domingo, 25 de outubro de 2020

Livraria daFRAGA

O nosso José Miguel Teodoro sempre trabalhou com livros e tem uma paixão especial pelos que estão fora do tempo. Por isso criou um projeto alfarrabista e este site é sua janela para o mundo.

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José Teodoro Prata

sábado, 17 de outubro de 2020

Os nossos primeiros professores

Nem sei se percebi bem, mas a notícia do jornal “Reconquista” desta semana sobre o provável fim da Escola Superior de Educação de Castelo Branco deixou-me alguma inquietação. A notícia não fala das razões do encerramento nem refere se já existe ou será criada outra escola de formação de professores que a substitua. Fica-se com a ideia de que a atual ESECB está a passar por alguns dos problemas das que a antecederam, mas que, apesar das muitas dificuldades, foram fundamentais para responder às enormes carências de pessoal docente para ocupar os lugares criados pela legislação que decretara a escolaridade obrigatória há já alguns anos (legislação que só muito tempo mais tarde começou a ser cumprida).

No início do século XX o analfabetismo era muito elevado em todo o País, mas principalmente nas regiões do interior, e junto das mulheres (em 1900, no distrito de Castelo Branco, num total de 216.618 habitantes, o número de homens analfabetos era de 84.623, e o das mulheres era de 102.764. Em 1950 a situação tinha melhorado um pouco, mas continuava a ser muito desfavorável para o sexo feminino: dos 273.468 habitantes, o analfabetismo nos homens era de 55.333, e nas mulheres era de 84.765).

As escolas de formação de professores tiveram também um papel importante na mobilidade social de um número significativo de rapazes e raparigas, principalmente das zonas rurais, que, sem elas, em meados do século XX ainda não poderiam sonhar em ter uma vida muito diferente da dos seus pais e avós.

 

Coincidência, ou não, por estes dias tenho andado a ler um trabalho de Francisco Goulão (Instrução Popular na Beira Baixa), onde, de uma forma muito exaustiva, o autor faz o retrato da primeira escola de formação de professores de Castelo Branco:

Criada em 1897, por decreto régio de 3 de Dezembro, iniciou as atividades em 17 de junho de 1898. Começou por se chamar Escola de Habilitação Distrital para o Magistério Primário; passou depois a Escola Normal e por fim a Escola Primária Superior (o nome por que era mais frequentemente designada e conhecida era Escola Normal). Recebia alunos de todo o distrito e alguns até de localidades mais distantes, como Coimbra, Guarda, ou Lisboa.

Durante os poucos anos de existência, a escola passou por muitas dificuldades, desde a precariedade das instalações (começou por funcionar numa casa na rua Vaz Preto; passou depois para outra dentro das muralhas do Castelo e finalmente para uma casa anexa ao Liceu Nuno Álvares, junto ao Paço Episcopal), dificuldade em recrutar pessoal docente, instabilidade política, dificuldades financeiras, oscilação da frequência (especialmente baixa a partir dos anos de 1924/1925), etc. que por várias vezes puseram em causa a sua continuidade. Em 1926 foi extinta definitivamente e, por quase trinta anos, não existiu nenhuma escola de formação de professores em Castelo Branco.

 

Consultando a lista dos alunos ao longo dos vários anos de funcionamento da Escola, encontramos vários nomes de rapazes e raparigas de São Vicente da Beira, que terão sido os primeiros a formarem-se e a exercer a profissão de professor primário:

 

Jorge Martins Ribeiro – Filho de Manuel António Martins Ribeiro, proprietário, do Louriçal do Campo, e de Francisca dos Mártires Moura de Brito, de SVB, nasceu no dia 22/01/1877, na Rua da Fonte. Fez o exame final do curso no ano de 1899, aos 21 anos de idade.

Terá falecido ainda jovem.

 

Maria Hermínia Ramos Lino – Filha de António Lino Lopes, jornaleiro, e de Maria José, ambos naturais de SVB, nasceu no dia 08/09/1884, na Rua de São Francisco.

