sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Festas de Verão 2


A Igreja da Misericórdia, morada do Santo Cristo e da Senhora do Carmo.

(O trabalho previsto para esta semana era outro, mas cheirou-me a maresia e as uvas maduras e lembrei-me dos anos sessenta, os da minha infância.)

As Festas de Verão eram no terceiro fim-de-semana de Setembro, dias depois da Santa Luzia, no Castelejo. Mas os manjares eram preparados muito antes, logo no Inverno, tempo das cabras e das ovelhas parirem.
Nós tínhamos uma cabra, que também tinha cabritos, mas o que pertencia nas Festas era comer o borrego. O meu pai costumava ir ter com o Nonga, o pastor do tio Albano, que mal conseguia falar, mas ele percebia, porque eram amigos, de quando o meu pai também era pastor, em rapaz. O Nonga adivinhava quantos borregos trazia cada ovelha, a apalpar-lhe a barriga. Se houvesse alguma com três, ficava prometido para o meu pai. Então nós comíamos um cabrito da nossa cabra, para lhe podermos juntar o borrego, logo que nascesse.
Às vezes apanhava borreira e curava-se com tiras de casca de trovisco atadas em volta da barriga. Se não morresse, o borrego crescia e em Setembro já estava feito. No sábado, eu e o meu pai matávamos o borrego, já carneiro, e tínhamos carne para a festa. O que se comia primeiro era o sangue cozido, que eu apulara para um tacho. A ceia era omelete de tubras e miolos.
No domingo de manhã, o meu pai gostava de comer a fressura, que a minha mãe fazia na caçola do lume. Depois temperava as massas para assar no dia seguinte e fazia o comer, antes de irmos à missa do Santíssimo Sacramento. O jantar era sopa de massa com carne cozida e carne guisada com batatas fritas ou cozidas e salada de tomate. No fim, comíamos melancia, que comprávamos na Praça, à saída da missa.
O meu pai, com uma ranchada de filhos, comprava muitas melancias. Melancias grandes para os grandes e pequenas para os pequenos, o tamanho dependia de quem as tinha que carregar até à Tapada. Mas as mãos suavam com o calor e a fome amolecia-nos. Uma ou duas iam ao chão e chegávamos a casa com os bocados, às vezes já a comer nelas.
Na segunda-feira festejava-se o Santo Cristo. O meu pai levantava-se cedo, para a alvorada. Fosse para o Quintalinho a ver deitar os foguetes ou à serra a buscar um molho de mato, o tempo da alvorada era religiosamente contado. Pertencia uma hora. Menos uns minutos já eram sinal de Comissão de Festas fraca e as contas acertavam-se à tarde, quando os festeiros andassem a fazer o peditório.
Antes dos foguetes, os bombos tinham dado a volta à Vila, a acordar quem ainda mal se deitara. À tarde tocavam outra vez na Praça. Inquietava-me aquele círculo de bombos com um dançarino no centro, a tocar uma flauta do tamanho da sua mão. Ficava estranho, nervoso, sentia um chamamento que nunca compreendi.
Santo Cristo, a veneração maior das gentes da Vila. A procissão unia os pés à cabeça. O andor era levado em ombros pelos soldados regressados da guerra. Toda a gente tinha promessas a cumprir ou pedidos a fazer.
Tamanha santidade pedia manjar especial e por isso as massas do borrego iam a assar ao forno do Sr. José Matias e mais tarde no nosso. Alguns de nós, os mais pequenos, nem íamos à missa, para que ninguém viesse roubar o borrego que ficava no forno, a assar lentamente. O meu pai fartava-se de comer carne assada, mas eu e a minha mãe preferíamos a guisada, que era mais saborosa.
Comíamos borrego no domingo, na segunda-feira e na terça-feira, dia de Nossa Senhora do Carmo. Festas acabadas e, de borrego, nem sobras.



CULINÁRIA

Borrego assado

Ingredientes: sal, pimento, alho, cebola, azeite, vinho e massas do borrego.
Misturam-se o sal, o pimento, o alho, o azeite e o vinho e com eles esfregam-se bem as massas, que se colocam nos tabuleiros de ir ao forno, com os fundos previamente untados e azeite e cobertos de rodelas de cebola. Ficam a temperar algumas horas, pode ser de um dia para o outro, e depois vão ao forno bem aquecido. Assam lentamente.

Borrego guisado
Ingredientes: alho, cebola, vinho, salsa, sal, azeite, louro, pimento e carne das costelas, cortada em pedaços.
Juntam-se todos os ingredientes num tacho e guisa lentamente.

Fressura
Ingredientes: alho, sal, cebola, salsa, vinho, azeite, sangue cozido, fígado, bofe e pâncreas.
Corta-se o bofe e o pâncreas em pedaços e tempera-se com o alho, o sal, a cebola picada, a salsa, azeite e o vinho. Coze-se na caçola, ao lume, com o mínimo de água. Depois de cozido, junta-se o fígado, também cortado aos pedaços, e o sangue cozido, esfarelado, para engrossar o molho. Deixa-se ferver um pouco e está pronto a comer.

Omelete de tubras e miolos
Ingredientes: tubras, miolos, sal, salsa e azeite.
Escaldam-se as tubras, tira-se-lhes a pele e migam-se em pedacinhos. Juntam-se os miolos e ovos batidos, envolve-se tudo, tempera-se com sal e salsa picada e vai a fritar em omelete.

Sopa de massa com carne cozida
Ingredientes: sal, azeite, água, massa e carne com ossos, da cabeça e do pescoço.
Coze-se a carne em água, temperada com os restantes ingredientes, excepto a massa. Depois da carne cozida, tira-se da panela e desossa-se. Em seguida, à água da cozedura, juntam-se a massa e os pedaços da carne cozida. Deixa-se ferver cerca de vinte minutos e está pronta.

Vocabulário (para que as novas gerações nos percebam):
Bofe - Pulmões.
Borreira - Diarreia.
Caçola - Pronúncia local de caçoula; caçarola.
Ceia - Actual jantar.
Fressura - Comida regional, confeccionada com o fígado, os pulmões e o pâncreas do borrego ou do cabrito; o termo também designa o conjunto destes órgãos, quando são retirados do animal.
Jantar - Actual almoço.
Ranchada de filhos - Muitos filhos. Nesta expressão, ranchada é sinónimo de rancho.
Trovisco - Planta arbustiva venenosa, expontânea em Portugal. Utilizado na feitura de vassouras caseiras.
Tubras - Pronúncia local de túberas; testículos do animal (cabrito ou borrego).

(Publicado em: PRATA, José Teodoro – “Instantes saborosos”, Estudos de Castelo Branco, Julho de 2007, Nova Série, N.º 6, Direcção de António Salvado)

Nenhum comentário: