«Apesar de um pouco melhor do que no tempo da sardinha para três, quando havia, passa-se mal por esses povos e até nas cidades: a sopa e o pão, como regra, as batatas e os feijões, conduto quando calha, mas não para todos, como o pão trigo, que o comem só os mais remediados - os demais, bastam-se com broa ou centeio - com umas azeitonas nos dias de maior fartura, ou uma tripa de enchido, o culto do bacalhau bem vivo, por todo o lado onde não chega o peixe miúdo, e a carne se reduz ao porco que se mata para dele comer a família, o ano inteiro. Da venda ou da mercearia, gasta-se o obrigatório, fiado, com amortizações à quinzena ou no fim do mês, o fantasmo do calote ou da insolvência sempre a pairar: sabão para as lavagens, o arroz e o açúcar, petróleo para iluminação, sendo que, em muitas casas, ainda se enfrenta o breu da noite com candeia de azeite.
Milhares de famílias continuam a partilhar o espaço da habitação com os animais da casa, a amontoar estrumeiras à porta, a defecar onde calha, a catar os piolhos de filhos e netos, sendo plausível que, em caso de acidente ou doença séria, à cabeceira de cada um se encontre mais provavelmente o padre do que o médico. É assim o país cinzento, pobre até no sonho e curto na ambição.»
Retrato de Portugal, no ano da inauguração do monumento do Cristo-Rei.
TEODORO, José Miguel - Por alturas do Cristo-Rei em Almada, Câmara Municipal de Almada, 2010, p. 51
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