Fez o exame final do curso no ano de 1902.

Faleceu em outubro de 1940.

 

Maria do Patrocínio Gama – Filha de Manuel Gama, jornaleiro, e de Maria Emília, ambos de SVB, nasceu no dia 03/07/1880, na Rua de São Francisco. Fez o exame final de curso no ano de 1903.

Faleceu na freguesia de Santa Maria da Graça, Setúbal, no dia 15/08/1961(?)

 

Maria da Ascensão Caio – Filha de João Maria dos Santos Caio, comerciante, natural de Monforte, e de Josefa Paulina, de SVB, nasceu no dia 18/05/1887, na Rua do Beco.

Fez o exame final no ano de 1905, aos 19 anos de idade.

Casou em 08/03/1911 (não é referido o nome do noivo nem a localidade). Também não se sabe a data e local da morte. 

 

Maria do Egipto Alves de Sousa – Filha de Simão Alves de Sousa, pedreiro, e de Maria da Natividade Raposo, ambos naturais de SVB, nasceu no dia 27/08/1887, na rua das Lajes.

Fez o exame final no ano de 1907, aos 19 anos de idade.

Terá exercido numa escola de Caria, pois foi lá que casou, com António José, natural daquela localidade, no dia 26/10/1910(?). Foi lá que faleceu também.

 

José Miguel Lopes – Filho de António Miguel, cultivador, e Mariana Casemira, ambos de SVB, nasceu no dia 29/12/1898 na rua Dona Úrsula.

Fez o exame final no ano 1918, aos 18 anos.

Casou em SVB com Maria da Purificação Bernardo Duarte, também professora, no dia 26/10/1921. Faleceu na Freguesia da Pena, em Lisboa, no dia 02/11/1985.

 

Sílvio Alves de Sousa -  Filho de Simão Alves de Sousa, pedreiro, e de Maria da Natividade Raposo, ambos naturais de SVB, nasceu no dia 04/12/1899 na rua de São Francisco.

Fez o exame final no ano de 1920, aos 20 anos de idade.

Faleceu em Castelo Branco no dia 05/02/1946.

 

António de Jesus Craveiro – Filho de Joaquim António Craveiro, jornaleiro, e Mariana Castanheira, ambos de SVB, nasceu no dia 05/03/1893, na rua do Convento.

Fez o exame final no ano de 1920, aos 27 anos de idade.

Casou em SVB com Aida Alves de Sousa, no dia 19/09/1927. Faleceu em Belo Horizonte no dia 27 de maio de 1977.

 

Maria da Purificação Bernardo – Filha de Agostinho Bernardo, lavrador, e de Maria da Trindade, ambos de SVB, nasceu no dia 02/06/1902 no Casal do Monte do Surdo.

Fez o exame final no ano de 1920, aos 18 anos.

Casou em SVB, com José Miguel Lopes, também professor, no dia 26/10/1921. Faleceu em 14 de junho de 1983, na freguesia de São Sebastião da Pedreira, Lisboa.

 

Joaquim António Craveiro - Filho de Joaquim António Craveiro, jornaleiro, e Mariana Castanheira, ambos de SVB, nasceu no dia 14/04/1900 na rua do Convento.

Fez o exame final do curso no ano de 1922, aos 21 anos de idade.

Casou em Rio Torto, Gouveia, com Maria da Conceição Marta, no dia 26 de fevereiro de  1927(?). Faleceu nessa localidade em 18 de março de 1976.

 

Maria da Luz Gonçalves Batista – Filha de João Gonçalves Batista, feitor do Conde da Borralha, natural da Póvoa da Atalaia, e de Maria Leonarda, da Atalaia do Campo, nasceu no dia 04/07/1906 na rua da Igreja.

Fez o exame final do curso no ano de 1923, aos 16 anos de idade.

