quinta-feira, 22 de maio de 2014

Comentário à Orada

"Romaria à Senhora da Orada" escrito pela Libânia recorda-nos vivências passadas, memórias que nos transportam e recordam a fé das pessoas daqueles tempos apesar de parcos em recursos materiais a alegria era contagiante, a preparação das merendas, os romeiros vindos dos mais recônditos lugares, as carroças enfeitadas, os cantares...
Vou narrar um facto verídico que se passou com uma família dos Escalos de Cima
Naquele lar, não havia alegria, a tristeza era uma constante, na vida daquela família. O filho de quem tanto gostavam estava doente e o médico não encontrava a cura para aquela criança que definhava mais e mais cada dia que passava.
Certo dia, com a cara banhada de lágrimas, uma vizinha diz:
«Vão à Senhora da Orada buscar água.»
Entardecia. Um familiar pôs-se a caminho, pois a vida daquele menino estava presa por um fio. No seu burrico, o romeiro caminhava e rezava à Senhora. Quando chegou à ribeira da Povoa Rio de Moinhos, parou a pileca e desceu, dizendo:
- Aqui vai água da Senhora da Orada.
Para que andar mais? Desceu à ribeira encheu o cântaro e regressou. Os galos já anunciavam a aurora, quando chegou à casa do menino. Imediatamente lhe deram a beber uma tijela daquela água bendita.
A criança, ao outro dia, já não parecia a mesma, melhorava a olhos vistos. A Água da Senhora da Orava tinha operado maravilhas.
A partir dessa altura, no dia da romaria, aquele povo começou a deslocar-se, em peso, à Senhora da Orada. Ainda hoje vêm romeiros...
O pino do sol há muito que tinha passado mas o calor ainda era bastante naquele domingo. Entardecia.
Desloquei-me à Senhora da Orada encher os garrafões. Sentada na fonte, encontrava-se uma "amorosa avozinha". Comecei a falar com ela, sobre a romaria...
A certa altura, disse-me ela:
«Olhe aqui, senhor. Quando era nova, era uma alegria, nós, as cachopas, trazíamos um tabuleiro com todo o género de coisas (paios, farinheiras, pão, vinho, doces, azeite, cerejas) e os cachopos traziam "despendurada" na camisa uma nota. Quando chegávamos ao fundo do terreiro, íamos terreiro acima, que não era como é hoje, e começávamos a cantar:

Nossa Senhora da Orada
Vinde abaixo à ribeira
Vinde ver a mocidade
De São Vicente da Beira
Nossa Senhora da Orada
Vinde abaixo dar a mão
Que a ladeira é comprida
Que me dói o coração
Nossa Senhora da Orada
À Vossa porta me sento
Venho enfadada do caminho
Chamai-me lá para dentro
Nossa Senhora da Orada
À Vossa porta me empino
Deitai-me a Vossa benção
"Maila" do Vosso Menino
Olhe aqui, senhor, eram sempre quinze ou mais os pares. Ao chegarem à capela, elas pousavam as ofertas, em cima da mesa que ainda hoje existe, e eles deixavam o dinheiro.
Finda a procissão, os produtos entregues eram leiloados e à tardinha, ao toque da banda vicentina, dançava-se em frente à capela, era uma alegria!»

Os seus olhos brilhavam.

«Quase sempre havia bordoada com os de outras terras...
Um ano, o senhor vigário proibiu o "balhe" em frente à capela. A partir desse ano, a dança era feita ao fundo do terreiro, no caminho.
Quando partíamos para a vila, cantávamos:

Nossa Senhora da Orada
Minhas costas vos vou virando
Minha boca se vai rindo
Meus olhos vão chorando

Nossa Senhora da Orada
Lá me fica o meu cordão
Fica muito bem entregue
Senhora na Vossa mão»

