Amanhecia
tarde. Não estava nada bom para levantar da cama e ir tratar da horta e dos
animais. E a terra fremia, ensopada, por mor de meses seguidos de chuva teimosa
que não despegava, desde a entrada do outono, parecendo que, apesar dos
agasalhos, a água e o próprio frio nos entravam pelos ossos dentro.
O
céu de dezembro e janeiro apresentava-se quase sempre carregado, a indiciar
chuva; ou, mais claro e liso, a adivinhar grandes nevões que cobriam tudo de
branco. O que, dada a quietude da vida, me parecia uma brancura de morte.
Talvez por tudo isso, se é certo que no nosso imaginário existe uma cor para
cada abstração, eram aqueles os meses que me pareciam os mais negros do ano. Lá
vinha, às vezes, um dia de sol brilhante, mas igualmente gelado e seco que nos
fazia tiritar.
Aquilo
é que eram Invernos!
Dava-se
a paragem das seivas na natureza e a hibernação de animais selvagens, obrigando
também o homem a quedar-se, meio letárgico. Os gados saíam menos e estavam mais
tempo nos redis onde se alimentavam a verdes secos guardados desde o verão. A
inclemência obrigava a uma maior contenção dos trabalhos no campo. Mas nem tudo
era desvantajoso. Com as noites maiores, seroava-se mais em família.
À
roda da ‘boutcha’ (1), no lar, onde
estrepitavam as corcódeas de pinheiro, entre dois dedos de conversa, comia-se a
sopa de feijão e a morcela de cozer, às rodelas, com couves e batatas bem
regadas com azeite. Cortava-se o naco do toucinho com a faca de cozinha e
punha-se em cima do pão, a pingar, como conduto. O presunto lascava-se, fino,
porque tinha que durar até mais adiante. E guardava-se, para oferecer, como
iguaria, a quem nos visitasse. Os adultos bebiam o vinho caseiro guardado na
adega, já cozido pelo frio e que, por isso, se tinha tornado numa pinga de
estalo. Havia ainda o queijo fresco ou curado, as azeitonas na talha, o pão de
centeio, a broa de milho e fruta todo o ano. Do que a terra dava, nada
faltava!
O
mau tempo não podia tolher a atividade dos que tinham braços para trabalhar na
grande azáfama da colheita da azeitona. Era necessário o azeite para temperar a
panela na roda do ano. E o que sobrava, porque se tratava de um precioso
líquido, vendia-se por bom preço, para ajudar na liquidez do orçamento
familiar. Tarefa a fazer, custasse o que custasse. E difícil, não pelo esforço
físico que era preciso despender, mas pela aspereza que a natureza impunha.
Engadanhavam-se-nos as mãos. Nos dias de ar mais cortante, acendíamos uma
fogueira para as aquecer. ‘És um nanho’ (2), diziam, por prosápia, os que pareciam
menos tolhidos, a disfarçar os efeitos que a crueza violenta e agreste do tempo
lhes provocava no corpo.
Mas,
já antes, com os primeiros ventos, aí pelos Santos, a recolha da azeitona
começara. Ia-se, por esses caminhos fora, com uma cesta de verga, a apanhar a
que caía, ainda verde, em terra neutra, nos caminhos, que dentro dos terrenos
ninguém entrava sem consentimento do dono! E guardava-se em baldes com água,
para não mirrar, até ir para o lagar conjuntamente com a de menor qualidade, o
‘destelo’ (3), para dar azeite grosso. Vinha depois a colheita. Seguia-se o
rebusco, durante o qual um ou outro fruto perdido, alguém ainda aproveitava,
mas, agora, por regra consuetudinária, sem ter que temer o dono, desde que não
danificasse o renovo. A bem dizer, não se perdia uma azeitona!
Já
os sete lagares da Vila, dispostos ao longo da ribeira, ainda em condições de
laborar, trabalhavam em pleno, estava a safra no auge! De norte para sul, era o
do Tonho Neto, da Natividade, do César, do Major, do Conde, do Albano e
Fundeiro (depois submerso pelas águas da barragem).
Pouco
se tinha avançado na técnica da exploração do azeite. Os lagares eram de vara
(exceto o do Major, por isso lhe chamavam ‘a fábrica’), a energia, a hídrica,
da levada de água, para mover as pesadíssimas galgas de granito que moíam a
azeitona. Os meios de transporte os de tração animal. Tudo durava há séculos.
Os
carros de bois a cargo dos ganhões, o Ti’ João Grilo, o Ti’ Dinis, o Ti’ João
Jarêto e outros, levavam para o lagar a azeitona nos sacos e traziam o azeite
em grandes bilhas, num vai e vem, que só abrandava um pouco a meio da noite
para que homem a animais recobrassem energias.
Tinham
rodas robustas de madeira com grandes eixos, reforçadas com aros de ferro que o
João Ventura aquecia na forja até ao rubro, aplicando-os depois no piso, ainda
incandescentes, para ficarem firmes, sem o que pouco resistiriam ao grande
esforço a que eram sujeitas.