Casou na Póvoa da Atalaia com Manuel Dias Rato, de SVB, no dia 30/09/1942(?). Faleceu em 20/08/1986 na freguesia do Campo Grande, Lisboa.

 

Faz ainda parte da lista dos alunos que frequentaram aquela escola o nome de Artur Eugénio Couto - Era filho de João Alexandre Couto, relojoeiro, natural de Trancoso, e de Maria Angélica, de Oledo. Nasceu em Castelo Branco, na rua de São Marcos, no dia 04/01/1901.

Fez o exame final no ano de 1919, com 18 anos de idade.

Casou com Maria Emília da Ascensão Reis, também professora formada na mesma escola, natural do Sobral do Campo, no dia 25/12/1922. Viveram em São Vicente, onde foram professores durante muitos anos.

 

Do corpo docente da Escola Normal também fez parte um Sanvicentino:

 

Francisco Vaz Raposo Gama – Filho de João Hipólito Raposo, cultivador, e de Maria Adelaide Gama, ambos naturais de SVB. Nasceu no dia 04/09/1877, na rua Velha. Foi professor na Escola durante o ano de 1908.

O seu registo de batismo não refere se casou e a data da morte, mas está sepultado no cemitério de São Vicente, na campa dos pais.

 

Após a extinção da Escola Normal, só em meados do século XX foi criada a Escola Normal Amato Lusitano, uma instituição particular, pouco acessível à maior parte da população da Beira Interior, quase sempre pobre. Terá sido esta realidade que ajudou à criação da categoria de professoras regentes, pessoas com conhecimentos muito rudimentares a todos os níveis, mas provavelmente as que melhor serviam também os objetivos da educação, num tempo em que a cultura e o saber do povo eram considerados um entrave ao governo do País, como o recorte seguinte bem revela.

 

 

“A Voz” era um jornal católico, apoiante do regime, como se depreende pelo discurso.

 

M. L. Ferreira

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Os Sanvicentinos na Grande Guerra

Francisco Candeias



Francisco Candeias nasceu em São Vicente da Beira, no dia 17 de agosto de 1892. Era filho de José Candeias e Rosário Castanheira, natural do Souto da Casa.

Assentou praça em 12 de julho de 1912, e ficou pronto da recruta em 30 e março de 1913. Passou à formação permanente, em virtude de sorteio, sendo incorporado no Regimento de Artilharia de Montanha de Portalegre, segundo o filho José Candeias. Na altura era jornaleiro e analfabeto.

Foi destacado para integrar a 1.ª Expedição enviada para a província de Angola, a fim de reforçar a força militar que já se encontrava naquele território, ameaçado pelas tentativas de ocupação alemã. Embarcou em 10 de setembro de 1914 e chegou ao porto de Moçâmedes, no dia 1 de outubro, seguindo depois para a região do Cunene.

De acordo com a sua folha de matrícula, participou na ação do dia 18 de dezembro, contra os alemães, fazendo parte das tropas que ocuparam o vau de Calueque. Pertencia ao destacamento que reconquistou e ocupou o Cuamato, de 12 a 27 de agosto, tendo tomado parte também na ação do Ancongo, em 13 de agosto de 1915, e no combate da Inhoca, em 15 do mesmo mês, dia em que o destacamento entrou no Forte de Cuamato. Com o mesmo destacamento, avançou em 20 de agosto sobre Cunhamano, a fim de restabelecerem as comunicações que haviam sido cortadas pelos alemães. No dia 24, participou no combate da Chana da Mula. Embarcou de regresso à Metrópole, no dia 16 de novembro de 1915, e chegou a Lisboa a 5 de dezembro.

Foi novamente mobilizado, em 27 de abril de 1916, para integrar a 3.ª Expedição que partiu para Moçambique. A este propósito, contava que um dia foi plantar oliveiras para a Tapada e, por volta do meio-dia, viu chegar um dos irmãos a correr. Ficou todo contente, porque já estava com fome e pensou que lhe trazia a merenda, mas o que ele trazia na mão era uma carta com ordem para se apresentar no quartel.