Descanse em paz, senhora Maria dos Santos da "Tonina".
Os baloiços, a vermelhinha jogada às escondidas da G.N.R...
Tempos passados que já não voltam mais, resta-nos a recordação.
Nos anos sessenta do passado século, os automóveis na vila eram escassos, o carro era um bem que só os morgados possuíam, ainda sou do tempo em que os dedos de uma mão chegavam para contar os automóveis que existiam...
Em Lisboa, sempre houve uma grande "colónia" de imigrantes vicentinos e todos os anos muitos deles regressavam para assistir à romaria e matarem saudades da família.
Nos nossos dias, graças às boas vias de comunicação existentes, depressa se chega à capital, mas naquele tempo as coisas não eram assim, demoravam-se muitas horas, merendava-se no caminho.
Lisboa ficava muito longe!
Na véspera, sábado à tarde, nós os cachopos íamos para o Vale Morena, à espera da excursão, para apanharmos uma "cavalada".
Às vezes a excursão vinha pelos lados do Fundão; raramente. Desilusão para todos nós...
Assim, para recordar esses tempos inesquecíveis, há muito que fiz estes versos:
A EXCURSÃO
É sábado da Senhora da Orada
A praça está cheia de gente
No Vale Morena a ganapada
O autocarro espera para vir nele até São Vicente
Os cachopos fazem montinhos de terra na estrada
Colocam neles uma palhinha
Encostam o ouvido, mas ainda não ouvem nada
Pachorrenta vem uma vaquinha
Eis que um grita bem forte
Já lá vem a excursão
Eia, estamos com sorte
Vai tudo a cavalo. pois então
O choufeur ao ver os ganapos
Faz uma chinfrineira ao travar
Estavam jogando com uma bola de trapos
Vamos lá...todos subir e começou a andar
A alegria é contagiante
Lisboetas e cachopada
Já vemos São Vicente
E lá no alto a Senhora da Orada
Há abraços e beijos na praça
Entre todos os familiares
Olha o Joaquim, o Elias e a Graça
E vão todos para os seus lares
Senhora da Orada, Senhora miraculosa
Mais um ano e cá estamos orando
Imagem tão linda e formosa
E todos vão cantando e rezando
...A excursão vai partir
A caminho da capital
Para o ano se Deus quiser hei de vir
Só se estiver muito mal
Partem os Vicentinos lisboetas
Ficam os vicentinos de São Vicente
Vão carregados de malas e maletas
Mas o coração está sempre presente
Adeus filho, adeus adeus
Boa viagem e que a Senhora te proteja
Todos rezam pelos seus
Bendito e louvado seja
Zé da Villa

2 comentários:

Anônimo disse...

Não sou bem do tempo da Ti' Maria dos Santos da Tonina. Imagino como seria bela a festa na Senhora da Orada nessa altura!
Mas sou do tempo em que íamos para o Vale Morena (sul da Vila) ou para a Escavação (norte da Vila) à espera das excursões. Ainda não há muitos dias, em S. Vicente, recordava eu a técnica do montinho da terra. Era assim: construíamos na estrada um montinho de terra, pequeno, mas bem feitinho e colocávamos, no topo, uma palinha bem seca. Púnhamos o ouvido quase em cima do monte da terra, à escuta, em silêncio e íamos olhando para a palha. Esperávamos que a trepidação provocada por algum carro pesado, mesmo vindo ainda longe, movesse a palhinha, o que nos indicaria que se poderia aproximar uma excursão. Mas deixem que vos diga que, embora essa técnica tivesse alguma razão de ser (já que o som se transmite melhor pelos sólidos que pelo ar), acho que nunca deu grande resultado.
Por essa altura, penso que foi o João Maria dos Santos (Mosca, para saberem que é), lançou o boato de que, de vez em quando, passavam na estrada os "estrangeiros" para nos raptar. Como o nosso mundo era a praça e as ruas Vila, ir para fora de portas para o Vale Morena ou para a Escavação, era ir para muito longe. Chegou a haver apreensão nas nossas hostes. E muitos, sentindo que, mesmo os mais velhos não os poderiam proteger dos "estrangeiros", não arriscavam ir.
O condutor mais conhecido, talvez fosse o Elias, porque a camioneta dele tinha um pequeno avião de metal, em cima, à frente.

Belos tempos!

ZB.

Anônimo disse...

Um habilidoso este Zé da Villa! Ele é poesia, prosa, estórias…
Interessante, nesta publicação, é o retomar do relato dos muitos milagres atribuídos à água da Senhora da Orada, publicados no ano passado, por esta altura.
E a técnica do montinho de terra para adivinhar a aproximação das camionetas das excursões? Delicioso!... A prova de que a sabedoria popular tem muito de científico.
Gostei também da referência à Ti Tonina. Davam brado, as ofertas dela, quer fosse na festa do Santo António, da Santa Bárbara ou da Senhora da Orada: tinham de tudo, do bom e do melhor; autênticos banquetes! E o orgulho com que ela caminhava equilibrando o tabuleiro, enorme, à cabeça?... E a satisfação por vê-las arrematadas por uma nota valente?...
Quantas memórias boas guardamos daqueles tempos, apesar das dificuldades com que quase todos vivíamos!

M. L. Ferreira