Ficava
que tempos à varanda da sua casa, com o corpo colado ao gradeamento de ferro, a
olhar os que subiam e desciam a rua, a toda a hora.
Não
se esquecia das horas, porque elas badalavam-lhes aos ouvidos ao ritmo certeiro
do relógio da torre da igreja. Mas era como se se esquecesse. Queria era que o
tempo passasse, farto daquela casa, daquela rua, da sua terra.
Os
pais tinham partido cedo e ele nunca chegara a casar. Por isso vivia sozinho na
casa herdada e as fazendas fora-as passando a patacos, para a bucha de cada
dia, mais roupas novas e umas botas, uma vez por ano.
A
Câmara bem o ameaçava por via das contribuições da casa, atrasadas há que
tempos, mas tomara ele umas moedas para encher a barriga com coisa que se
visse. Já mal se lembrava do que era o mimo de uma febrinha de borrego, nas
Festas de Verão. Valia-lhe alguma alma caridosa que lhe levava umas filhós ou
uns docitos, no Natal e pela Páscoa.
Nunca
gostara dos trabalhos do campo ou dos outros para que o pai o desafiava. Depois
de ele fechar os olhos, ainda a mãe o ralou por uns tempos, mas também ela se
foi e ficou sem ninguém que o chateasse. Vendidas as terras, já só lhe restava
aquele teto que o abrigava do frio e da chuva, mas onde passava fome de cão.
Por isso estava farto daquela casa deserta e daquele povo avarento.
Um
dia de manhã, vestiu-se, fez a dejejua com o que havia, desceu as escadas,
rodou a chave na fechadura da porta da rua e guardou-a no bolso. Depois desceu
a rua, mais a outra rua, molhou a boca na fonte e não parou, sempre em frente,
de cabeça baixa, macambúzio, como quem está de mal com o mundo.
Ficou
por fora largo tempo, comendo o que lhe davam e dormindo onde calhava. Às vezes
conseguia trato melhorado, porque fazia das tripas coração e por breves
momentos arregaçava as mangas e era trabalhador. Noutras encontrava qualquer
alma cristã que não media um homem pelo produto do seu trabalho.
Em
certo tempo, a volta que deu levou-o às terras vizinhas de São Vicente, nem ele
soube porquê. E deu por si a matar a sede na fonte e depois a subir as ruas e a
rodar novamente a chave na fechadura da porta da sua casa. Subiu as escadas,
abriu as portadas das janelas e da varanda, mas só encontrou a solidão que
deixara ao partir. Atirou-se para cima da cama e deixou-se adormecer.
Acordou
com pancadas na porta, já o sol entrava pela varanda. Espreitou lá de cima e
inquietou-se com o chamamento da autoridade. Desceu as escadas e abriu a porta.
Deram-lhe voz de prisão e só teve tempo de dar a volta à chave. Desceu as ruas
que subira horas antes e depois seguiu para a praça, sempre atrás do oficial de
justiça, escoltado por dois homens. Subiu o balcão da Câmara e na sala do
tribunal o juiz mandou-o encarcerar, pelas contribuições em falta. Aparvalhado,
arengou que não tinha posses, mas o juiz fez ouvidos de mercador e mandou-o
entregar ao carcereiro.
Levaram-no
para o balcão, mas entrou logo por outra porta. Depois abriram um alçapão e
mandaram-no descer por uma escada como as da azeitona. Já no fundo, fecharam o
alçapão e ficou no escuro, até que os olhos se foram habituando à pouca luz que
escoava por uma fisga da parede. Ficou longo tempo de pé, depois acocorou-se a
um canto, até que as pernas o obrigaram a sentar-se no chão térreo e frio.
Esqueceram-se
dele naquela enxovia imunda. O único momento de vida era quando, em cada dia,
se abria o alçapão e lhe gritavam para vir buscar a gamela. Depois, voltava a
desesperança.
Um
dia mandaram-no subir. O carcereiro ajudou-o a lavar-se e deu-lhe um jeito nas
roupas. Depois levaram-no para o tribunal. Ouviu o que diziam dele: muitas
dívidas, tantas que o valor da sua casa não chegava para as pagar. Que voltasse
para a prisão, mas agora na praça, à vista do povo, para exemplo de todos.
Mas
atiraram-no de novo para a enxovia. Afinal não era na praça, pensou, onde teria
melhor ar, mais distrações. Mas, dias depois, o seu desejo realizou-se. Vieram
buscá-lo e desceu as escadas do balcão. Virou à esquerda e estugou o passado,
quase paralisado, com o que viu em frente à porta da sacristia da Misericórdia.
Os guardas empurraram-no pelas costas, depois agarraram-no pelos braços, mas
ele resistia, chorava, gritava. De nada valeu. Abriram a porta da gaiola de
varas e atiraram-no para dentro. Depois fecharam-na com uma corrente, a
cadeado.
Deixou-se
ficar prostrado no pó do terreiro. Os transeuntes olhavam-no com olhar triste e
temeroso, mas não paravam. Ele continuava estendido no chão, meio inconsciente,
em estado de choque. Passaram horas, dias e noites e ele só recebia a visita do
carcereiro, uma vez por dia, para lhe levar um caldo aguado com um naco de
centeio. Depois alguns populares começaram a aproximar-se da gaiola, numa
mistura de curiosidade e solidariedade. E uma mulher aparecia às vezes,
escondida no xaile e no escuro da noite, a levar-lhe qualquer coisita para
comer.
E
assim se passou do tempo quente para o tempo frio. As chuvadas de outubro
encharcavam-no e por vezes ficava repassado toda a noite, a tremer de frio. A
tosse era cada vez mais funda, mas as autoridades passavam indiferentes aos
seus pedidos de misericórdia. Começou a tremer mesmo quando estava enxuto e não
fazia frio. Ficava tempos infinitos estendido no chão, às vezes em lama, sem
saber muito bem se a sonhar ou acordado. E desesperançado, deixou-se acabar,
sem um ai.
José Teodoro
Prata
Nota:
Um dia, o João Paulino deu-me a ler a fotocópia de uma página de jornal, com a história de um caso judicial passado em São Vicente da Beira, nos finais do século XIX. O autor era alguém da família Neto.
Contava o caso de um homem condenado em tribunal, por dívidas ao Estado, a ficar preso na Praça, numa gaiola de paus, para exemplo dos demais.
A segunda metade do século XIX foi a da implementação do liberalismo em Portugal, o qual, embora defensor da liberdade e da igualdade, nem sempre cumpriu a fraternidade, submisso ao seu senhor mais poderoso: o dinheiro.
Estava em construção a sociedade atual.
Tentei por vários meios conhecer mais a fundo esta história: procurei-a no jornal Reconquista, mandei recado a um antigo aluno descendente dos Neto e tentei consultar o processo judicial, no Arquivo Distrital de Castelo Branco.
Tudo em vão. O Arquivo Distrital não tem uma listagem sumariada dos processos judiciais e por isso só podem ser consultados por quem saiba exatamente ao que vai: nomes, datas, locais...
Mas a história nunca me saiu da cabeça e tentei agora reconstituí-la.