Embarcou no dia 24 de junho e chegou ao porto de Palma, no norte de Moçambique, em 24 de julho. Não se sabe exatamente qual foi a sua participação na guerra, mas terá estado envolvido nas tentativas levadas a cabo pelas tropas portuguesas para ultrapassar o rio Cunene para norte e conquistar territórios ocupadas pelos alemães.

Embarcou, de regresso à Metrópole, no dia 23 de dezembro de 1917, regressando a São Vicente da Beira. Passou à reserva territorial, em 31 de dezembro de 1933.

Não falava muito sobre os tempos da guerra, mas dizia que passaram por lá muita fome e tinham de roer os frutos das árvores maninhas. Curiosamente, falava também dos milheirais a perder de vista que havia em Angola, nas margens do rio Cunene, e da preocupação dos agricultores que não conseguiam vender o milho e já não tinham onde guardar as novas colheitas.

Muitos anos mais tarde, quando já vivia em casa dos filhos, a neta Maria da Luz lembra-se de o ver sentado à lareira a falar sozinho. Mal entendiam o que dizia, mas percebiam que eram reminiscências do tempo da guerra.

Condecorações:

·      Medalha comemorativa das operações no sul de Angola;

·      Medalha comemorativa das campanhas na província de Moçambique;

·      Medalha da Vitória;


Família:

Depois de regressar à terra, Francisco casou com Maria Antónia Macedo, filha de António Simão e Carlota Maceda, e tiveram 3 filhos:

1.    José Candeias, que casou com Stela Prata e tiveram 5 filhos;

2.    João Candeias, que casou com Maria de Jesus e tiveram 3 filhas;

3.    Domingos Candeias, que casou com Hermínia Candeias e tiveram 2 filhos.

A felicidade da família não durou muito, porque Maria Antónia adoeceu gravemente, ainda jovem, com tuberculose na laringe. Consultaram muitos médicos e ainda venderam uma propriedade que tinham no Pelome para pagar os tratamentos, mas não conseguiram salvá-la. Faleceu com apenas 35 anos.

«O meu sogro era uma pessoa muito alegre e divertida quando era novo. E diz que a minha sogra também. Andavam sempre a cantar e, quando era no Carnaval, gostavam de se vestir de entrudo e andar pelas ruas, de casa em casa, a pregar partidas a toda a gente. Mas depois a vida mudou porque a mulher morreu, ainda muito nova, e ele ficou com os três filhos pequenos para criar.

Nessa altura quem lhes valeu foi a ti Mari Rosa e a ti Rita, que eram irmãs da minha sogra. A ti Mari Rosa lavava e remendava a roupa (naquele tempo remendava-se tudo e, ainda por cima, quando a minha sogra morreu, os médicos disseram que queimassem tudo, por causa do mal que ela tinha, que era pegadiço); a ti Rita cozia-lhes o pão e ajudava no resto que fosse preciso.

Ao fim de seis anos, o meu sogro voltou a casar com uma mulher do Casal da Serra. Era muito boa mulher, muito trabalhadora e tratou sempre bem os enteados.

A segunda mulher também morreu passados uns anos e o meu sogro tornou a ficar sozinho. Arranjou umas cabritas e ia com elas para uma fazenda que tinha na Serra, e era assim que se “entretia”. Ainda viveu assim uns anos, até que depois ficou doente e passou a andar às temporadas em casa dos filhos.

 As minhas filhas gostavam muito do avô e ficavam todas contentes quando ele estava na minha casa. E ele também tinha muita paciência para elas. Até lhes contava histórias, que sabia muitas e tinha muito jeito para as contar.

No dia 19 de junho, era o dia em que os cachopos foram à inspeção, e quando eles chegaram de Castelo Branco até ainda andou atrás deles, pelas ruas, por causa da concertina; mas quando foi à hora do jantar começou a ficar esquisito e já só disse:

- Isto já é o meu fim. Que Nossa Senhora me acuda…

Ainda chamámos o senhor Doutor e o senhor Vigário, mas já não houve nada a fazer. Só lhe deram os sacramentos.

Está no céu, com certeza, que era um homem muito bom; sempre preocupado com os outros e muito respeitador e temente a Deus.» (testemunho da nora Maria de Jesus).

Francisco Candeias faleceu no dia 19 de junho de 1972. Tinha 79 anos de idade.

(Pesquisa feita com a colaboração do filho José Candeias e da nora Maria de Jesus)

Maria Libânia Ferreira
Do livro "Os Combatentes de São Vicente da Beira na Grande Guerra"
  

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

domingo, 4 de outubro de 2020

Fungo

 Este nasceu em tronco podre de eucalipto. O que não falta, no Ribeiro Dom Bento, são troncos a apodrecer, ótimos para produzir cogumelos. Só faltam as sementes...

José Teodoro Prata

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Os velhos

Já sabíamos que, de nós todos, os velhos são quase sempre a parte mais fraca da sociedade. Por problemas de saúde de vária ordem (incluindo, cada vez mais, as doenças neurológicas), perda de autonomia e autoestima, pobreza e solidão. A situação torna-se ainda mais grave quando se trata de velhos institucionalizados, como estes tempos de pandemia que vivemos têm mostrado.

Quando há já alguns vinte ou trinta anos viajávamos pelo interior de Portugal, começou a ser frequente encontrar, logo à entrada ou nalgum cruzamento dentro da localidade, uma placa a sinalizar a existência de um lar ali perto. Para quem tivesse vivido sempre em cidades grandes até poderia pensar que se tratava de um sinal de progresso, mas para os que nascemos na aldeia, crescemos entre a casa dos nossos pais e a dos nossos avós, e nos habituámos a vê-los envelhecer e morrer junto da família, a existência de tantas destas instituições parecia-nos uma realidade pouco natural. Hoje todos reconhecemos que são um mal necessário resultante das transformações sociodemográficas e das alterações na estrutura e dinâmica familiar, e não há forma de regressar ao passado, mas deveríamos entendê-los como último recurso e não, como acontece demasiadas vezes, como a primeira alternativa para responder às necessidades de assistência dos mais velhos ou às dificuldades da família em cuidar deles.

Tenho andado à volta de um livro lançado há tempos em Castelo Branco. Trata-se da tese de mestrado de uma enfermeira cujo trabalho de campo decorreu nos dois lares da Santa Casa de Misericórdia da cidade. Diz ela que um número muito significativo de utentes refere estar satisfeito com o tratamento que recebe (a caracterização inicial das instituições dá a entender que existem efetivamente boas condições, em termos de espaço e de equipamentos, mas sobretudo nos cuidados dispensados); adianta também que há muitas pessoas que dizem ter sido elas mesmas a tomar a decisão de ir para o lar. Contudo, refere alguns estudos que dizem que esta declaração nem sempre corresponde à realidade: muitas pessoas dizem isso apenas para desculpabilizarem os familiares (quase sempre os filhos); outras é por vergonha, porque no seu meio de origem, ir para o lar ainda é um estigma; outras querem dar a entender que, mesmo nesta fase da vida, ainda tiveram poder para decidir, embora isso não corresponda à verdade, na maior parte das situações. Mas há também quem se lamente e diga que tratou dos pais ou dos sogros até à hora da morte, e a eles obrigaram-nos a abandonar a casa e o que tinham conseguido numa vida inteira de trabalho, e meteram-nos ali, longe de tudo. E lembrei-me deste poema da Hélia Correia:

Velhos

Diz-se que há-de vir
uma era justa e boa
em que o valor da pessoa
se mantém quando envelhece.
Está no trabalho que fez.
Para conseguir uma coisa como esta
dava o sangue que me resta.
E era como se tivesse
nascido mais uma vez.

