quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O nosso falar: charneco

Charneca é uma terra inculta e árida, onde há apenas vegetação rasteira.
Desde há séculos que os nossos antigos perceberam a natureza que lhes servia de berço, entre o campo que aos nossos pés se estende até Castelo Branco, a serra de que somos filhos e um misto de serra baixa e campo de matagais que se aninha na curva da Gardunha, para os lados do poente. É a charneca.
E charnecos são os seus filhos, tal como os casaleiros são serranos, sendo os vicentinos uma mistura dos dois, com um cheirinho do campo para os lados das Vinhas e de Santa Bárbara.
Mas eu ainda não conhecia esta gente laboriosa e esquecida, gente que sobreviveu a séculos de privações contando apenas com a solidariedade dos vizinhos, quando, no Seminário do Tortosendo, chamava charneco ao meu amigo Tomás Roque do Mourelo, só para o arreliar e o ver correr atrás de mim.
Esse era o charneco visto do lado de cá, pelos olhos dos "poderosos" da Vila que nutriam igual desprezo pelos humildes de cá e de lá, mas que nós, os humildes do lado de cá, imitávamos, na tentativa de partilhar a boa estrela das suas vidas.
Há anos, quando li pela primeira vez as Memórias Paroquiais de S. Vicente da Beira, de 1755, fiquei chocado com a ausência de informações sobre a charneca. O vigário das melhores Memórias Paroquiais da região quase desconhecia as terras onde morava parte do seu rebanho, embora regularmente um padre fosse celebrar missa dominical a São Tiago. Depressa me apercebi de que tamanha ignorância roçava ao desprezo que a elite da Vila nutria pelos humildes ainda na minha infância.
Eu só os conhecia da Sexta-Feira Santa e da procissão do Santo Cristo e os meus olhos deixavam-nos na Escavação, quando desciam da camioneta da carreira e se metiam pelo mato em direção às aldeias que apenas avistava ao longe.
Não é de admirar que os jovens do Tripeiro e da Partida, na década de 50, tenham convidado os rapazes do Sobral e não os de São Vicente, para iniciar a sua atividade associativa futebolística. Igualmente não me admirei, mas tive inveja, de recentemente ver o grande salão da Junta das Sarzedas repleto de gente vinda das anexas dessa freguesia, para comungar num acontecimento cultural com os da sua Vila. No passado, terá sido melhor o relacionamento entre as diferentes comunidades daquela freguesia.
Eu, como filho do Casal da Fraga, também sou charneco. Ali se cruzam esses dois mundos só aparentemente tão diferentes. Recentemente soube que o meu pai, apelidado de russo na infância, de pele meio rosada e quase sem pelos, descende dos Costa do Vale de Figueiras, esses loiros de olhos azuis que fizeram os seus lares ali num canto da Guardunha. Outro ramo dos Teodoros tem as suas raízes nos Pereiros.
Felizmente, as coisas mudaram totalmente. Rasgaram-se estradas, houve autocarros de estudantes após o 25 de Abril, vulgarizaram-se as deslocações de pessoas e todos se conheceram melhor. Os preconceitos desaparecerem, todos, os de inferioridade e os de superioridade. Passámos todos a ser cidadãos. É esta a força da educação, é esta a vantagem da democracia.
Porquê lembrar pecados velhos? Para aprender com o passado e não repetir os mesmos erros, mesmo que voltemos a ser todos pobres como antigamente, esse desígnio nacional de parte da nossa elite político-económica, orquestrada pelos capangas locais (Vitor Gaspar, Carlos Moedas e António Borges) do ultraliberalismo económico internacional.

Paradanta: uma linha na encosta da Gardunha.
(Foto do Carlos Matos)

3 comentários:

Anônimo disse...

Como tudo mudou, tão rapidamente.
Lembro o Tomás Roque a sair da Carreira do Pião, na Escavação, quando vinhamos do Seminário. Os familiares esperavam-no por vezes com um burro e viamo-los perderem-se no pinhal enorme, sem saber onde seria o Mourelo. Viviamos como coelhos, no meio de florestas imensas de pinheiros, mas tão felizes ou mais que agora nas florestas de betão a ver fugir o admirável mundo novo e a esperança, pela atuação dos novos Miguéis de Vasconcelos que citas no fim do artigo
FB

Leonor disse...

O meu marido é natural dessa zona, eu nasci no Baixo Alentejo, temos numa aldeia uma casa e cerca de 4 h de terreno que neste momento estão ao abandono. A minha sogra colocou-me uma série de preconceitos quanto a essa zona, ainda que tenha amizade com muitas pessoas da aldeia. Gostei deste artigo, principalmente pelo fim de preconceitos. Tenho vindo a plantar sumagre (Rhus coriaria), todos os dias penso nesses 4 h. Considero a possibilidade de fazer aí uma plantação deste produto, que passa necessariamente por uma unidade "fabril", falemos assim. Eu sou uma pessoa tolerante, fui criada num ambiente liberal, mas continuo com um problema, ainda que se deva aos muitos anos que estive sem ir aí. Não sou católica, mas respeito quem é. O liberalismo aí já chegou à tolerância face aos não católicos. É que ainda por cima tenho ascendência judaica, mas o meu marido é cristão. Perdoem lá qualquer coisinha, mas enfim, a minha ignorância de vez em quando fala mais alto. Posso ir para o concelho do Fundão, respeitando os outros, e eles me respeitando a mim, pelo que sou, pelo que eles são? Obrigado

José Teodoro Prata disse...

Claro que pode vir a esta zona e fixar-se nesta região! Essa coisa da intolerância é passado, o mundo rural mudou muito, quase totalmente, nas últimas décadas (depois do 25 de abril).
Aqui, muita gente descende dos judeus que aqui viveram em grande número. Por exemplo, eu tenho antepassados judaicos do século XVI, presos pela Inquisição.
E a maior comunidade judaica do interior, Belmonte, voltou a ter sinagoga e rabino, há mais de 10 anos. E tem um museu judaico visitado anualmente por milhares de pessoas.
Felicidades!