O mato era para a furda do porco, a corte da cabra, os galinheiros e para a estrumeira. Uma vez por mês, tínhamos de se fazer camas novas. Também deitávamos mato em toda a frente da casa, para não irmos com os pés sujos para dentro. Depois, na altura de pôr as couves, no Verão, davam jeito mais umas carradas de estrume, pois o da furda já se gastara com as batatas.
Uma das minhas primeiras recordações é os filhos da Patrícia, barreira abaixo, com os molhos às costas, a meterem-nos medo e a correrem atrás de nós, de mim e dos meus primos, quando estávamos a brincar no rego da água.
Na véspera da minha entrada no Seminário, o Ti Jaquim Candeias ia a passar na quelha, atrás da casa Tapada, viu um molho de caruma com pernas e disse a rir para a minha mãe: "Olha um molho a andar!" Era eu, metido dentro do molho que se estava a escarapunsar. Tinha de deixar as camas feitas aos animais da casa, antes da partida.
Gostava de ir ao mato branco que havia no alto da barreira. Era o mais macio. Como o caminho era só a descer, às vezes exagerava e depois não conseguia ajudar-me ao molho. Içá-lo para as costas era impossível. Sentava-me ao lado dele e puxava-o para mim, mas às vezes caía-me outra vez, quando tentava levantar-me.
Nas situações de desespero, tinha uma solução praticamente infalível: deitava-me no chão ao comprido, de barriga para baixo e puxava o molho para cima de mim. Então rezava um Padre Nosso, se estivesse muito cansado, ou uma Avé Maria, no caso de ainda ter algumas forças. Depois começava. Primeiro levantava-me ligeiramente, apoiado nos cotovelos, e depois erguia o tronco e descansava, ajoelhado e com as mãos na corda do molho. A seguir erguia uma perna e depois a outra, com muito cuidado, pois era o momento crítico. Por fim, o arranque para cima.
Descia a barreira e estava em casa. Atirava com o molho ao chão e descansava. Sorte era quando ia ao mato com o meu pai. À chegada, ele pedia à minha mãe para nos fazer um gró, por causa da fraqueza. Sentados nas escadas do balcão, bebíamos o gró e descansávamos. Depois traçávamos o mato e fazíamos as camas.
O mato mais abundante era a carqueija, mas magoava os animais, sobretudo no tempo seco, quando está mais áspera. A cama nova da furda era nova por poucos minutos. O porco fossava tudo e abria túneis, na sua função de porco e à procura de abrigo das picadelas das moscas. Saía de lá todo riscado de vermelho.
Por isso íamos à carqueija debaixo dos pinheiros, onde era mais macia e mais alta. Os pinheiros eram os da Senhora Maria José Afonsa. Sabíamos que lá não podíamos cortar, pois, uma vez por ano, em Setembro, ela vinha com um carro de bois e pessoal, a buscar mato para o quintal, por detrás da sua casa no Cimo de Vila. Quem lhe guardava o mato era o Ti Miguel da Ti Laurentina que tinha a horta em frente, do outro lado do barroco. Mas ele morava no Casal do Baraçal e por isso bastava pormo-nos à escuta de sons de cabras ou chamamentos de gente.
Um dia, ele surpreendeu-nos, a mim e aos meus primos. Aproximou-se silencioso, podão na mão e casaco pendurado num só ombro, como o trazia sempre. Dera a volta ao barroco, por cima. Disse-nos o que já sabíamos e ofereceu-nos o seu mato, junto ao Cabeço do Pisco, sempre que precisássemos. Mas deixou-nos levar os molhos, porque era um homem bom.
Notas:
1. Ganal deriva de gado e usávamos esta palavra como nome colectivo a designar o conjunto dos animais domésticos. Dizíamos: "Tratar do ganal", "Dar de comer ao ganal", "Tirar o estrume do ganal", "Fazer as camas do ganal"...
2. A palavra escarapunsar(ou escarapunçar) indicava um molho que se estava a desmanchar. Nunca vi a palavra escrita, nem a encontrei no dicionário.
3. Não sabia a origem da palavra gró, até que um dia, num filme, vi a referência a uma bebida feita de aguardente, água e açúcar. O nome era semelhante.
E, consultando os livros, descobri que existe, em Portugal, uma bebida alcoólica preparada com aguardente, água, açúcar e casca de limão. É o grogue.
Do grogue ao gró vai a tendência do nosso povo para simplificar tudo.
Já agora, o gró do meu pai era preparado com açúcar amarelo e água fresca da talha que tínhamos na cantareira, sempre cheia de água da mina da Barroca.
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