Muitas
vezes fui acordado de manhãzinha ou embalado, já noite, pelo barulho cadenciado
destes carros, a passar na rua que, ora se aproximava, gradualmente, ora se ia
deixando de ouvir, até se dissipar de todo. Rodas a saltar, ferro contra pedra,
a compasso, ao ritmo dos pachorrentos bois, tau, tau, tau, tau, nas
irregularidades da ancestral calçada, anterior ao calcetamento de
paralelepípedos de granito.
Não
havia eletricidade. Os candeeiros antigos a petróleo ou azeite, soldados a
chumbo na parede de algumas casas para iluminar as ruas, em lugares
estratégicos da Vila, não eram acesos havia anos. Os dias eram curtos e, fosse
de manhãzinha ou depois do lusco-fusco, os carros de bois, nas suas andanças,
ostentavam, como pirilampos gigantes, uma lanterna acesa, de metal, com portas
de vidro, à prova de vento, para alumiar o caminho.
Certa
vez, em dezembro, nos afazeres destas fainas da azeitona, mas, nessa altura,
teria já os meus vinte e picos, andávamos nós, lá em cima, na Vala do Conde da
Borralha, a colher. Eu, o Ti’ Zé Maria Prata, o Ti’ Zé Marau, o Coluna, A Ti’
Maria dos Santos da Tonina e o Quim Mosca. Não sei se me escapa algum.
O
dia estava lindo! Mas era uma destas manhãs geladas, com uma grandessíssima
camada de ‘códão’ (4). O frio era
intenso porque, no inverno, o sol, fazendo jus ao poeta ‘dá muitíssima luz, mas não aquece nada’ . E tudo ainda era
agravado pelo facto de a Vala se situar numa depressão cavada na Gardunha, em
direção à Portela do alto da Senhora da Orada. Talvez ainda influenciado pelos
ares da Estrela que fica em frente, do outro lado da Cova da Beira, formando
ali um canal de vento gelado de alto lá com ele!
O
Ti’ Zé Maria Prata, tinha sido uma figura importante. Em tempos, terá
pertencido à força de Cabos de Ordens que, sob a supervisão do Regedor,
mantinham, na Vila, a ordem pública. Parece que chegou também a ser encarregado
de grande parte dos resineiros, numa considerável área de pinheiros bravos, na
exploração da resina. Fruto desse passado, dizia de si próprio, ao mesmo tempo
que batia com o pé direito no chão: ‘número
um de S. Vicente’! E ia repetindo várias vezes ao dia a mesma expressão: ‘número um de S. Vicente ’! batendo, de
novo, com o pé no chão. Maneira de refrear o ego com as lembranças de outros
tempos, já que, à época, andaria pelos seus setenta e muitos, longe dos tempos
áureos.
Sucede
que o Quim Mosca que gozava as férias escolares de Natal ou tinha já deixado o
seminário, estava mais habituado ao aconchego das salas de aula do que à dureza
do trabalho dos campos. Desde manhã, obra de mais de uma hora, mesmo assim,
tinha-se aguentado lá no cimo da escada, a colher e a rilhar o vento que
passava na Vala, como vidro cortante. De vez em quando, descia da escada e ia
junto da fogueira, entretanto acesa, para se aquecer.
Mas
a violência daquele frio num corpo habitualmente abrigado no interior das
paredes do seminário e, quase de repente, exposto à agrura extrema do tempo,
teve os seus efeitos negativos. Desceu da escada mal disposto, a tremer,
lívido, quase a vomitar. Nem a ‘gorra’
(5) que tinha enfiada na cabeça, até às orelhas, o protegera do ar gelado,
picante como aguilhão, que vinha pela Vala abaixo. Quedou-se ao sol, por um
bocado, a tentar recuperar do estado de quase desmaio.
Foi
logo objeto da mangação dos outros, com a sua bazófia, a fazerem-se grandes: ‘isto não é para seminaristas’’!
É
certo que também eles teriam os seus pontos fracos. Só que a natureza humana
carece, muitas vezes, de afirmar as suas competências contra o semelhante. Mas
o Quim, ao cabo de um bom migalho, lá acabou por recobrar do gélido
abanão.
A
Vila, era assim. E na nossa infância, podemos afoitamente dizê-lo, a vida tinha
ainda um sabor medieval.
Agora,
não há o rebuliço de antigamente, logo na obscuridade da manhã, do toque a
reunir da corneta, a chamar os da ‘camarada’
(6) do Tonho Dias ou do búzio, a chamar os da ‘camarada’ do Albano, para iniciarem a colheita da azeitona de mais
um dia. Nem das juntas de bois, nem dos grandes rebanhos de ovelhas ou de
cabras, a avançar, ouvindo-se, ao longe, de manhã ou ao entardecer, o som dos
chocalhos.