Deram-nos este banco de avenida
onde a sombra nos dói e a tarde gela
e daqui vemos nós passar a vida
Sem que a vida nos sinta perto dela.

Assim nos atiraram para fora
das coisas que ajudámos a fazer.
Ai, como o sol aquece pouco agora.
Ai, muito custa à noite adormecer.

Fomos pedreiros, varredores, ardinas
fizemos casas, cultivámos terras,
criámos gado, entrámos pelas minas,
demos os filhos para as vossas guerras.

Demos as filhas para vos servir,
cortámos lenha para a vossa fogueira.
E o tempo a ir-se, e a gente a pressentir
que vos demos sem querer a vida inteira.

E ainda é sangue o que nas veias corre.
Ainda é raiva o que nos dobra a mão.
Ainda ecoa um sonho que não morre
no nosso velho e atento coração.

Neste dia 1 de outubro, Dia Internacional do Idoso, este poema é como que um murro no estômago. Oxalá tocasse também a consciência de quem tem poder para tornar mais digna e humanizada esta fase da vida a que todos esperamos chegar.

M. L. Ferreira 

Nota: A imagem foi retirada do Google

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Vicentinos ilustres

 Maria de Lourdes Mateus Hortas


VIDA E OBRA

- Nasceu em São Vicente da Beira, na Rua do Convento, em 1940.

- É filha de Manuel Joaquim Hortas, boticário, natural de Mouçós, Vila Real, e Maria Amélia Mateus, natural da Covilhã. O pai detinha a Farmácia e o posto de Correios de São Vicente.

- Com 10 anos, acompanhando a minha família, vim para o Recife, onde vivo até hoje.

- Escritora, estou representada em antologias nacionais e estrangeiras.

- Participei, entre os coordenadores, do Movimento das Edições Pirata, Recife (1980 a 1986).

- Fiz parte do conselho editorial do jornal literário Cultura & Tempo (1981/1983), e da revista Pirata Edições (1983 /1984).

- Fui diretora da revista Encontro, do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, na época em que desempenhei o cargo de Diretora Cultural da referida instituição.

- Tenho 10 livros de poesia publicados, entre os quais Fio de Lã, Outro Corpo, Dança das Heras, Fonte de Pássaros e Rumor de Vento. Como ficcionista publiquei: Adeus Aldeia (1990); Diário das Chuvas (1995); Caixa de Retratos (2003).

- Organizei as antologias Palavra de Mulher (1979) e Poetas Portugueses Contemporâneos (1985).

- Fui coordenadora das Galerias de Arte BeloBelo, em Recife e em Braga (Portugal).

- Há cerca de 11 anos enveredei pelas artes plásticas. Fui aluna do pintor José de Moura, de Olinda, PE.

- Atualmente vivo nos arredores do Recife, mais precisamente, em Aldeia.

(Perfil na primeira pessoa, do seu blogue “poesia de maria de lourdes hortas”)

Casa onde viveu Maria de Lourdes Hortas 

(esquina da rua do Convento com a rua das Laranjeiras)

 

EM FRENTE À CASA DA INFÂNCIA

Em frente à casa da infância havia um ferreiro.
Além das ferraduras para cavalos, suas mãos grandes e pesadas
fundiam o sol em sua forja. E sucedia que, ao acordar, eu me precipitava
para a janela a tempo de ver
as faíscas da luz escapulindo pelo escuro vão da porta do ferreiro
diluindo-se na neblina da rua.
Da mesma janela via surgir, no postigo do primeiro andar, a velha:
de vestes tão negras como o tempo que atravessara
e de cabelos tão alvos como a farinha que, todos os dias, àquela mesma hora peneirava.
Da casa voejava uma poalha de prata.
Se fosse Inverno, a neve parecia escapar-lhe da peneira
polvilhando a aldeia de silene magia.


(Maria de Lurdes Hortas, "Cantochão de Todavia", edição do GEGA, 2005, São Vicente da Beira)

José Teodoro Prata