabeça, segura-o contra o peito, inclina-se benzendo-se.
O adeus à Senhora é uma manifestação de amor, carinho
e saudade; as lágrimas correm, efeitos do sermão, as palavras do pregador
comoveram.
Por aquelas quebradas serranas, romeiros saboreiam
saborosas merendas.
No alto da Portela, uma pequena nuvem surgiu,
pouco-e-pouco tornou-se cada vez maior, num ápice todo o céu se cobriu de
escuras nuvens anunciadoras de trovoada.
Um trovão, outro e outro. Grossos pingos de chuva;
pasmada, torrencial...
À pressa, as mulheres arrecadam as virtualhas nos
cabazes, cestos ou alcofas. São às centenas os guarda-chuvas pretos que se
abrem.
Caminhos poeirentos depressa se transformam em
lamaçais.
Uma das tendas que se situava junto ao ribeiro não
aguentou a pancada, foi pelos ares com a ventania que entretanto se formou. O pipo
rebola ribeiro abaixo, o taberneiro viu-se grego para o resgatar
Quem pode refugiou-se na capela
O céu a pouco-e-pouco regressou ao azul celeste, o sol
com todo o seu esplendor voltou. Conforme apareceu, desapareceu a trovoada.
A banda começou a tocar, os rapazes catrapiscavam as
raparigas e dançavam.
As mães, lenço na cabeça atado escorrendo até aos
peitos, mãos debaixo dos xailes negros.
Um avental protegia a saia
domingueira, os bolsos serviam para guardar amêndoas farinhentas,
santinhas de açúcar...
Alguns romeiros que ainda não tinham cumprido suas
promessas davam voltas à capela de joelhos e descalços. Os mais frágeis eram
amparados por familiares, um em cada lado.
Quem passava para a fonte condoía-se, em frente à
porta da capela benziam-se.
Ao fundo do terreiro, ouvia-se um harmónio subindo a
ladeira acompanhado por alguns rapazes chapéu na cabeça enfeitado com uma
estampa da Senhora da Orada.
A banda vicentina tocava marchas alegres.
A certa altura as músicas confundiam-se; banda de um
lado, harmónio e cantoria do outro.
Brilhava o sol intensamente, aquecendo as verdejantes
encostas com as mais variegadas cores; qual paleta.
Junto aos ribeiros, férteis nateiros cobertos de batatais
regados com água da Senhora.
Pífaros, realejos, guitarras, harmónios ouviam-se por
toda a parte.
Taberneiros apregoavam os vinhos:
- Ó fregueses aproximem-se, este é do bom e do barato,
dez tostões o quartilho, provem; é beber e gritar por mais
Os homens encostam a barriga ao balcão improvisado, na
mão direita seguram uma grossa bengala com uma grande cachaporra na ponta,
enfiado no braço esquerdo, o guarda-chuva.
Flores de papel, estampas...enfeitam os chapéus.
As mulheres lindas e formosas agarram seus maridos
pela cintura: “Anda homem...”
Um grupo do cimo de vila improvisa uma dança no
ribeiro D. Bento ao som de um realejo
A tarde já ia velha, na fonte os romeiros continuam a
encher suas vasilhas com água santa, eis que, em cima da ponte levanta-se do
nada um sururu, tiram-se de razões dois valentões; (um da vila, outro do Souto
da Casa), esbofeteiam-se, agarram-se, até que um cai estatelado no ribeiro
“Credo, já mataste o homem!”
Regedor acompanhado pelos cabos de ordem toma conta da
ocorrência.
Romeiros continuam a banhar-se e a encher as vasilhas.
A banda
toca, dando voltas à capela, o povo canta:
Nossa Senhora da Orada
Quem vos varreu a capela
Foram as moças de São Vicente
Com um
raminho de marcela
Nossa Senhora da Orada
Ó que Senhora tão linda
Chega Vossa nomeada
À cidade de
Coimbra
Nossa Senhora da Orada
Ó que Senhora tão boa
Chega Vossa nomeada
À cidade de
Lisboa
Nossa Senhora da Orada
Vossa água tem virtude
Com ela muitos doentes
Recuperam a saúde
J.M.S