domingo, 18 de maio de 2014

Romaria à Senhora da Orada

Mal entrava o Maio, com o cuco a cantar e a serra vestida de todas as cores, era uma alegria!
Quer fosse na ribeira, a bater a roupa no lavadouro; nos campos, na sementeira do milho, e na monda ou na sacha; por esses caminhos fora, com a cesta do jantar para o homem ou o molho de lenha à cabeça, toda a gente cantava:

Nossa Senhora da Orada,
Tem um sino no telhado,
Para chamar os pastores
Que andam na serra com o gado.

Nossa Senhora da Orada,
Tem um jardim na portela,
Mandai-o regar, senhora,
Por uma moça donzela.

Nossa Senhora da Orada,
Quem vos varreu o terreiro,
As moças de S. Vicente,
Com raminhos de loureiro.

Nossa Senhora da Orada,
Quem vos varreu a capela,
As moças de S. Vicente,
Com raminhos de marcela.

Os dias que antecediam a romaria eram vividos numa ânsia. Os mais velhos, levados pela fé, queriam agradecer à Senhora as graças recebidas ao longo do ano ou pedir ajuda para as muitas aflições que lhes consumiam as vidas:

Nossa Senhora da Orada,
Este ano lá hei de ir,
Não vos hei de levar nada,
Ainda vos hei de pedir.

Queria também ver a família toda à roda.
Os mais pequenos, antecipando o gozo da festa que era sobretudo o gosto das santinhas de açúcar penduradas ao pescoço, dos rebuçados de açúcar amarelo na roleta do Ti Viriato e as novidades das tendas que se estendiam ao longo do caminho, ao fundo do terreiro. 
Na véspera, as casas eram um burburinho. Começava-se logo de manhã a fazer a merenda, a contar com a família toda e mais alguém que aparecesse: ovos verdes, bolos de bacalhau, galo assado, o paio da tripa mais grossa, pão leve, pão trigo e vinho com fartura! Tirava-se a barriga da miséria de quase todos os outros dias do ano.
Ao outro dia era só acomodar os vivos, vestir o fato dos domingos e, antes que o sol começasse a apertar, lá ia tudo por aí a cima. Quanto mais cedo se chegasse, melhor. 
Os caminhos eram um mundo de gente vinda de todo o lado. Da Vila, da Charneca e de todas as terras das redondezas. Chegavam a vir até de longe, em excursões. Só de Lisboa eram pelo menos duas camionetas. Alguns iam a cavalo nos burros ou em carroças e carros de bois enfeitados com flores garridas. Mas de resto, era quase tudo a pé, com os cabazes da merenda e os açafates das ofertas à cabeça. E ninguém se calava:

Nossa Senhora da Orada
Para lá vou eu agora,
Meu coração cada dia,
Minha alma a toda a hora.

Nossa Senhora da Orada,
Vinde abaixo à ribeira,
Vinde ver a mocidade
De S. Vicente da Beira.