É
verdade que demos um grande salto tecnológico. Vimos chegar a televisão e o
homem à lua. O automóvel generalizou-se e apareceram as comunicações em massa
(telefones, telemóveis, computadores).
Mas,
hoje, estranhamente, deixamos a azeitona nas oliveiras!
Notas:
(1) Boutcha: na linguagem local, certamente,
com influência castelhana, diz-se de uma “grande fogueira”; deve ter origem no
termo ‘boucha’ que significa ‘desbaste de
mato que se queima para se cultivar a terra que ele ocupava ’; o mesmo que
bouça.
(2) Nanho: para nós é o mesmo que ‘incapaz’ ,
‘pouco expedito’ ; julgo (mas não tenho a certeza) que vem do latim ‘nanus’, anão; acanhado; que tem corpo
pequeno; nanismo: próprio do anão.
(3) Destelo (lê-se destêlo): tem o
significado geral de fruto caído por efeito do vento; mas, falando-se de
azeitona, significa (também) fruto caído por ter atingido um maior grau de
maturação.
(4) Códão: congelação da humidade infiltrada
no solo, formando uma crosta de gelo semelhante a pequenas estalactites (ou
estalagmites) de cerca de 5 ou 6 cm de espessura, entre a camada exterior do
solo e a camada seguinte; ao caminhar-se sobre ele, esmaga-se com um som
semelhante ao do vidro quando pisado; deve ter origem no termo côdea.
5 - Gorra:
há vários tipos de gorra; mas a nossa é do tipo que se assemelha mais à boina
basca.
6 – Camarada: conjunto de pessoas, homens e
mulheres, que trabalhavam, numa época, na colheita da azeitona, normalmente
para um mesmo patrão; os instrumentos de toque a reunir as ‘camaradas’ eram
diferentes para que, cada um, ao ouvi-lo, identificasse a sua.
José Barroso
José Barroso
3 comentários:
Não sei se foi propositado ou não, mas acho este texto do José Barroso uma homenagem ao valiosíssimo património da nossa terra.Trata-se de uma bela descrição da natureza quase medieval da vida da nossa gente, que é também a de tantos de nós, em pleno século XX! Tempos complicados, com condições económicas e de trabalho bem adversas e em que até o tempo parecia mais agreste, mas que permitiam o desenvolvimento de relações familiares e comunitárias mais difíceis de estabelecer atualmente.
Gostei principalmente do seroar em família que me fez lembrar os serões da minha infância numa família muito alargada, em que se contavam histórias, rezávamos o terço e só ia para a cama com a bênção do meu avô …).
De algumas coisas não me recordo, provavelmente por ser menos atenta, mas lembro-me bem dos carros de bois como principal meio de transporte de mercadorias (porque as pessoas andavam quase sempre a pé) e dos lagares ao longo da Ribeira onde se desenrolava a principal actividade económica daqueles longos meses de inverno.
Lembro-me também das mãos engadanhadas e do muito que tínhamos que calcorrear para levarmos para casa o fundo coberto da cesta com o destelo ou o rebusco feito em terras alheias, sempre com o olho alerta e o coração apertado, não viesse o dono das terras correr connosco depois de nos ter feito despejar no chão o que tanto nos custara a apanhar.
São provavelmente as reminiscências desses tempos que, apesar dos protestos que oiço todos os anos, me fazem colher as poucas oliveiras do meu quintal até à última azeitona. São também as memórias de tempos menos fartos que, um pouco à socapa de mim própria, ainda me impelem a apanhar algumas das azeitonas que caíram antes de tempo, mas que tenho pena de deixar para trás.
M. L. Ferreira
Lembro-me dessa história do Quim, como se fosse hoje.
Foi na campanha da azeitona de 75/76 ou 76/77, não sei bem.
Eu e o Chico Barroso andávamos a colher para o sr.º João Dias, mas o Quim juntou-se a um grupo que ajustou com a Casa Conde a colheita ao quilo e não ao dia, como nós.
Quanto mais colhessem,mais ganhavam, mas se apanhassem muitas oliveiras com pouca ou estivesse chuva ou frio em excesso, como naqueles dias, viam-se negros para colher o suficiente para fazer o salário.
Ao Quim morrera-lhe o pai há poucos meses e atirou-se ao que lhe apareceu, pois tinha de fazer pela vida. A falta de hábito teve certamente influência, mas colher de empreitada não dava margem a ir aquecer-se, por solidariedade com os colegas que o não faziam. E o resultado foi o que se viu.
Foi há tão pouco tempo e tantos sacrifícios se passavam!
Que belo texto primo.
Lembro-me de andar a apanhar azeitona até à ultima, e quando o tempo estava mais rigoroso até era dificildistinguir as azeitonas das caganitas das cabras...
A continuar assim pareceque em breve não ficará uma azeitona nas oliveiras.
Postar um comentário