sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Sopas de vinho

Há muitos anos, havia ali para a charneca um carvoeiro muito pobre, coxo e que ainda p’ra mais gostava da pinga. Logo de manhã, o mata-bicho era uma malga de sopas de cavalo cansado. O vinho, o mais das vezes, já meio azedo; o pão, só broa ou centeio, quase sempre duro que nem pedras. Mesmo assim, até dava gosto vê-lo a comer as sopas de pão mergulhadas no vinho e, no fim, a escorropichar a malga até ao último pingo.
De barriga aconchegada e alma aquecida, abalava de casa muito antes do nascer do Sol. Com a jaqueta e o boucheiro às costas e o podão pendurado à cintura, lá ia ele, umas vezes até às Rebardeiras (Ribeiro de Eiras), outras pela serra do Ingarnal (Engarnal) acima. Era para esses lados que havia a melhor esteva e torga da taluda para fazer carvão de primeira. Depois andava a oferecê-lo a ferreiros ou ferradores que lho pagavam mal e a más horas. Às vezes, nem dava para o sabão. Devia ser por isso que andava sempre tão enfuscado que mais parecia que tinha vindo da África. Até os ganapos, mais por medo que por maldade, faziam pouco dele. Quando o viam passar, de saca às costas, seguiam-no à distância e, arremedando-lhe o mancar, provocavam:
                       
O preto da Guiné
Lava a cara com café,
Envergonha-se de ir à missa
Com sapatos de cortiça.

Ele, de tão cansado, fazia que não ouvia e continuava o caminho, curvado debaixo da saca; mas às vezes, só para os assustar, parava, voltava-se para trás e, com grande esforço, levantava a cabeça onde só os olhos revirados lhe luziam. Era vê-los a correr e a esconderem-se nas portas ou nas esquinas mais próximas! Mas não tinham emenda, os demónios: mal ele se virava, continuavam a provocação.
Uma manhã, ou por o vinho ser mais forte ou porque lhe tivesse caído na fraqueza, viu-se perdido para subir o carreiro, encosta acima. Dava dois passos para a frente, vinha um para trás; queria ir a direito, cambaleava para a banda. Não havia meio de sair do mesmo sítio. Pasmado e sem descortinar a razão de tal fenómeno, sentou-se no meio da vereda e, com a cabeça entre as mãos, pôs-se a dizer para os seus botões: «O vento na serra não zurra; eu caio, mas ninguém me empurra. Ainda hoje não bebi vinho, senão passado pelo pão… Sopas de vinho também embebedarão?!».
Nesse dia já o sol ia alto quando chegou ao destino, todo derreado das costas e a mancar ainda mais…

Torga de flor rosada, abundante no norte e centro do país. As raízes eram utilizadas para fazer o carvão usado nos fogões de cozinha, nos ferros de passar e nas forjas. O carvão das estevas era mais utilizado para as braseiras.

O boucheiro era a ferramenta utilizada pelos carvoeiros para arrancar as plantas com que faziam o carvão.
M. L. Ferreira

5 comentários:

Ernesto Hipólito disse...

Cá na nossa Terra, chama-se torga à raíz da urze. À urze chamamos " mato ". Há até uma zona dos arrabaldes de S. Vicente que tem o nome de "Mato Branco" que é o que está na fotografia. Além deste há também a urze cor de rosa mais comum na nossa zona. A torga é uma raiz com forma de tubérculo que pode chegar a ter vários quilos com o qual se fazia o melhor carvão.
O boucheiro ou bôchero como nós diziamos é uma ferramenta muito pesada que servia para arrancar as torgas e outras raízes para fazer o carvão. Digo isto porque tenho um nas minhas velharias e quem mo ofereceu explicou-me isto tudo.

Ó Libânia já viste que eu hoje pareço um professor?
Em vez de vos ajudar no blogue em que estou tão preguiçoso ponho-me para aqui a mandar bitaites!

Gostei muito de mais esta tua história que me fez recordar os tempos de infância.
O que me faz espécie é como é que conhecendo eu um pouquinho das tuas ocupações ainda tenhas vontade e tempo para tudo isto!
Es terrível cachopa!

Um abraço para ti e para o nosso amigo Zé.
E.H.

José Teodoro Prata disse...

Penso que a urze da fotografia é a dos ribeiros: cresce muito, só se dá nas zonas mais húmidas, e tem a flor de um rosa esbranquiçado.
A urze que dá a torga é mais baixa, cresce nas encostas agrestes e tem uma flor de um rosa intenso.

Anônimo disse...

Ó Ernesto, pelos vistos as minhas fontes nem sempre são muito credíveis… É por esta e por outras que os teus “bitaites”, sempre tão oportunos e de quem sabe do que fala, nos fazem falta. Deixa-te mas é de pringueirices!
Quanto ao resto, não exageres… Para além disso, conversar com as pessoas e escrever estas pequenas histórias, dá-me muito gozo e é quase uma terapia.
Um abraço também para ti!

Libânia

José Teodoro Prata disse...

Ernesto:
Só quando recebi o teu comentário e li bôchero é que se me fez luz. Isto de boucheiro é muito fino para a gente!

Anônimo disse...

Vocês aí aos abraços e eu aqui atafulhado em processos.
Não é justo.Ás vezes apetecia-me agarrar num bôchero e ir para a serra a bôcherar, mas há lá pouca torga.
Bem melhor seria a ler os diários dele (Torga). É o que recomendo a essa juventude que só quer Facebook
F. Barroso