Chegados lá acima, escolhiam a melhor sombra para estender a toalha. Era um instante enquanto as barreiras, à volta do terreiro, e os lameiros, rente à ribeira, se enchiam de gente. Pareciam enxames! Cachopitos, então, nem é bom falar!
Depois era a missa campal, sempre uma eternidade… O fôlego do Padre Leal, a lembrar o milagre da Senhora à rapariga escorraçada pelo pai ou os que tinham abalado, levados pela sorte e pela guerra, punha toda a gente chorar. A seguir, a procissão, na cadência da música e do tempo; velas que uma mão não abarcava (algumas da altura de um homem) para pagar as graças alcançadas; o andor aos ombros de soldados, orgulhosos, metidos nas fardas de embarque; o vestido da Senhora cravejado de notas. E os ganapos, enfadados, num desassossego para irem cobiçar as gulosices, os piões, as cornetas e os pífaros de barro ou as bonecas que reviravam os olhos. Os mais espigados sonhavam já com um chapéu de palha novo, um anel de plaquê ou uns óculos de sol, bem escuros, de plástico verde ou cor-de-rosa garrido. Um vistão de fazer pasmar toda a gente!... As cachopas namoradeiras, insinuantes, a medirem o tamanho do amor dos namorados: «Ai que lindo lenço ali está!....» Um ano, o namorado de uma das minhas tias também me comprou uma prenda: um cinto de argolas de plástico, verde alface. Mesmo lindo! Nunca percebi a razão de tal generosidade. Só se foi porque eu nunca disse à minha avó que, quando lhes guardava o namoro, aos domingos à tarde, eles às vezes davam a mão ou um beijinho, à socapa. O que é que isso me importava, se o que eu queria era andar na praça a jogar ao paspelho ou às escondidas…
Comida a merenda e gastos os tostões escondidos no fundo do bolso ou atados na ponta do lenço, ia toda a gente beber água à fonte e ver a música e os ranchos.
Lá mais para a tardinha armava-se o baile. Se não havia música bastava uma concertina ou um realejo para animar a mocidade. Ao princípio os de cada terra faziam a sua roda. O pior era quando as rodas se juntavam e algum cachopo da Partida ou do Casal da Serra se atrevia a tirar, para dançar, uma rapariga que andasse debaixo de olho de um dos da Vila. Armava-se logo ali tal chinfrim que os carros de bois depressa ficavam sem fogueiros. Os de fora pegavam nos paus que tinham trazido de casa, à cautela, e ia tudo pela frente. Depois de muita cabeça partida e lombos derreados, tanto dos do lado de lá como dos de cá, era ver os outros a fugir, corridos à pedrada: «Anda cá, seu filha da p…! Se cá te apanho outra vez, parto-te os cornos!» Não se voltavam, nem para apanhar o chapéu, se calhava a ficar para trás… E era assim, sempre que se encontravam os da Vila e os da Charneca. Ódios antigos… Os de cá, manientos, a fazerem-se mais que os outros; os da charneca, orgulhosos, a quererem fazer ver que eram tão homens como os demais. E o vinho a empolar ainda mais todas as rivalidades…
Voltava-se a casa já rente ao sol posto. A alma cheia, mas o coração apertado pela nostalgia do fim da festa e a espera de um ano que, naquele tempo, era uma eternidade…
Mesmo assim, ainda a cantar:

Nossa Senhora da Orada,
As costas vos vou voltando,
Minha boca se vai rindo,
Os meus olhos vão chorando.


M. L. Ferreira

3 comentários:

Ernesto Hipólito disse...

Mais perfeito que isto é impossível!
Está cá tudo o que eu me lembro deste dia especial para os Vicentinos desse tempo. Até as brigas entre os da Partida e os do Casal da Serra.Os toutiços a sangrar com as cacetadas dos afogueiros ( fueiros )que depressa empapavam no pó que se levantava e saravam.
Faltou uma pequena coisa que tu não conheces e por isso não poderias narrar:

"Da minha terra vão todas
E da tua quantas vão."

Faltou a velhacaria má que tu não tens.

Parabéns Libânia.

E.H


Anônimo disse...

Reviver o passado nesta "praça virtual", quando narrado por cronistas deste naipe, sem igual... é qualquer coisa de fantástico ou mesmo fenomenal.
É a velhice a atacar ou estou um sentimental?
Que estas partilhas são importantes,já ninguém tem dúvidas.
Pelo prazer que nos dão e pelos afetos que alimentam, não parem óh cronistas. É o que vos peço.
Abraço
Francico Barroso

Anônimo disse...

Já há anos que não vou à Senhora da Orada a merendar em família, sobretudo após o falecimento do meu avô Francisco Eurico do Casal da Fraga.
Ao ler este texto da Libânia, foi como se fosse um olhar para esses tempos!

Muito bem!

ZB